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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.50 Belo Horizonte July./Dec. 2018

 

ARTIGO

 

Psicanálise e odontologia para bebês

 

Psychoanalysis and the dentistry for babies

 

 

Ricardo Azevedo BarretoI; Mara Augusta Cardoso BarretoII

I Hospital São Lucas
II Universidade Tiradentes

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho objetiva fazer articulações da psicanálise com a odontologia para bebês, destacando que a internalização de contribuições psicanalíticas é primordial para uma ampliação do pensamento no que concerne à área de saúde, mais especificamente à odontologia para bebês. São enfatizadas concepções de sofrimento e ambiente suficientemente bom para trabalhos ampliados no terreno interdisciplinar dessas áreas.

Palavras-chave: Psicanálise, Odontologia, Bebês.


ABSTRACT

This paper aims at making articulations between psychoanalysis and dentistry for babies, highlighting that the internalization of psychoanalytic contributions is primordial for the amplification of thoughts regarding the area of health, more specifically to dentistry for babies. Concepts of suffering and good enough environment are emphasized to expand works at the interdisciplinary fields of the aforementioned areas.

Keywords: Psychoanalysis, Dentistry, Babies.


 

Por força do inconsciente e de outras influências no campo da saúde, o relacionamento entre profissionais, pacientes e acompanhantes fica – não poucas vezes e nos mais diversos contextos –, em papéis cristalizados que dificultam a compreensão do humano, obstruindo possibilidades e obstaculizando um trabalho criativo em que o sujeito seria o protagonista.

No campo da saúde, é comum uma multiplicidade de tecnologias e práticas para a resolução de problemáticas. São facilmente escutados doença, sintoma e tratamento, entre outros significantes, nas estratégias de raciocínio de profissionais da área.

Os espaços concedidos à subjetividade e aos conceitos psicanalíticos não ocupam comumente um realce, determinando as ações em prol da saúde que se inscrevem habitualmente na lógica da objetividade e de alguns níveis de atenção determinados. Distintamente do pensamento psi, a abordagem teórica na área da saúde não é habitualmente tão enfatizada quanto os procedimentos técnicos em muitas intervenções.

Desse modo, a internalização de contribuições psicanalíticas é primordial para uma ampliação do pensamento no que concerne à área de saúde. A psicanálise pode mobilizar as práticas, a escuta e as condições da comunicação nos mais diversos níveis e contextos da assistência em saúde.

Nesse sentido, há o reconhecimento de que o investimento em relacionamentos humanos no campo da saúde pode provocar transformações profundas. Com tal pano de fundo, desejamos estabelecer algumas articulações da psicanálise com a odontologia para bebês.

 

Psicanálise e odontologia para bebês

O futuro da psicanálise e de sua clínica é uma problemática sistêmica. Absorve muitas influências e nos leva a um paradigma de complexidade (BARRETO, 2017).

Desse modo, é produtivo pensar em comunicação de áreas de conhecimento distintas, como a psicanálise e a odontologia.

Como a odontologia contemporânea tem se ampliado para além das ideias de tratamento dos dentes e da boca, a reflexão psicanalítica sobre as práticas odontológicas pode aprimorar-se apresentando novos ângulos de análise e temáticas, e não aqueles que são os mais habituais [...]. Dessa forma, as relações entre áreas distintas do conhecimento inovam-se no tom do movimento pulsante que as institui (BARRETO, 2012, p. 138, grifo do autor).

Ferreira, Pinto e Corrêa (2012) falam, entre outros aspectos, da promoção de saúde no consultório odontopediátrico, sublinhando o trabalho voltado à educação e à prevenção.

Sobre a odontologia para bebês, Walter et al. (2014) mencionam que ela contribui para o desenvolvimento da odontopediatria, constituindo um campo de estudo novo e permitindo uma prática dedicada à manutenção da saúde.

A odontologia para bebês é uma área odontológica com a qual a psicanálise tem muito a contribuir. É um ramo específico da odontopediatria bastante revolucionário. O lema dessa área da odontologia é praticar o cuidado e a prevenção na tenra infância, isto é, dos recém-nascidos até a clientela com três anos de idade, construindo também trabalhos de orientação com gestantes.

Por conseguinte, é uma área que rompe com a visão clássica da saúde. Suas atividades incluem uma visão arrojada da tríade equipe-pacientes-acompanhantes. Na odontologia para bebês, há uma visão de atendimento humanizado que inclui o lúdico e é banhado com amor.

O psicanalista pode ser compreendido como um parceiro do dentista no que concerne a um trabalho odontológico ampliado em equipe, visando à cárie zero, ao desenvolvimento humano global e à saúde integral.

Com a aliança entre profissionais, podem ser percebidos transtornos psíquicos, disfunções familiares, situações de abuso e negligência, entre outros aspectos (BARRETO, BARRETO, CORRÊA, 2017).

O psicanalista na odontologia para bebês pode ajudar com os conceitos e o instrumental psicanalítico por meio de um trabalho integrado. No campo fértil de contribuições da abordagem psicanalítica, enfatizamos noções que nos parecem bem preciosas.

O sofrimento humano é um ponto inevitável da existência. Distintamente de qualquer pretensão de felicidade humana absoluta, Freud ([1930] 1996) mostra que o ser humano sofre. Esse mal-estar é proveniente do corpo, do mundo externo e dos relacionamentos, sendo essa última fonte enfatizada. O pai da psicanálise também aprofunda seu conhecimento sobre o mal-estar do existir, articulando noções de civilização, liberdade e busca de segurança.

De acordo com Freud ([1930] 1996), para o ser humano viver na civilização, houve uma restrição da liberdade em troca de segurança, limitando a felicidade. Esse autor faz referência ainda à luta entre Eros e Tânatos, pulsão de vida e pulsão de morte. Indaga qual deles, afinal, vencerá. Portanto, fica evidente no pensamento freudiano que o ser humano tem que lidar com o mal-estar do existir, o sofrimento.

Com base na perspectiva freudiana, Segre e Ferraz (1997) se referem à renúncia de uma parcela da liberdade pulsional do ser humano em busca de segurança, problematizando a definição de saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS) “[...] não apenas como a ausência de doença, mas como a situação de perfeito bem-estar físico, mental e social”.

Os autores também oferecem diversas outras contribuições para ampliação do olhar no campo da saúde e da qualidade de vida.

Perguntamos:

Como o sofrimento tem sido acolhido na odontologia para bebês, desde o contato com as mães gestantes?

Como tem sido enfrentado o mal-estar da clientela de recém-nascidos?

Como têm ocorrido os atendimentos de pacientes na tenra infância – até três anos de idade – quando choram, chamam pelos pais ou expressam a agressividade?

O sofrimento é só dos bebês ou também dos pais, dos acompanhantes e dos profissionais de saúde?

Com qual visão de saúde os membros da equipe têm trabalhado?

Barreto (2003) fala sobre a afetividade na odontologia para bebês. Desenha o lugar do profissional e de suas práticas, bem como o lugar do paciente e do acompanhante. Entre vários outros aspectos sinalizados, menciona que ocorre, em algumas situações, a indiferenciação. Além disso, comenta que o sofrimento pode não ser reconhecido pelos profissionais em suas práticas em função de uma imagem profissional idealizada que se contrapõe a tal ferida narcísica.

Pensamos que reconhecer o sofrimento implicado na área odontológica é central. Todavia, as atividades lúdicas podem ajudar muito na clínica com bebês, na construção e no fortalecimento dos vínculos, assim como na minimização do sofrer intermediada pelos pais ou acompanhantes.

Além disso, para a psicanálise, o bebê é fundamental para explicar a criança e o adulto. Os atalhos dos relacionamentos interpessoais e do desenvolvimento humano podem provocar muitos efeitos nocivos para a existência humana. Há uma vasta literatura psicanalítica sobre quadros psíquicos sérios oriundos de falhas ambientais na tenra infância.

Portanto, outra contribuição psicanalítica que trazemos para pensarmos na odontologia para bebês é um ambiente suficientemente bom. É central que todos os membros da equipe desenvolvam uma boa maternagem na odontologia para bebês, o que pode ser facilitado pela presença de um psicanalista no setting de atendimento odontológico e/ou por meio de trabalhos psi de atendimento de pacientes, acompanhantes, preparo de dentistas, entre outros exemplos.

Abram (2000, p. 141) explicita:

O reconhecimento das particularidades da boa maternagem é utilizado como um paradigma por Winnicott no setting [...]. As técnicas empregadas pelo analista em sua clínica refletem simbolicamente as técnicas da boa maternagem.

Como sabemos, conforme a abordagem winnicottiana, a boa maternagem é fundamental para o desenvolvimento saudável do ser ou do verdadeiro self. Tal aspecto é central não só para os pais mas também para todas as pessoas e os profissionais que cuidam de bebês, disponibilizando-se a atitudes e gestos de amor.

[...] é extremamente significativo ter uma visão consistente sobre o desenvolvimento humano, sobretudo nos anos de vida que abrangem o bebê e a criança pequena. Sabe-se que os primeiros anos são fundamentais para o desenvolvimento da personalidade que engloba a interação dos aspectos constitucionais com a história de vida de cada ser humano que vai se construindo em sua singularidade desde o ambiente uterino, sendo vital a participação da família em todo o processo de crescimento (BARRETO, BARRETO, CORRÊA, 2017, p. 34).

Enfim, diríamos que qualquer trabalho orientado psicanaliticamente precisa seguir os rastros do inconsciente. O paradigma do bebê e da maternagem nas práticas de cuidado tem muito a fomentar de análises na odontologia para bebês e em outras clínicas ampliadas.

[...] Desse modo, destacamos a importância da atenção ao vínculo com o bebê e à comunicação dele no atendimento, assim como à expressão emocional da gestante na odontologia para bebês (BARRETO, BARRETO, CORRÊA, 2015, p. 87).

[...] a odontologia para bebês [...] pode se beneficiar da psicanálise, entre outros aspectos, através de suas contribuições sobre o bebê. Por fazer trabalhos precoces com gestantes com base em orientações sobre cuidados odontológicos satisfatórios, higienização oral e hábitos alimentares, a odontologia para bebês pode se ampliar também com as contribuições da psicanálise acerca da gravidez e seus aspectos psicológicos (BARRETO, BARRETO, CORRÊA, 2015, p. 86).

Conforme o caminho de interlocuções que trilhamos, a internalização de contribuições psicanalíticas é primordial para uma ampliação do pensamento no que concerne à área de saúde de modo geral e – mais especificamente no que tange ao discutido neste trabalho – à odontologia para bebês.

 

Referências

ABRAM, J. A linguagem de Winnicott. Tradução de Marcelo Del Grande da Silva. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.         [ Links ]

BARRETO, R. A. Sobre a afetividade na odontologia para bebês. Psicologia: ciência e profissão, Brasília, v. 23, n. 1, p. 30-37, mar. 2003.         [ Links ]

BARRETO, R. A. Sobre o futuro da psicanálise no mundo das coisas. Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 48, p. 79-88, dez. 2017. Publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise.         [ Links ]

BARRETO, R. A. Sobre psicanálise, oralidade e odontologia. Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 38, p. 135-140, dez. 2012. Publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise.         [ Links ]

BARRETO, R. A.; BARRETO, M. A. C.; CORRÊA, M. S. N. P. Aspectos psicológicos da criança de até cinco anos de idade: desafios frente ao atendimento odontopediátrico na atualidade. In: CORRÊA, M. S. N. P. Odontopediatria na primeira infância: uma visão multidisciplinar. 4. ed. São Paulo: Quintessence, 2017. p. 33-40.         [ Links ]

BARRETO, R. A.; BARRETO, M. A. C.; CORRÊA, M. S. N. P. Psicanálise e odontopediatria: ofício da comunicação. Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 44, p. 83-90, dez. 2015. Publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise.         [ Links ]

FERREIRA, S. L. M; PINTO, A. C. G.; CORRÊA, F. N. P. Educação do paciente em odontopediatria. In: PINTO, A. C. G. Odontopediatria. 8. ed. São Paulo: Santos, 2012. p. 401-416.         [ Links ]

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WALTER, L. R. F. et al. Manual de odontologia para bebês. São Paulo: Artes Médicas, 2014.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ricardo Azevedo Barreto
E-mail: ricardobarreto@saolucas-se.com.br

Mara Augusta Cardoso Barreto
E-mail: maraabarreto@gmail.com

Recebido em: 10/11/2018
Aprovado em: 10/12/2018

 

 

SOBRE OS AUTORES

Ricardo Azevedo Barreto
Psicólogo graduado pela Universidade de São Paulo (USP).
Tem mestrado e doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP.
Especialista em Psicologia Hospitalar pelo CEPSIC da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP.
Teve experiência de treinamento no Butler Hospital (RI-USA).
Psicanalista. Foi presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (2014-2017).
É um dos editores da revista Estudos de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP).
É coordenador do programa de humanização da assistência e membro do Conselho Administrativo do Hospital São Lucas em Sergipe.
Professor titular da Universidade Tiradentes (UNIT), onde ensina nos cursos de Psicologia e Medicina.
Professor de Psicologia em cursos de especialização na área de Odontologia.
Autor de diversos artigos e capítulos de livros em que articula psicologia, psicanálise e humanização com a odontologia.

Mara Augusta Cardoso Barreto
Especialista e Mestre em Odontopediatria pela Universidade de São Paulo (USP).
Tem estágios, cursos de aperfeiçoamento em Odontopediatria e formação em Odontologia para Bebês pela Universidade de São Paulo (USP).
Teve experiência de treinamento clínico em Odontopediatria e pacientes com necessidades especiais no Rhode Island Hospital (RI – USA).
Professora de Odontopediatria e Estágio Clínico Infantil da Universidade Tiradentes (UNIT).
Idealizadora e coordenadora da Clínica de Bebês do curso de Odontologia da Universidade Tiradentes (UNIT), desde 2000.
Foi coordenadora do II Curso de Especialização em Odontopediatria da Associação Brasileira de Odontologia, seção Sergipe (ABO-SE).
Foi diretora científica da Associação Sergipana de Odontopediatria (ASO).

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