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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.50 Belo Horizonte July./Dec. 2018

 

ARTIGO

 

Função social da psicanálise. Os psicanalistas e a política (brasileira)

 

Social function of psychoanalysis. Psychoanalysts and politics (Brazilian)

 

 

Martín Mezza

I Apertura Sociedad Psicoanalítica de Buenos Aires

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A recente participação dos psicanalistas na conjuntura eleitoral brasileira levantou, mais uma vez, a polêmica em relação à participação do psicanalista na cena pública, ou melhor, trouxe à tona a interrogação sobre nosso lugar e nossa função na sociedade. Este trabalho, escrito no calor da conjuntura mencionada, pretende trazer algumas ideias, ainda que provisórias e circunstanciais, sobre esta realidade.

Palavras-chave: Psicanálise, Política, Crítica Social, Indiferença dos psicanalistas.


ABSTRACT

The recent participation of psychoanalysts at the Brazilian electoral process once more brought the polemics about the psychoanalysts participation at the public scene. Or, better speaking, brought the question about our place and function at society. This paper was written in the heat of the above mentioned scenario, aims to bring some ideas, albeit provisory ones, about this reality

Keywords: Psychoanalysis, Politics, Social Criticism, Indifference of psychoanalysts.


 

Função social da psicanálise e sua crítica

Concordamos com a ideia/diagnóstico de Lacan ([1953] 1998, p. 283-285) de que a psicanálise “desempenhou [desempenha] um papel na direção da subjetividade moderna” e que temos uma responsabilidade (“temível”) quando para “responder à alienação mais profunda do sujeito da civilização científica”, ou seja, o terceiro paradoxo entre linguagem e fala, lhe oferecemos uma “oportunidade suplementar de se alienar, na trindade descomposta do ego, do superego e do id”.

Essa mesma duplicidade estava implícita na interpelação dos estudantes de filosofia, no que diz respeito à função social da doença mental e da psicanálise (revolucionário ou classista). A resposta de Lacan ([1966] 2003, p. 216) coloca tanto a doença mental quanto a psicanálise, no lugar do que resta da função social da ironia,1 ou seja, a capacidade de atingir “a raiz de toda relação social”. Dessa maneira, dirá que, se Freud conseguia alguma eficácia clínica, era justamente por ter descoberto e restabelecido essa função no sofrimento neurótico. E que a psicanálise, que veio suceder à neurose, também passou a descumprir sua função social, e foi ele, Lacan, quem tentou restabelecê-la e, assim, curar-nos dela.

Aqui, podemos ver não apenas a duplicidade (direção da subjetividade e resposta a ela), como o nó que há entre sofrimento e crítica, entre neurose e psicanálise e entre cura e ironia. E é por situar-se nesse nó que a psicanálise vai “além da sua utilização médica” e traz algo que “concerne ao homem de maneira a um só tempo nova, séria e autêntica”, garantindo a persistência do movimento psicanalítico (LACAN, [1958-1959] 2016, p. 383-384).

Como não apreciar que é justamente isso, o que foram a buscar na psicanálise os representantes da escola de Frankfurt, na sua tentativa de renovar a crítica social para alcançar a emancipação? Também mais recentemente, uma variedade de outros projetos seguiram esse caminho. Por exemplo, Judith Butler, ao elaborar sua teoria de gênero e fazer performativo, transformada em um importante alicerce do feminismo; Laclau, Mouffé, Stravaraski e Zizek, para pensar o político; e Agamben, que encontra no inconsciente de Lacan (isso fala) o modelo para pensar a “pobreza ou destruição da experiência” como sofrimento paradigmático da contemporaneidade.

Quando Dunker (2017) defende a tese que “a psicanálise é uma crítica social por outros meios” (transferência, ética, realidade discursiva, etc.), ele recorre à mesma duplicidade apresentada acima. Por um lado, encontra a psicanálise como parte dos modos de subjetivação de ocidente (ideologia) e, por outro, reconhece em Lacan um modelo capaz de alcançar a crítica social mediante a crítica da própria psicanálise e vice-versa.

Aqui se salienta o caráter fundamental que tem para essa crítica o fato de que o psicanalista reconheça parte de suas produções em outras formações discursivas, inclusive em aquelas que são consideradas como desvios. Um dos exemplos mencionados é a teoria performativa do gênero, de Judith Butler, que de algum modo contém a crítica da dupla moral denunciada por Freud e a teoria das formas da sexuação de Lacan. Aqui a crítica social por outros meios se enlaça com a intraterritorialidade discursiva.

Dessa maneira, se afirma coerentemente que uma boa clínica é sempre política, é sempre uma crítica social (ao estabelecer os direitos da ironia no sofrimento, acrescentaríamos nós) e convida a realizar uma análise das modalidades de sofrimentos contemporâneos. Até aqui concordamos. Aí está o nó entre clínica psicanalítica e ordem social. O lugar desde onde Lacan ([1956] 1998) se levantava para criticar o estilo de vida contemporâneo e a psicanálise, fundamentalmente norte-americana, que, de mãos dadas com a prática normalizadora da psiquiatria – o DSM III é prova disso –, colaborava na construção da ética do indivíduo “de sucesso e felicidade”.

No entanto, quando Dunker apresenta o modelo crítico baseado no texto de Freud (Moral sexual civilizada e a nervosidade moderna, 1908),2 parece produzir-se uma torção no argumento principal. Expressamente se diz que esse modelo exprime uma prescrição – crítica normativa forte – sobre os comportamentos sexuais. E embora se aclare que não é o meio habitual dos psicanalistas, não se deixa se sugerir que podemos servir-nos dela para atuar em determinados campos (o exemplo colocado foi o debate em torno à Lei para pessoas com transtornos do espectro autista).

Passamos de considerar a psicanálise como uma crítica por outros meios, a propor – aparentemente – a possibilidade de usar outros meios para a crítica social da psicanálise (crítica normativa forte – prescrição). Por que essa passagem? Na argumentação do autor nada a justifica. Nem a ideia de um “contemporâneo que escapa”, nem a possibilidade de o psicanalista ou a psicanálise atuar em outros campos. Depois de tudo, atuar em outros campos não exige, necessariamente, armar-se de prescrições ou fortalecer-se com normativas.3 Até nas próprias ciências políticas e a filosofia social (compreendem vários dos exemplos mencionados por Dunker), que recortam seu campo de intervenção a partir de uma maior pregnância ontológica, a possibilidade de recorrer a uma crítica normativa forte se vê questionada.

O próprio Honneth (2011), que tende a explorar essa via no debate com Rorty, Walzer e Taylor (modificar as convicções ou preferências axiológicas mediante uma crítica positiva ou externa), não pode mais que incluir as teses epistemológicas de Hilary Putnam para propor, no máximo, uma nova descrição social a partir do uso da linguagem (narrações, parábolas, metáforas, quiasmos, exageração, etc.). Dessa forma, a crítica se limita a produzir aberturas de sentidos que possibilitem a passagem de fatos desconhecidos da vida social.

Essa breve indicação, traz à luz uma dimensão mais estrutural na qual se entrelaçam tanto as ciências humanas quanto aqueles campos envolvidos no destino do homem (desde a política, passando pela literatura e a economia, até a publicidade e a propaganda4). Reconhecê-la permite considerar que o trânsito – do saber psicanalítico ou do psicanalista – por outros campos não supõe necessariamente a adesão a outros meios tampouco à estratificação ontológica ou caracterização com a qual cada campo recorta seus próprios objetos (psicológico, sociológico, cultural, político, etc.).

Acaso as últimas eleições no Brasil não evidenciaram a circulação e a disputa de todos esses campos, incluída a psicanálise, em torno de alterar o curso da história (“a imposição do fascismo ou a permanência dos vermes vermelhos”5) e alcançar as amarras do ser?

Foi Lacan ([1957] 1998, p. 531) quem considerou que esse ponto (as amarras do ser) só se alcança ao tocar em algo a relação do homem com o significante. E, justo nesse momento, nos lembra a destacada participação que teve uma figura “tão pouco dotada para os engajamentos que o solicitavam em sua época ou em qualquer outra”, mas que foi sublime na operação com o logos, como Erasmo de Roterdão na revolução que supus a Reforma Protestante. Será uma indicação indireta para o analista? Podemos entender essa ação sobre o logos, a relação entre o homem e o significante, como o lugar proposto por Goldenberg (2016) para o psicanalista atuar no campo social e político: não à margem senão na margem?

 

Sobre campos: imersões e incursões

Consideramos não muito controverso começar afirmando que a psicanálise surge no bojo entre loucura/doença e sexualidade, exprimida na tensão entre medicina (neurologia) e psicologia. Dois dispositivos e duas disciplinas, consideradas por Foucault ([1976] 2003, [1964] 2009) ao indagar a passagem do poder do soberano para os dispositivos disciplinares do micropoder (individualizantes) e a bipolítica que capta o corpo da espécie, não sob as modalidades repressivas senão sobre multiplicação e administração da vida.

Nessa conjuntura, Foucault ([1976] 2003, p. 182) não só outorga à psicanálise o já comentado lugar nas estratégias do poder, senão também a “honra política de se opor ao fascismo”, uma vez que restituiu a “lei do sistema de alianças [ordem simbólica] na sexualidade”, no momento que se “fazia da pureza do sangue o exercício do poder político” [referência ao nazismo]. Se aceitarmos essa localização histórica e ainda acreditarmos que somos praticantes da ordem simbólica, não precisamos nos fantasiar de animais políticos (psicanalista cidadão) para achar num suposto exterior a dimensão política de nosso campo.

No congresso de Madrid, esse ponto foi levantado no preciso momento em que Miller (2017), sem motivos claros e argumentos sólidos, anunciava uma nova etapa da psicanálise ao entrar diretamente no campo da política. Ana Castaño lembrou que a saúde mental é um campo político em disputa.

Lacan (1956) já tinha claro isso desde muito cedo. Assim, diagnosticava que o sonho – projeto – do “fabricante de autômatos” da modernidade, opera tanto pela biopolítica (homenzinho que está dentro do homem e que faz com que a máquina funcione) quanto pela “captação da insondável decisão do ser” mediante a lei de nosso devir: “chega a ser tal como você é: idêntico a si mesmo” (renovação dos dispositivos disciplinares).

Onde lida a psicanálise com essa realidade que não podemos chamar de outra forma senão de política? Qual o campo de batalha? Dirá Lacan, no meio das disputas entre psiquiatria e neurologia – campo social e científico –, que não deixam de comprometer nosso objeto. Teremos que dizer que essa ameaça se apresenta sob os modos de uma conciliação, nas atuais neurociências?

Agora bem, o nosso objeto também pode ser ameaçado desde outras modalidades de management coletivo, já que “[...] a questão do desejo permanece no primeiro plano das preocupações dos poderes” (LACAN, [1958-1959] 2016, p. 441). Jorge Alemán (2016), que há muito tempo vem trabalhando na proposta da izquierda lacaniana,6 vê no neoliberalismo a primeira formação sócio-histórica que tem por finalidade alcançar a constituição do sujeito e, assim, intervir diretamente na produção de subjetividades.

Nesse ponto, Lacan ([1946] 1998) deu uma importância capital aos empreendimentos – técnico-científicos – que pretendiam manipular a “imago”. E dessa forma, trocar o “verdadeiro em loucura” a partir de produzir ideais à prova da crítica e articular “[...] num mesmo psiquismo com um projeto de vida tão avesso ao juízo lógico e à consciência moral [...]” que leva tanto à loucura como à produção de “[...] um fascista ou, mais simplesmente, um imbecil ou um trapaceiro” (LACAN, [1946] 1998, p. 161).

Como não ver aqui uma avenida aberta para o psicanalista articular o campo do juízo lógico (sujeito do logos) com a dimensão da moral social? Como não pensar ética e moral a partir da superfície de uma fita de Moebius? Enfim, como não perceber aqui uma nova aproximação entre as figuras próprias de nosso campo – loucura e verdade – e as figuras morais que percorrem o campo sociopolítico – fascista, imbecil ou trapaceiro?

De fato, basta com abrir o Seminário 7 para compreender que, sob o sintagma “ética da psicanálise”, não se faz outra coisa senão explorar ao máximo a novidade contida na experiência freudiana. Novidade que recai sobre o quê? “Sobre alguma coisa que é, ao mesmo tempo, muito geral e muito particular”, ou seja, o sujeito que nos endereça uma demanda e o homem de nosso tempo. Dessa maneira, chama-se a atenção para o fato que é “impossível desconhecer que estamos mergulhados nos problemas morais propriamente ditos” (LACAN, [1959-1960] 2008, p. 11-12).

Contudo, como não pensar que os meios utilizados – a arte da imagem – na disputa eleitoral,7 não chegaram até o extremo da imoralidade e da oposição ao juízo lógico na manipulação técnica das chamadas fake news?

Como ignorar que colaboraram na já presente inibição da capacidade crítica, não apenas da consciência individual, senão também das instituições da democracia (TSE)?

Enfim, como desconhecer que, para questionar uma política econômica, recorreu-se a uma moral, cujo bafio de pureza ameaça as identidades coletivas marcadas pela sexualidade e pela raça?

Se esse diagnóstico toca em algo a realidade, como o psicanalista de hoje se exime de desenvolver a honra política da psicanálise por medo de perder um fictício lugar de neutralidade?

 

Psicanálise em intensão e extensão (pure e appliquée)

Nem o próprio Lacan, claramente errado para nosso entendimento, tentou remover essa infeliz e imprópria oposição exprimida em significantes não menos inconvenientes no seu projeto da Escola Freudiana de Paris (EFP). Esse projeto visava refundar o trabalho do psicanalista. O máximo que conseguiu foi introduzir uma diferença – igualmente esquecida pelos psicanalistas –, que se caracteriza por valorar o trabalho teórico para reabrir a verdade inaugurada pela experiência freudiana.

Na seção de psicanálise pura, buscava-se realizar uma “crítica contínua da práxis e da formação do psicoanalista”, mediante um confronto permanente entre “des personnes ayant l’ expérience de la didactique et des candidats em formation”, minando, dessa forma, a hierarquia dos primeiros.

Já na psicanálise aplicada, se favorecia uma crítica permanente das modalidades e resultados da terapêutica. Lembremos que, sempre que levantamos essa oposição, esquecemos uma terceira seção que tinha por finalidade realizar uma censura crítica de todo o publicado em nosso campo, assim como uma atualização permanente dos princípios da práxis analítica nos estatutos da ciência – sem dúvida alguma, um significativo esquecimento.

Tomados pelo espírito lacaniano e imbuídos do clima eleitoral, atualizamos nosso saber sobre o senso comum psicanalítico a partir de uma pequena amostra.8 O resultado, nada surpreendente, indicou que se considera a psicanálise em intensão como a clínica praticada no consultório do analista; e psicanálise em extensão, aquela prática clínica, algo degradada ou impura, que se pratica fora do consultório (às vezes também foi considerada como o diálogo com outros saberes).

Essa ideia, além de afastar das formulações de Lacan centradas no trabalho de doutrina, apresenta ao psicanalista como um sujeito subsumido a uma empiria técnica (clínica), enquadrada nos limites das profissões liberais.

Gostaríamos de propor que essa topologia, uma clínica como divisa entre o interior e exterior, tem como alicerce uma ficção de autossegregação, em cuja montagem participam vários elementos, dos quais trabalharemos rapidamente os dois mais importantes: (a) política do silêncio e clínicos (técnicos) medíocres; (b) a extraterritorialidade do psicanalista.

O esforço desmedido do psicanalista por afastar sua práxis de qualquer ideal, desemboca, paradoxalmente, no ideal obsoleto da prática médica: a clínica como soberana. Limitado pelo empirismo ingênuo das quatro paredes do consultório, o psicanalista crê ver na clínica do caso a caso, a fonte da qual brotam todas as noções, conceitos e até o próprio psicanalista. Psicanalista se faz em análise, se repete constantemente, aprofundando o contrassenso de uma experiência inefável inscrita no campo da linguagem e na função da fala (MEZZA, 2018).

Lacan ([1956], 1988 p. 469) via nessa situação a inclusão de “postulados psicológicos” e de uma “autoridade sem comparação em toda a ciência”. Por isso, desafiava a “esclerose mental” ou a “presunção” do psicanalista, mediante a figura do não analista (candidatos a psicanalistas) para o “controle do ato analítico” e através da provocativa lembrança da “análise original”, onde o psicanalista era Fliess – um “medicastro, o titilador de narizes” (LACAN [1967] 2003, p. 258). Por que não pensar que algum dia alguém – talvez meu amigo psicanalista e escritor Edgardo Scott? –, nos divirta um pouco com um “remake” de Le médecin [analyste] malgré, de Molière, ou Laus stultitiae [candidat], de Erasmo de Roterdão.

De qualquer forma, esse ideal não se suporta apenas na epistemologia empirista ou no que ela contém de adesão freudiana ao método clínico da escola francesa – a neurologia clínica de Charcot. O que está em jogo aqui é uma política institucional, que produz o analista institucionalizado.

Lacan ([1967] 2003, p. 263) caracterizou essa política a partir do “silêncio” elevado à “Lei suprema” e da finalidade explícita de produzir “cem analistas medíocres”, que devem se entender como “desintelectualizados” (Mezza, 2018). A alteridade proposta pela instituição psicanalítica para seu candidato, aquela a que Lacan se opôs, era a da figura do “técnico” da divisão do trabalho da ordem capitalista (LACAN, [1956] 1998, p. 478-481). A vigência dessa política é sublinhada por Roudinesco (2012), quando, ao caracterizar o funcionamento presente de nossas instituições, indica que os psicanalistas deixaram de ser intelectuais para ser “médicos do sofrimento psíquico”, “trabalhadores do psiquismo” ou, simplesmente, “psicoterapeutas”.

Já a extraterritorialidade não é apenas a posição dominante em nossa comunidade, como tem se tornado um imperativo para o psicanalista. Forbes (2012) e Miller (2005), para citar apenas duas referências, contribuem nessa orientação quando afirmam que foi Lacan quem levou o psicanalista até a extraterritorialidade científica e social. Na verdade é o psicanalista de antes e de agora, que escolhe se posicionar na extraterritorialidade, apesar dos reiterados esforços de Lacan por modificar essa situação.

Lacan não apenas criticava a extraterritorialidade do psicanalista como também a restringia à ciência. Para ele, o psicanalista se armava de uma ficção jurídica portanto simbólica (a extraterritorialidade), para poder estar isento das leis do local onde efetivamente está – o campo científico. É essa ficção que permite ao psicanalista manter seus “privilégios” no campo do saber; e não a particularidade do seu objeto, nem de seu método (embora precisem de reconhecimento). Lacan explica essa posição extraterritorial a partir de dois traços do judaísmo presentes nas filas da psicanálise: a autossegregação como modo de proteção contra o nazismo e a rejeição do saber por parte da tradição antiga do judaísmo, caracterizada como uma obediência cega, uma fé completa [emunáh] (MEZZA, 2018).

Por isso, valoramos a proposta de Laurent (1999) do psicanalista cidadão [poleikon], sobretudo como figura retórica (quiasmo), que possibilita olhar para o “ostracismo do psicanalista” e questionar sua intensão extraterritorial. Mas, no que diz respeito aos campos e às modalidades de participação sugeridas para a intervenção do analista, mantemos uma reserva que não poderemos tratar aqui por exceder os objetivos deste trabalho.

 

Conclusão

Pensamos que os argumentos apresentados contribuem tanto para considerar seriamente a participação da psicanálise e dos psicanalistas em diversas conjunturas sociais, quanto para melhor orientar as modalidades das intervenções. Contudo, queremos dizer que discordamos dos argumentos que visam defender a participação social e política do analista em função da gravidade que admite a suposta ameaça do fascismo; uma espécie de último recurso – egoísta – que tem por finalidade defender as condições – mínimas – de nossa práxis.

Entendemos que uma posição como essa não apenas desconhece a função social e política da psicanálise, indo ao encontro da indiferença do psicanalista alienado na alteridade dos técnicos, como também apresenta uma relação paradoxal com o estado de exceção em que se exprime a vida social contemporânea.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: mezzamartin@yahoo.com.ar martinmezza@hotmail.com

Recebido em: 13/11/2018
Aprovado em: 21/11/2018

 

 

SOBRE O AUTOR

Martín Mezza
Psicanalista argentino, atualmente residente em Salvador (BA).
Membro de Apertura Sociedad Psicoanalítica de Buenos Aires (Argentina).
Mestre em Saúde Mental Comunitária pela Universidad Nacional de Lanús (UNLa - Arg).
Doutorando no Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Trabalha com clínica de adolescentes e adultos.
Vinculado aos movimentos de reforma psiquiátrica.
Foi professor da Universidad de Buenos Aires (UBA).
Trabalhou na gestão de saúde.

 

 

1 O leitor com pouca intimidade com o tema pode recorrer aos primeiros capítulos da História da loucura, de Foucault ou ao O elogio da loucura, de Erasmo de Roterdão.
2 A elevação desse texto ao estatuto de modelo crítico supõe uma discussão que excede o objetivo deste trabalho: é um modelo crítico? Se for, é eficaz ou coerente com nossa ética? Deveríamos mantê-lo apenas por ser freudiano ou deveríamos abandoná-lo por ser obsoleto? De qualquer maneira, não poderíamos desconhecer que se encontra próximo às estratégias do poder envolvidas no controle e registro da sexualidade tal como descritas por Foucault ([1976] 2003).
3 Também Laurent fica próximo dessa posição, quando apresenta a extensão indefinida da atuação do psicanalista.
4 Disciplinas mencionadas por Lacan.
5 Reproduzimos os modos linguísticos utilizados socialmente.
6 A ideia de Alemán é levar Lacan até a esquerda e não levar a esquerda até a psicanálise. Dessa forma, pretende colaborar na renovação do projeto emancipatório e evitar os desvios totalitários em que os comunismos desembocaram.
7 Utilizada pela propaganda política e empresarial em toda a sua extensão, ou seja, não é privativa de um partido político, nem mesmo da política.
8 Pedimos a cinquenta psicanalistas (argentinos e brasileiros) que dissessem brevemente e sem consultar bibliografia o que entendem por psicanálise em intensão e extensão.

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