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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.50 Belo Horizonte July./Dec. 2018

 

ARTIGO

 

Nas dobras do Fort Da: (Dobrar, tornar a dobrar, retornar a dobrar, desdobrar, dobrar... e além...)

 

In the folds of the Fort Da: (Fold, fold back, fold back, unfold, fold ... and beyond...)

 

 

Maria Helena Ricardo Libório Barbosa Mello

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Estas anotações em forma de artigo visam mais uma reflexão a respeito da matriz ausência/presença que nos insere na trama linguageira. São anotações a partir do capítulo II do texto freudiano Além do princípio de prazer, relacionando-o ao pensamento derridiano da disseminação, da dobra.

Palavras-chave: Fort Da, Dobra, Transmissão, Linguagem, Herança, Freud, Derrida.


ABSTRACT

These annotations, in the form of an article, aim at another reflection on the absence / presence matrix that inserts us in the linguistic plot. They are notes from Chapter II of the Freudian text “Beyond the Pleasure Principle”, relating it to the Derridian thought of the dissemination, the fold.

Keywords: Fort Da, Bend, Transmission, Language, Inheritance, Freud, Derrida.


 

Queria uma palavra alarve, muito gorda,
que usasse o alfabeto
e muitas vezes, até não bastar com letras e sons
e exigisse pedras e pedaços de vento,
as crinas dos cavalos e a fundura da água,
o tamanho da boca de Deus,
o medo todo e a esperança.
Uma palavra alarve
que fosse feita de tudo que, quando dita,
pousasse no chão definitivamente,
sem ir embora
para que a pudéssemos abraçar.
Beijar.

VALTER HUGO MÃE

Um texto só é um texto
se ele oculta ao primeiro olhar,
ao primeiro encontro,
a lei de sua composição
e a regra de seu jogo.
Um texto permanece, aliás,
sempre imperceptível.
A lei e a regra não se abrigam
no inacessível de um segredo,
simplesmente elas nunca se entregam,
no presente,
a nada que se possa nomear
rigorosamente uma percepção.

JACQUES DERRIDA.
A farmácia de Platão.

1 Introdução

É porque uma voz cantou boleros... e também porque o amor foi prometido primeiro... e ainda porque o amor brinca de se esconder e aparecer num átimo... e ainda e mais porque o amor não faz par... e ainda e sempre porque uma voz estrangeira, vinda de alhures em ritmo de cantiga – talvez de ninar – imprima a ausência e a presença passageira seja apenas um instante fulgor.

É porque o “discurso amoroso” fragmenta a espera em durar: a ausência do outro se torna uma prática ativa, espaço aberto para o deslocamento do amante que joga com a ausência, alongando esse momento e, numa escuta erótica, retarda o instante em que o outro poderia “oscilar secamente da ausência à morte” (BARTHES, 1981, p. 94-96).

É para fazer durar, durar na ausência que o amante espera, distorcendo o tempo e retirando dele “pôr em jogo o pior”, abrigando-se nas sombras da cortina da linguagem para nelas, em algum momento/instante, inserir-se apenas com o balbucio.

A linguagem, essa que em nosso idioma é feminina, feminina como a escrita, como a herança, como a transmissão, desaguando no (re)verberar do canto para retornar à língua desdobrando-a. Essa transmissão feminina, talvez, o último véu da Beleza ante o horror do mutismo. A língua a convocar o silêncio em seus intervalos possibilitando o frenesi do canto amoroso: “encontro inesperado do diverso”.

Entrar no texto Além do principio de prazer é encontrar-se no diverso das línguas: do alemão até a chegada, para nós, na língua portuguesa; atravessar o oceano das traduções e suas intempéries.

É porque é ‘tudo’ tão intenso que não podemos fazer sozinhos essa rota. É porque entre a ausência e a presença há o vão. Um vão parente próximo do vazio. Assim, buscamos a língua/lábio de outros pelo prazer da companhia.

Em sendo o princípio de realidade um adiamento do princípio de prazer, tomemo-la – a realidade – aos fragmentos, peças, pedaços, alusões e além... para suportar as sombras e os silêncios da intensidade.

A realidade para ser profunda tem que ser fragmentada. É impossível aguentar a intensidade continuamente, portanto há quebras contínuas na intensidade (LLANSOL, 2011, p. 58).

É porque há quebras que há o fracasso do todo. É porque “escrever sem pouso no saber é escrever no fracasso” (PAULA, 2016, p. 26). Portanto dobro, viro a esquina, encontro uma via, vejo ao longe encruzilhadas, proximidades e distanciamentos.

Retorno, torno a dobrar, encontro uma página dobrada, desdobro e leio:

Sua ausência é para mim a realidade, eu não conheço outra. É quando eu sei que você não está aqui, que você me deixa, me deixou, vai me deixar. Eis o meu princípio de realidade, a necessidade mais exterior, toda a minha impotência. Você marca para mim a realidade e a morte, ausente ou presente aliás (você está sempre aqui, lá, indo, vindo), isso dá no mesmo, você me marca, você me significa a realidade como a morte, você as nomeia ou as aponta. E eu acredito em você, permaneço ligado a você. Um outro, que eu conheço bem, se desligaria logo para correr na outra direção. Eu aposto que ele se depararia novamente contigo. Eu me deparei, então eu fico (DERRIDA, 2007, p. 204-205).

 

2 Redobrando o passo, passo a Freud e Além...

Passagem dos anos 1919/1920: entre O estranho e o Além..., a redobra freudiana sobre os conceitos, especulando algo que a clínica aponta para o marginal ao princípio de prazer. Movimento psicanalítico posto num plissado movimento: o obscuro na repetição dos sonhos traumáticos, as teorias buscando os motivos para a brincadeira das crianças, deixando de fora a angústia e o ganho de prazer (Lustgvinn).

O jogo/trabalho ali, aqui, acolá, alhures... perpetuado na vida. O ‘re’ do retorno, do reenvio, do reaparecimento, da representação, da repetição.

E o jogo/trabalho joga a economia do princípio de prazer, que não se ausenta nunca nem de ninguém.

E o jogo/trabalho joga a economia/gramática pulsional no reenviar do desaparecimento/reaparecimento, criação de uma forma que não dispersa nem fixa é apenas travessia/passagem de margem a margem.

Borda de berço, cortinas, tecidos, véus, telas, himens, debaixo dos panos, sobre os panos no vaivém da cena doméstica.

Vaivém o pensar a psicanálise, as instituições psicanalíticas, a formação permanente... “Isso mal partiu, e isso já vai retornar.”

A casa paterna, a economia doméstica posta na narrativa freudiana:

[...[ Entretanto, foi mais do que uma observação superficial, pois passei algumas semanas com a criança e seus pais sob o mesmo teto [...[ (FREUD, [1920[ 2006, p. 141). [Sophie, seu marido e seu filho Ernest na casa do avô[.

Uma economia do ponto de vista da lei da família, do próprio como doméstico familiar e até mesmo como doméstico funerário (DERRIDA, 1997, p. 334): o menino brincava de “jogar fora” jogar para fora seus brinquedos, brincava de ir para a guerra, a perda, a morte.

A casa paterna, casa do pai da psicanálise, a casa na qual se escreve o Além..., a casa do legante do movimento psicanalítico a seus legatários no limite do princípio de prazer. Engendra-se aí a economia doméstico-funerária: de geração para geração.

Retornemos:

[...[ sob o mesmo teto e pude debruçar nessas observações por certo tempo até que essa atividade enigmática e repetida sem cessar pela criança me revelasse seu sentido (FREUD, [1920[ 2006, p. 141).

E nessa dobra feita por um desdobramento, o avô repetidor diz da observação casual (familiar) da repetição de seu neto, esse primeiro neto, filho de Sophie, a filha mais bonita que Mathilde e objeto de ciúme de Anna; Sophie, a filha fértil, enquanto Mathilde era estéril; Sophie, a filha que deu à luz dois filhos homens, cujo segundo era o preferido de seu avô especulador.

[...[ o movimento dessa genealogia passa pela filha, pela filha mulher, isto é, que só perpetua a raça arriscando o nome (eu os deixo seguir esse fator até aquelas sobre quem é difícil saber se mantiveram o movimento sem o nome ou perderam o movimento para manter, por terem mantido, o nome) [...[ (DERRIDA, 2007, p. 336).

Não Ernest Freud, mas Ernest Halberstadt.

A história desdobrou-se para tornar a dobrar... A presença inelutável da morte... A presença inelutável da continuidade das gerações, das leis de filiação e de aliança, mostrando a insuficiência dos laços de sangue e a exigência de que eles sejam assegurados simbolicamente pelas relações de parentesco, reconhecendo o nome do genro.

Tal reconhecimento simbólico se ratifica numa carta de Freud a Halberstadt, o viúvo desolado de sua filha Sophie Halberstadt – sua “querida Sophie em flor” – . Freud falou a seu genro de um ato do destino brutal e sem sentido que nos roubou nossa Sophie.

Não se podia culpar ninguém, não se podia remoer nada. “Tem-se que curvar a cabeça sob o golpe, como um pobre e desamparado ser humano com que brincam poderes superiores”.

Freud assegura a Halberstadt que seus sentimentos para com ele se mantinham inalterados e pediu-lhe que se considerasse como filho seu enquanto quisesse. E assinou, com tristeza: “Papai” (GAY, 1989).

Ora, o convite a uma filiação considerada simbólica estava feito, e assegurada pela palavra a continuidade das gerações,.

Retornando a dobrar: “ele (o neto de seu avô, o avô de seu neto)” repete... Afastando sempre ou “fingindo” afastar o prazer do aparecimento: o neto a brincar, e o avô em trabalho de escritura do Além... sem ainda concluir; fiel à especulação; fiel à repetição: ambos repetidores aplicados: “Quem (se) faz retornar, quem faz retornar”.

Retornando a dobrar: “ele (o neto de seu avô, o avô de seu neto)” repete... Afastando sempre ou “fingindo” afastar o prazer do aparecimento: o neto a brincar e o avô em trabalho de escritura do Além... sem ainda concluir; fiel à especulação; fiel à repetição: ambos repetidores aplicados:

Quem (se) faz retornar, quem faz retornar quem segundo esse duplo fort da que conjuga na mesma escritura genealógica (conjugal) o recitado e o recitante desse relato (a brincadeira do neto “sério” com o carretel e a especulação séria do avô com o principio do prazer)? (DERRIDA, 2007, p. 337).

 

3 No palco doméstico a criança se dobra dobrando

O jogo/trabalho: fort da, um duplo fort da: o neto que joga brincando e o avô que joga especulando em cooperação: uma operação a dois, numa ocasião na qual, Freud põe em movimento o “movimento” psicanalítico: a torção de 1920.

E se dessa cooperação fica um resto, um resto que se ausenta da escritura do Além..., mas resto presente em sua própria ausência. Resto pulsional daquela energia livre que não se ligou a nenhum representante da representação embora insistente na “busca” de representar-se.

[...[ subsiste o resto não analisado do inconsciente, esse que trabalha e constrói com sua alteridade e autobiografia dessa escritura testamentária, então eu aposto que ele (o resto) será transmitido de olhos fechados por todo movimento de retorno a Freud. O resto que trabalha em silêncio a cena dessa cooperação é provavelmente ilegível [...[ (DERRIDA, 2007, p. 338).

E na dobra do pensamento, na forma prometeica – aquele de curvo pensar – temos então a relação de vizinhança, guardando a estrangeiridade, entre resto e transmissão. Transmitir um legado, transmitir a famosa segunda tópica. Submeter a própria teorização a novos enlaces os quais têm como “modelo” a consideração dos restos, traços que não se deixam ler: ilegibilidade.

Tornem a dobrar e encontraremos restos de escrita, restos que impulsionam escrever.

[...[ é que toda especulação autobiográfica, ao constituir um legado e a instituição de um movimento sem limite, deve levar em conta sua própria performance, a mortalidade dos legatários. Desde que há mortalidade, a morte pode, em princípio, ocorrer a qualquer momento. O especulador deve assim sobreviver ao legatário [...[ A morte precoce e, logo, o mutismo do legatário que nada pode contra isso, eis uma das possibilidades do que dita e faz escrever [...[ (DERRIDA, 2007, p. 339).

Dobremos de novo e nos curvemos à cena do jogo no palco doméstico. O vaivém dos personagens: sai Sophie, fica Ernest e o avô especulador repetidor que está sempre ali, a trabalhar.

Ernest fará a sua cena. A voz de Freud compõe o personagem: menino sem precocidades, elogiado por seu “bom caráter”, porém, o mais importante é que nunca chorava quando a mãe (filha) o deixava por horas, apesar de estar ternamente ligado a essa mãe (FREUD, [1920[ 2006, p. 141).

Freud fica entre a surpresa e o elogio, por enquanto. Freud não pode se impedir de desculpar o filho de sua filha nem a mãe do filho de sua filha.

Ora, esse bom menino era obediente, não incomodava os pais à noite. Mas essa boa criança passou a apresentar agora o hábito, às vezes incômodo, de atirar todos os objetos pequenos que conseguisse pegar para bem longe de si.

[...[ Finalmente me dei conta de que isso era uma brincadeira, e de que a criança apenas utilizava seus brinquedos para brincar de fortsein com eles (FREUD, [1920[ 2006, p. 141).

A economia pulsional na economia dos afetos na intimidade doméstica da casa do pai se faz notar entre os bons hábitos e os hábitos incômodos...

Qual custo para fazer prevalecer ou negociar com o princípio de prazer?

O preço de arriscar a ancoragem do ser?

Qual dor é necessária na perda para que haja uma transposição?

O hábito perturbador do bom menino, o trabalho dos pais, o trabalho da criança que espera o trabalho dos pais.

O avô observador, especulador, repetidor chama de brincadeira a dispersão, a operação de afastamento: a criança brinca de afastar os objetos, os pais trabalham para reuni-los “e isso nem sempre é fácil”. A dobradura de duas operações: a dispersão pela criança e a reunião pelos pais.

Entretanto, no exemplo exemplar do carretel [...[ é o bom menino que tem todos os fios nas mãos: ele lança e puxa de volta para si, dispersa e reúne, ele reúne a reunião e a dispersão, o trabalho e a brincadeira; trabalha o trabalho psíquico de reunir a energia dispersa, excessiva, “buscando” o enlaçamento (binden) a uma representação. Não obstante, há o resto: energia livre móvel, que não se liga de modo nenhum.

Esse “bom menino”, ao dispersar, faz operar a separação de sua mãe, de seu pai e de si mesmo, mas também e principalmente, separar-se do complexo suplementar constituído pelo seio materno e seu desejo incestuoso: “Não perturbava os pais à noite”.

Oh, “bom menino”, seu avô observador, sua mãe (filha de seu avô) estavam todos na mesma especulação. O avô não só observou como também interpretou e nomeou sua cantiga, sua sonoridade, seu balbucio, junto, ao lado de sua mãe que sustenta a fala do pai da psicanálise.

Na redobra se faz aparecer a amabilidade estranha da língua.

Redobremos outra vez fazendo aparecer a linguagem e seus silêncios à espera da palavra fulgor.

 

Referências

BARTHES, R. Fragmentos de um discurso amoroso. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.         [ Links ]

BARTHES, R. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Col. Roland Barthes).         [ Links ]

DERRIDA, J. La diseminación. Madrid: Fundamentos, 1997.         [ Links ]

DERRIDA, J. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005.         [ Links ]

DERRIDA, J. O cartão-postal (De Sócrates a Freud e além). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.         [ Links ]

FREUD, S. Além do princípio de prazer (1920). In: ______. Escritos sobre a psicologia do inconsciente (1915-1920). Coordenação-geral da tradução Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p. 135-182. (Obras psicológicas de Sigmund Freud, 2).         [ Links ]

GAY, P. Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.         [ Links ]

LLANSOL, M. G. Entrevistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.         [ Links ]

PAULA, J. Cor’p’oema Llansol. Belo Horizonte: Cas’a’screver, 2016.         [ Links ]

REGO, C. M. Traço, letra, escrita Freud, Derrida, Lacan. Rio de Janeiro: 7 letras, 2006.         [ Links ]

ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: baianaliborio@gmail.com

Recebido em: 19/11/2018
Aprovado em: 27/11/2018

 

 

SOBRE A AUTORA

Maria Helena Ricardo Libório Barbosa Mello
Psicóloga.
Psicanalista.
Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

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