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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.50 Belo Horizonte July./Dec. 2018

 

ARTIGO

 

Considerações psicanalíticas sobre preconceito racial: um estudo de caso1

 

Psychoanalytic considerations on racial prejudice: a case study

 

 

Robenilson BarretoI, II; Paulo Roberto CeccarelliIII, IV, V

I Faculdade Católica Dom Orione
II Conselho Regional de Psicologia Pará
III Société de Psychanalyse Freudienne
IV Universidade Federal de Minas Gerais
V Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto traz reflexões sobre as relações raciais entre brancos e negros no Brasil, e seus desdobramentos psíquicos na construção subjetiva de sujeitos negros. Ancorado no referencial teórico psicanalítico dos processos identificatórios, do narcisismo das pequenas diferenças e em questões ligadas à construção discursiva sobre o preconceito racial, evidencia-se o racismo como fenômeno social. Utilizou-se uma pesquisa realizada por meio de entrevistas semiestruturadas, com dois estudantes da UFPA: uma estudante de nacionalidade brasileira e um estudante de nacionalidade guineense, que foram vítimas de preconceito racial. Os resultados demonstraram existir uma diferença histórica e cultural das experiências vividas pela estudante brasileira e pelo estudante guineense, ambos em Belém, Pará, Brasil.

Palavras-chave: Preconceito racial, Psicanálise, Processo identificatório.


ABSTRACT

This paper brings out reflections on racial relations between whites and blacks in Brazil and their psychic unfolding in the subjective constructions of black subjects. Based on the psychoanalytic theoretical framework of identificatory processes, on the narcissism of small differences, and on issues related to the discursive construction of racial prejudice, racism is studied as a social phenomenon. A research was done through semi-structured interviews, with two UFPA students: one of Brazilian nationality and a student of Guinean nationality who were victims of racial prejudice. The results showed a historical and cultural difference between the experiences of the Brazilian student and the Guinean student, both in Belém, Pará State, Brazil.

Keywords: Racial prejudice, Psychoanalysis, Identification process.


 

Introdução

Este trabalho se baseia em contribuições psicanalíticas para a compreensão do preconceito racial do qual estudantes negros brasileiros e estrangeiros de países africanos são vítimas na Universidade Federal do Pará (UFPA).2 Tomando como ponto partida o conceito do racismo, investigou-se o processo de subjetivação de uma estudante negra brasileira e um estudante negro da república de Guiné-Bissau na UFPA, visando ampliar o universo de compreensão a respeito dos aspectos psíquicos em torno do preconceito racial sofrido na universidade ou na vida cotidiana. Este trabalho está ancorado nos estudos antropológicos sobre o conceito de racismo e preconceito racial tendo em vista os processos identificatórios envolvidos nas relações raciais no Brasil.

As tensões entre diferentes ênfases, concepções e práticas sociais mostram que a questão do racismo é extremamente complexa. Exige de nós um olhar cuidadoso e atento quando nos aproximamos das relações raciais. O racismo se apresenta como um campo ideológico que violenta e nega a condição de sujeito diante da relação com o outro. Atualmente suas facetas são observadas em fenômenos como preconceito e discriminação, que remetem à complexidade da desigualdade, impedindo o desenvolvimento humano integral e a ocupação de espaços sociais e de constituição de poder na sociedade brasileira.

Nesse aspecto, Munanga (2003, p. 6-7) define o racismo como:

Uma ideologia essencialista que postula a divisão da humanidade em grandes grupos chamados raças contrastadas que têm características físicas hereditárias comuns, sendo estes últimos suportes das características psicológicas, morais, intelectuais e estéticas e se situam numa escala de valores desiguais. Visto deste ponto de vista, o racismo é uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas.

Estudos de Fanon (2008), Souza (1983), Nogueira (1998) e Reis Filho (2005) sugerem que o desenvolvimento do sujeito negro na sociedade brasileira é marcado por uma experiência sistemática de discriminação, preconceito e ofensa à cor da pele, o que gera um processo identificatório no qual esse sujeito tem dificuldade de reconhecer a si próprio (BARRETO; CECCARELLI; LOBO, 2017).

Não se reconhecendo como tal, o negro não se identifica com seus elementos culturais, não afirma sua estética corporal e não se vê em elementos identificatórios na sociedade (mídia televisiva, propagandas, entre outros).

Nos filmes pornográficos, esse reconhecimento inevitavelmente passa pela exposição e pela hipersexualização do corpo negro (mulher/homem) como uma marca do preconceito no imaginário social. Nos filmes pornôs, o homem negro é quase sempre valorizado pelo tamanho de seu órgão sexual, e a mulher negra é apresentada como fogosa e boa de cama em propagandas e programas televisivos (BARRETO; ESBER, 2019). Dessa forma, o não reconhecimento desse lugar não os faz reconhecer a si próprios, colocando-os como algo negativo e desvalorizado.

Nessa perspectiva, a edificação do discurso ideológico sobre a construção identitária do negro na sociedade se configura num prejuízo nas relações de identidade pautadas na hegemonia de referências identificatórias de uma cultura eurocêntrica.

A dinâmica desses processos será o ponto de ancoragem desta discussão, que aborda questões cruciais: o conceito de identidade em psicanálise e o mecanismo de identificação na construção dessa identidade. Para a psicanálise, o conceito de identidade só pode ser pensado de maneira dinâmica por ser dependente dos processos identificatórios (CECCARELLI, 2013).

Entre os elementos aí presentes, que oferecem possibilidades de representação às pulsões, estão os ideais sociais. Entretanto, quando esses ideais não levam em conta os mitos de origem, no caso, as referências que representam a cultura negra no Brasil, o encontro entre esses ideais e os mitos pode produzir efeitos traumáticos ou mesmo desorganizador.

É neste sentido que falamos de “perda identitária”: sendo a identidade um processo dinâmico sustentado pelas identificações constitutivas do Eu (FREUD, [1923] 1976), a perda de referências identificatórias paralisa a circulação pulsional, pois o novo universo simbólico em que o sujeito se vê inserido é gerador de angústia. Este estado de coisas pode produzir efeitos devastadores no sujeito, pois afeta diretamente os conteúdos recalcados, fazendo com que a ligação afeto/representação se desfaça (CECCARELLI, 2007, p. 189).

Este trabalho contou com a escuta fora do espaço clínico analítico de dois estudantes negros: um da República da Guiné-Bissau e uma do Brasil. A coleta de dados foi feita através de entrevistas semiestruturadas, que, além de um instrumento fundamental do método clínico, são uma técnica de investigação dos fenômenos psicológicos (BLEGER, 2007).

As entrevistas3 trouxeram duas dimensões fundamentais na constituição de sujeito na perspectiva psicanalítica freudiana: a construção dos referenciais identificatórios apresentados em uma cultura hegemonicamente eurocêntrica, branca e machista, e a história do sujeito como elemento fundador na sua constituição e na construção dos ideais.

A partir desse ponto, a análise das entrevistas foi composta em dois momentos, por meio de cenas da vivência desses sujeitos durante algum momento da vida, sobretudo na UFPA como espaço potencializador de enfrentamento do preconceito e como o lugar que guarda todo privilégio expresso pelo racismo institucional por parte de funcionários, professores, estudantes e da própria estrutura da universidade.

 

Entrevista4 I - Carolina Maria de Jesus
Cena 1 - Construção identitária: reconhecendo sua origem mediante o preconceito

A origem do sobrenome de Carolina Maria de Jesus é alemã, pois sua mãe descende de alemães. Aqui começa a trajetória de construção do processo identificatório de Carolina Maria de Jesus, que se revelou por meio de um trabalho escolar para estabelecer sua árvore genealógica.

Eis que se insta um conflito como revela Carolina Maria de Jesus:

Era difícil explicar dentro da escola [...] de onde é que vinha o meu nome. Como eu ia explicar, como negra, que eu tenho um sobrenome alemão?

Como sabemos, o Eu se constitui e se diferencia através de uma série de identificações (FREUD, [1921] 1976), que são processos psicológicos pelos quais um aspecto, uma propriedade ou um atributo do outro é assimilado e se transforma total ou parcialmente, segundo o modelo dessa pessoa. Assim, a identificação é definida como “[...] a mais remota de uma expressão de um laço emocional com outra pessoa” (FREUD, [1921] 1976, p. 133).

Mais adiante, Carolina Maria de Jesus aponta uma desordem psíquica na relação com sua mãe diante do seu fenótipo manifestado pelas interpelações dos colegas de sala:

Além disso ser difícil, eu ficava com uma coisa na minha cabeça [...] minha mãe é branca, é completamente diferente de mim. [...] eu tinha receio de andar com minha mãe na rua e pensarem que eu era adotada porque, quando eu falei disso na escola pela primeira vez, [...] Uma encarnação dos coleguinhas que riram quando eu disse ‘olha, esse nome é um nome alemão, eu descendo de alemães também’. Meus colegas riram da minha cara, disseram que era mentira, a professora, eu lembro vagamente... Não lembro direito se ela soube lidar, mas acredito que não, porque eu lembro que as risadas foram constantes quando eu falei sobre isso.

Dahia (2008) nos apresenta em seu artigo A mediação do riso na expressão e consolidação racismo no Brasil, a possibilidade de uma reflexão diante de uma das realidades brasileiras frente ao racismo. O riso desempenha um importante papel mediador inscrito na fronteira entre realidades distintas: o psíquico e o social, o consciente e o inconsciente, o jocoso e o sério. O riso é capaz de articulá-las de forma a contribuir para o encobrimento e a consolidação do racismo colado no mito da democracia racial. A autora revela ainda que o riso derivado da piada racista é portador de uma ambiguidade que, dificultando uma definição precisa de sua natureza, permite a ele transitar entre realidades distintas.

O discurso jocoso parece ser uma das possibilidades peculiares ao brasileiro de resolver conflitos identitários na vivência de suas relações raciais. Para Freud ([1905] 1976), o chiste e seu efeito humorístico são os mesmos mecanismos da condensação e do deslocamento, pelos quais o inconsciente se apresenta como nos sonhos, nos atos falhos e nos sintomas. Se o chiste está estruturado como uma formação do inconsciente, ele é, por isso mesmo, um trânsito para que alguma coisa da ordem do recalcado abra passagem e se mostre.

O chiste atua como álibi de alguma verdade do sujeito que, até então, não fora possível de ser dita: “tudo o que se tem a dizer é dito no chiste” (FREUD, [1905] 1976, p. 23). Essa verdade, ainda não elaborada por crianças mas já manifestada pelos ideais identificatórios de uma sociedade preconceituosa e da cultura, mostra sua relação com o inconsciente. Aquela cena, que marcou a sua infância e adolescência, começou a gerar inquietações em Carolina Maria de Jesus.

E daí, desde então, eu comecei a sentir um pouco de incômodo na minha infância quando eu era vista do lado da minha mãe, de falarem assim ‘ah, deve ser adotada’, e tudo mais. [...]. Ficou durante muito tempo mesmo na minha cabeça ‘ai, será que é filha, num sei o quê? É da família e tal.

Ao seguir contando a história da sua família, Carolina Maria de Jesus vai resgatando as memórias e as lembranças de sua árvore genealógica até que conta a história do seu pai e revela:

Não convivia com meu pai. Ele se negou durante muitos anos a assumir paternidade, era negro, tinta forte, família dele toda é uma família de negros que vem do Acará5 [...]. Tudo que eu sabia do meu pai a minha mãe que me dizia porque eu perguntava pra ela [...] O meu pai também tinha o problema de aceitação de identidade muito grande. Porque, ele, por exemplo, não gostava de estar no lugar onde tinham pessoas negras. Ele não se sentia bem como negro.

Ao falar sobre seu pai, Carolina Maria de Jesus nos traz de imediato duas construções para se pensar sobre sua relação com o pai e o que chama de problema de aceitação de identidade de seu pai.

Freud ([1919] 1976), no texto Uma criança é espancada, mostra que a introdução do pai na vida da criança vai marcar significativamente e de forma determinante na sua organização psíquica. Para a psicanálise, o pai é percebido como o elemento que corta o vínculo simbiótico entre a mãe e seu bebê, tão necessário num primeiro tempo de uma estruturação psíquica. O pai é o representante da lei que convoca ao desejo, à singularidade, à apropriação do campo simbólico (campo da palavra e dos significantes). É a lei que instaura o espaço criador, espaço facilitador das operações simbólicas.

Entretanto, a representação e o lugar do pai na vida de Carolina Maria de Jesus recaem coincidentemente sobre a segunda questão mencionada: o problema da aceitação sinalizado teoricamente no processo identificatório do sujeito, que Carolina Maria de Jesus manifesta assim como o pai.

Desse modo, percebe-se que o sofrimento diante do racismo violenta Carolina Maria de Jesus e seu pai de forma constante e sistemática por uma dupla determinação: encarnar o corpo e os ideais de ego de um sujeito branco e recusar, anular e negar a presença do seu corpo negro (SOUZA, 1983).

 

Entrevista II - Clennon King Jr.
Cena 1 - História, mito e identidade: a importância da construção discursiva para o sujeito

Clennon King Jr. introduz em seu relato, as primeiras impressões ao começar estudar, na busca de entender a história dos negros no Brasil. Fala das primeiras contradições sobre a história de um povo. A construção e o reconhecimento da história de um povo são fundamentais para formação cultural de sua nação (na África).

Aqui Clennon King Jr. nos mostra que existem alguns aspectos que alicerçam essa posição contraditória: o discurso de superioridade da raça e da ideia de raça inferior (como observamos anteriormente) na construção discursiva do preconceito racial constitui uma justificativa para a dominação e a exploração de povos e principalmente a negação da história de povo em cujo elemento se funda a cultura.

Este último aspecto nos remete novamente aos processos identificatórios já apontados neste trabalho. Qual objeto identificatório terá o(a) brasileiro(a) diante de uma história negada ou diante do ideal de ego branco sustentado pela sociedade e reproduzido pelos próprios sujeitos negros na medida em que repetem o imaginário do branco?

Do ponto de vista da formação cultural, Clennon King Jr. nos alerta que a história contada pelos brancos nos remonta à ruptura dos aspectos mitológicos de uma origem ancestral, uma história de uma África que não é contada.

Assim Clennon King Jr. nos conta:

Acabei tendo oportunidade de estudar história aqui do Brasil, em geral, de um modo que eles apresentam os africanos e afrodescendentes começa na escravidão, eles associam o negro com escravo, de que os negros são a raça inferior. Claro que é uma pregação que foi implantada no século XV, mas antes disso a África tinha muitos impérios, muitos reinos que nós conhecemos. Mas infelizmente essa história é escondida, que eles estão simplesmente em querer mostrar uma hegemonia medíocre, uma hegemonia sem fundamentos, né?

Clennon King Jr. é guineense. Chamou-me a atenção o significado do seu sobrenome como uma possível relação com sua identidade e sua história no país Guiné-Bissau. Trarei a história do seu nome como um dado importante e significativo para compreendermos como a história de um povo pode assumir um lugar de enfrentamento e resistência em meio aos discursos de preconceito racial no Brasil.

Seu sobrenome tem significados e histórias diferentes na construção subjetiva de Clennon King Jr. como sujeito estrangeiro e negro vivendo no Brasil.

Eu sou descendente dos... Do Império Mandinga, de Saraculês, então a minha etnia surgiu através da degradação do império de Mandinga. É um grupo de guerreiros que saiu e formou um grupo, que começou a viver de uma forma anarquista, entendeu? [...] na região de Guiné Bissau, Gâmbia e Senegal. [...] Era um reino, que era o reino de Mali dominado pelos Mandingas, então depois da desintegração desse Império, que acabou sucedendo o Império de Gana, não estou lembrando, esses guerreiros formaram um grupo e começaram a viver de forma anarquista, rejeitando qualquer forma de submissão, de domínio de qualquer natureza. Então com a chegada dos portugueses, é uma etnia que deu resistência, e, aliás, essa etnia de nome Balanta significa os que resistem à única etnia que os portugueses não conseguiram dominar. E na luta pela independência era a etnia que fazia parte de 90% de todos os soldados, ou seja, uma espécie de luta de portugueses contra Balanta, que é da minha etnia. Só que depois da independência criou aquela estigmatização, e começou um sistema montado onde as pessoas daquelas etnias não ganhavam mais bolsas de estudos, uma coisa bem estrutural e hostil, porque eles de certa forma queriam... Vandalizar essa etnia de todo custo. [...] E eles acabaram estigmatizando essa etnia. Só que acabei não tendo o sobrenome da minha etnia porque se eu tivesse, como aconteceu com meu pai, ele tem o sobrenome da minha etnia, ele foi cortado de bolsa de estudos pela união soviética. Então ele pensou nisso e falou ‘não vou colocar nos meus filhos esse sobrenome pra poder dar mais abertura e não criar aquela resistência.’ Ele só botou ... já é o nome da minha etnia que é o nome do meu pai. Porque lá tem muito esse negócio de colocar nome referindo a alguma situação, alguma coisa e tudo mais. Aí ... significa ‘eu sou melhor que você’. Quando a minha avó separou do meu avô, e o meu pai nasceu, a minha avó colocou o nome dele assim, pra dizer pro meu avô que ela é melhor que ele.

Temos aqui um relato importante para pensarmos a questão do preconceito étnico. Não se observa no relato de Clennon King Jr. uma relação histórica de preconceito de cor na Guiné-Bissau, mas um fundamento histórico de conflitos étnicos gerador de preconceitos.

Obviamente nosso objeto de pesquisa é o preconceito racial, contudo não poderíamos deixar de ‘escutar’ as manifestações do inconsciente a respeito da produção do discurso sobre as relações étnicas em África sob o ponto de vista dos afetos.

Nesse contexto, Clennon King Jr. é constituído dos ideais de fundam uma instância da personalidade resultante da convergência do seu narcisismo (idealização do ego) e da identificação com seus pais, com os seus substitutos e com os ideais coletivos. Como instância diferenciada, o ideal de ego constitui um modelo a que o sujeito procura se conformar (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001).

No relato apontado por Clennon King Jr. encontramos, de forma evidente, as instâncias convergentes e conflitantes para constituição do ego do sujeito nascido em determinada cultura. Nesse caso, a relação com seu pai, seus avôs e com os ideais culturais de sua etnia em divergência com a história e os ideais de cultura de outra etnia.

Portanto, o relato de Clennon King Jr. confirma a posição anteriormente sinalizada por Ceccarelli (2000) nos termos da origem do preconceito como parte constitutiva do psiquismo, inerente à condição humana. Em diversas passagens da entrevista, Clennon King Jr. nos mostra a relação do preconceito étnico com mais frequência e de forma mais evidente.

Clennon King Jr. segue nos alertando sobre a importância da história como aspecto mitológico para constituição dos ideais na sociedade guineense, na diáspora ou na relação com esse Outro.

O que se vê aqui é que a história é contada de forma distorcida, parece um filme cortado numa determinada cena, a gente não sabe o início nem como é que finalizou. E infelizmente os negros brasileiros, nossos irmãos, eles acabam, de certa forma, sendo vítimas dessa história. Porque você sendo negro brasileiro, entrando na sala de aula e escutando a única coisa que falam sobre você, da escravidão, da humilhação, e hoje da miséria, não é uma coisa bacana. Isso de certa forma não cria nenhuma autoestima. [...]. Mas claro, é uma construção de um país que ainda é dominada pela população negra, e essa história é renegada, ninguém conhece, que deveria ser patrimônio mundial, pra mostrar o avanço, o conhecimento do povo africano. [...]. Lá [Guiné-Bissau] nós somos os donos da nossa história, nós escrevemos a nossa história, não nos submetemos mais àquelas histórias que de certa forma não são totalmente verídicas, ou verdades absolutas, porque nós temos a nossa história, nós escrevemos e nós somos ensinados essa história. [...]. Inclusive a gente sai da África com uma mentalidade de enxergar uma pessoa branca, caucasiano, com o mesmo olhar que eu enxergaria o negro Iorubá. Porque pra nós não existe nenhum ‘oh!’, não existem, olhos azuis e os caralho... Não existe isso. É isso que eu acho interessante. [...]. Nós temos um olhar totalmente diferente, um olhar totalmente que eu diria... divergente da forma que é ensinada aqui, porque nós sabemos que a dignidade de uma pessoa não tem que estar atrelada na produção pouca ou em grande quantidade de melanina. Porque quando a gente faz esse julgamento, é um julgamento infame, é um julgamento injusto. É um julgamento de uma sociedade doentia, de uma sociedade desequilibrada. [...]. Porque, aliás, a nossa independência não foi um mero ato político, foi onze anos de luta armada, expulsamos eles, essa história que nós contamos. Então jamais nos derrotamos de certa forma, entrou no nosso continente de forma sutil, querendo negócio, aí plantaram e disseminaram raiz, uma espécie de câncer silencioso.

Segundo Freud ([1932] 1976), os mitos são analogias à compreensão do mundo externo e, a partir da identificação, repercutem no conteúdo sintagmático individual, interferindo nas representações identitárias de cada um. E assim como o mito de origem explica a criação do mundo, as histórias ancestrais dos povos africanos mantêm um lugar no imaginário social dos povos na diáspora e dos seus descendentes brasileiros.

Ceccarelli (2012, p. 32) afirma:

Os mitos, cujas origens se confundem com a dos homens, representam o capital fantasmático de uma cultura. Graças à cosmogonia que sustentam, cria-se um ponto de partida que permite fundar historicamente a origem do homem, dos animais e das coisas, assegurando a passagem do caos à ordem [...]. Os mitos têm os mesmos estatutos que o da realidade psíquica: são relatos que oferecem representações às pulsões [...] cumprem uma importante função ideológica: a de representar a ordem simbólica, que sustenta a social, como sagrada, universal e imutável.

Para Lindenmeyer e Ceccarelli (2012), os ideais culturais servem de base às traduções que darão sentido aos movimentos internos, oferecendo suporte identificatório à criança, cujas fronteiras narcísicas estão balizadas pela alteridade e atravessadas pelo desamparo originário e fundamental de todos nós. Recursos úteis àquilo que o homem mais almeja saber: “quem eu sou?”. O “quem eu sou” passa certamente por aquilo que a civilização (o Outro) deseja que sejamos. Afinal, nossa onipotência narcísica sofre agravos constantes, a alteridade vem de encontro à individualidade ao interditar nossos desejos egoístas, desempenhando uma imposição normatizadora.

Portanto, a ausência do laço emocional entre o Eu e o outro é cara ao indivíduo, recordando a severa perda de contato com a realidade observada na psicose, pois o desamparo psíquico, condição antropológica fundamental do ser humano, é insuperável. Frente a isso, constituímos e mantemos ideais intersubjetivos que tomamos como se fossem originalmente nossos.

A cultura elabora suas construções sintagmáticas, um capital fantasmático, a partir da valoração de ideais introjetados devidos à identificação entre o Eu e eles, de forma semelhante à ontogênese.

Ninguém pode ter deixado de observar, em primeiro lugar, que tomei como base de toda minha posição a existência de uma mente coletiva, em que ocorrem processos mentais exatamente como acontece na mente de um indivíduo [...] (FREUD, [1921] 1976, p. 159).

Atualmente, as religiões de matriz africana compõem um exemplo vivo de como a cultura e os mitos fundadores dos povos iorubás no território africano elaboram suas construções sintagmáticas a partir do processo de identificação.

 

Conclusões provisórias

Constatamos que a construção discursiva da história sobre a cultura dos povos e nações se configura como um elemento fundador da constituição dos ideais no processo identificatório de cada sujeito.

Os estudantes entrevistados neste trabalho tiveram a vida marcada por histórias distintas com relação à cultura e sua construção identitária. Esse é o primeiro ponto de reflexão para pensarmos o processo identificatório em diferentes realidades.

Diante disso, percebemos que tanto a estudante brasileira quanto o estudante guineense sofreram preconceitos raciais com modos operantes distintos. Ambos foram impactados de forma diversa.

Contudo, compreendemos também que a negação, o silenciamento e a invisibilidade com que a sociedade brasileira trata a história e a cultura do negro no Brasil têm relevante significado na construção do imaginário social desses sujeitos. Os ideais identificatórios construídos pela sociedade brasileira são ideais de ego branco como única possibilidade de um encontro com sua realidade.

Além de demonstrar os impactos vividos por estudantes na UFPA, este trabalho nos possibilitou debruçar sobre a escuta clínica como psicólogos e refletir sobre ela. Uma escuta mobilizadora para que sujeitos negros, que estejam no consultório ou em qualquer outro espaço resgatem sua narrativa e desenvolvam sua singularidade, tornando-se protagonistas da própria história e adquirindo, com isso, uma consciência crítica capaz de possibilitar que esses corpos negros possam se inserir como sujeitos desejantes e transformadores de uma realidade, que, apesar de antiga, ainda reverbera de forma sistemática e rotineira na contemporaneidade.

Nesse sentido, esperamos que a escuta psicanalítica possa ser reelaborada em cada espaço, em cada encontro respeitando a singularidade histórica de cada sujeito.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Robenilson Moura Barreto
E-mail: robenilsonbarreto@hotmail.com

Paulo Roberto Ceccarelli
E-mail: paulorcbh@mac.com

Recebido em: 10/05/2018
Aprovado em: 20/06/2018

 

 

SOBRE OS AUTORES

Robenilson Moura Barreto
Psicólogo.
Psicanalista.
Especialista em Educação Especial e Inclusiva.
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Pesquisador do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da UFPA (LPPF-UFPA).
Conselheiro Titular do Conselho Regional de Psicologia Pará - Amapá (CRP/10), Belém, PA. (Profissional).
Professor na Faculdade Católica Dom Orione (TO).

Paulo Roberto Ceccarelli
Psicólogo.
Psicanalista.
Doutor em psicopatologia fundamental e psicanálise pela Universidade de Paris 7 - Diderot.
Pós-doutor pela Universidade de Paris 7.
Coordenador do Instituto Mineiro de Sexualidade (IMSEX <www.imsex.com.br>).
Diretor científico do Centro de Atenção à Saúde Mental (CESAME <www.cesamebh.com.br>).
Membro da Société de Psychanalyse Freudienne - Paris, França.
Membro da Associação Universitária de Pesquisa em psicopatologia fundamental.
Pesquisador do CNPq.
Professor Adjunto IV da PUC Minas.
Professor e orientador de pesquisas do mestrado de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência/MP, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Professor e orientador de pesquisas na pós-graduação em psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Sócio do Circulo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).
Sócio fundador do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA).

 

 

1 Trabalho apresentado no XXII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise e na XXVI Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia: Assim caminha a psicanálise: indagações do séc. XXI. Salvador, 18 nov. 2017.
2 O presente trabalho baseia-se na dissertação de mestrado de Barreto (2017).
3 As entrevistas foram apresentadas ao Comitê de Ética da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde (CONEP/CNS/MS) e pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP).
4 O nome dos entrevistados foi alterado para preservar sua identidade.
5 No município de Acará, localizado no nordeste do estado do Pará há duas comunidades de remanescentes de quilombo chamadas, respectivamente, comunidade remanescente de quilombo Santa Maria de Itacoã-Miri e comunidade remanescente de quilombo Guajará-Miri. Os remanescentes de quilombo são um grupo social que tem sua identidade arraigada em um território, na sua história e na de seus descendentes, na cultura, no sentimento de pertencimento e na interdependência.

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