SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número51Cabeça de Medusa: de Caravaggio a Freud e Lacan - sobre pintura e psicanálise índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.51 Belo Horizonte enero/jun. 2019

 

ARTE E PSICANÁLISE

 

Uma perspectiva psicanalítica sobre a transitoriedade: análise da personagem Vivian do filme “Uma lição de vida”

 

A psychoanalytic perspective on transitoring: caring for the end of life

 

 

Ana Carolina Peck VasconcelosI, II; Elizabeth Samuel LevyI, II

I Círculo Psicanalítico do Pará
II Universidade Federal do Pará

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho é um estudo psicanalítico feito sob a perspectiva do complexo cenário da saúde. Aborda o tema da oncologia e dos cuidados paliativos no hospital e coloca em tela recortes de cenas do filme Uma lição de vida (2001). O tema foi discutido a partir de conceitos como desamparo, angústia, transferência, luto e transitoriedade, abordados por Freud em sua obra e por comentadores contemporâneos. Desse modo, pretendeu-se investigar as repercussões psíquicas relacionadas à terminalidade e à hospitalização da paciente Vivian, bem como analisar seu processo de luto frente à possibilidade iminente de morte. Para tanto, foram utilizados três recortes de cenas do filme. Fez-se interessante neste percurso a interlocução entre a psicanálise, o hospital e o cinema constituindo-se em um encontro possível, ao desvelar o universo simbólico da protagonista.

Palavras-chave: Psicanálise, Hospital, Transitoriedade, Cinema.


ABSTRACT

This work is a psychoanalytic study made from the perspective of the complex health scenario. It addresses the topic of oncology and palliative care at the hospital and features screenings of scenes from the film “A Life Lesson” (2001). The theme was discussed on the basis of concepts such as helplessness, anguish, transference, mourning and transience, which were approached by Freud in his work and by contemporary commentators. In this way, it was intended to investigate the psychic repercussions related to the terminality and hospitalization of the Vivian patient, as well as to analyze the mourning process of this patient in face of the imminent possibility of death. To do so, three cuts of scenes of the film were used. It was interesting in this way the perception of how the interlocution between psychoanalysis, hospital and cinema constituting a possible encounter, when unveiling the symbolic universe of the protagonist.

Keywords: Psychoanalysis, Hospital, Transitoriness, Movie theater.


 

O filme Uma lição de vida: uma breve descrição

Este filme conta a história da professora universitária Vivian, uma jovem senhora que descobre ser portadora de câncer de ovário em estágio bastante avançado. Recebe a notícia de sua enfermidade através de um oncologista famoso, que deixa claro que suas possibilidades de cura são mínimas. A partir de então, Vivian se vê obrigada a mudar sua rotina do dia para a noite, sendo hospitalizada e submetida a uma série de procedimentos dolorosos e invasivos, que causam muitos efeitos colaterais e, mesmo após empreender esforços, o resultado esperado não é alcançado.

Durante o tratamento Vivian analisa suas reações à doença, ao tratamento e relembra fatos marcantes da sua vida. Ela é assistida por Kelekian, que só demonstra se importar com resultados biologicamente satisfatórios, sem levar em conta as repercussões psíquicas do tratamento para a paciente. Além dele há Jason, um médico que foi aluno de Vivian, e Susie, a enfermeira-chefe e a única pessoa no hospital que a enxerga para além de sua doença oferecendo-lhe um cuidado humanizado.

Na trama em questão, a forma contundente e reflexiva com que a paciente Vivian narra a sua história – utilizando os acontecimentos vividos no hospital como exemplos questionáveis acerca do tratamento que recebe de seus cuidadores – faz dessa narrativa um rico universo de significações exposto ao expectador.

Destacam-se a dinâmica pulsional, a angústia e o desamparo, o medo da morte, as lembranças de vida e as relações transferenciais de infância que resgata, além de arrependimentos, do encontro com o Real (corpo doente), integrando o sentido transitório da vida, mencionado no tema deste artigo.

Algumas cenas e falas da personagem principal que contemplam a discussão realizada neste trabalho serão descritas e ilustradas a partir do referencial teórico proposto.

 

Cena 1: Vivian vive

No decorrer do filme, a personagem Vivian simboliza seu processo de adoecimento e hospitalização frente às câmeras, sozinha em várias cenas, e esta é uma delas:

[...] Não se esqueçam, estão vendo os aspectos mais interessantes da minha condição de paciente que recebe quimioterapia experimental para tratar câncer metastático avançado nos ovários. Mas enquanto acadêmica, sinto-me obrigada a documentar a forma como o tempo se passa aqui, entre o dramático clímax. Na verdade é assim: não fazem ideia de como o tempo pode ser calmo. Ele fica suspenso. Pesa. E, no entanto, é tão pouco. Passa tão devagarinho. Contudo, é tão insuficiente. Se escrevesse essa cena, duraria 15 minutos. Eu ficaria aqui e vocês aí. Não se preocupem: ‘A brevidade é a alma da sagacidade’. Mas se acham que 8 meses de tratamento de câncer é entediante, imaginem como não será estar na minha pele [...] Está bem, vamos dizer que hoje é sexta-feira de manhã e as rondas gerais lhe chamam: Ação!

Neste momento, o Dr. Kelikian e seus residentes adentram o quarto, examinam Vivian, falam de seu quadro, utilizam termos médicos, como se Vivian nem estivesse ali, a colocam no lugar de objeto.

Vivian retoma:

Não é lindo? Tanta subserviência, hierarquia, exibições gratuitas, rivalidades sublimadas. Me sinto em casa, como em um seminário de licenciatura. Com uma diferença importante: nas rondas gerais são eles que me leem como um livro. Uma vez era eu quem ensinava. Agora aprendo.

O interessante dessa cena é que, se observarmos, Vivian age como se estivesse em um divã (sem contato visual com alguém em cena). Ela fala para si. Considerando o processo de análise, ela falou de si. Frente ao sofrimento, a via simbólica foi uma possibilidade de falar para si, de se escutar.

No hospital, a escuta analítica, mesmo em um contexto diferenciado da análise clássica, pode produzir efeitos positivos, sobretudo em momentos de urgência, nos quais o sujeito tem a possibilidade de fazer algum movimento, de pensar sobre si e elaborar algo de sua história de vida, podendo vir a ressignificar algum conteúdo. E foi exatamente o que aconteceu com Vivian. Ela passou a elaborar seu processo de adoecimento e hospitalização e ressignificar momentos importantes de sua história de vida.

Com a doença, o paciente, ainda que não esteja em cuidados paliativos, passa por uma série de perdas, de sua saúde, de sua autonomia, de sua autoestima, que passam a ser vivenciadas e ressignificadas através de um processo de luto.

Para Freud ([1917] 2011), o luto é uma resposta à perda do objeto amado, podendo desencadear uma série de reações que, em outras circunstâncias, seriam consideradas patológicas, como o desligamento do mundo externo, a perda da capacidade de amar e a perda da autoestima. Essa diminuição da libido está diretamente relacionada à situação de perda que pode ser vivenciada, como uma morte. No luto ocorre um teste da realidade, para que seja de fato constatada a perda. Assim, passa a haver o desinvestimento do objeto amado, e a energia psíquica é desligada desse objeto, sem ainda ter possibilidade de outras ligações. Daí o afeto de angústia tão presente, em virtude da energia livre no aparelho psíquico.

Segundo Kovács (2009), o luto é um processo de elaboração. É como se uma parte nossa morresse. É inerente à existência humana e dele todos temos marcas. É um vínculo que se rompe. É a perda de um objeto de amor. O luto acontece não apenas pela perda de pessoas, como também de situações significativas, as ditas mortes simbólicas, como as perdas decorrentes do processo de adoecimento.

Dessa maneira, Vivian passa a simbolizar o seu adoecimento, a elaborar o luto pela perda de sua saúde, do seu trabalho ao qual ela dedicou a vida, e dar sentido e significado à finitude que cada vez mais se fazia iminente.

Nesse sentido, paralelamente à constatação da terminalidade, Vivian pôde reconhecer a importância da vida que teve, o que marca a transitoriedade, pois, mesmo com a finitude, tudo o que foi vivido não deixou de ter valor.

Freud ([1916] 2011), ao dizer que a transitoriedade não significaria uma perda de valor, afirma que, pelo contrário, deveria significar a valorização do objeto em questão, pois a limitação da possibilidade de usufruir de algo que traz prazer aumentaria o valor dessa fruição.

E conclui que “[...] o valor da transitoriedade é o valor da raridade no tempo” (FREUD, [1916] 2011, p. 249). Dessa forma, o valor das coisas estaria associado não apenas a sua duração absoluta, mas também ao significado que elas viessem a ter para alguém em certo momento de sua vida.

Em situação de adoecimento, o sujeito é confrontado com a fragilidade de seu corpo, com a possibilidade iminente de finitude e se depara com a transitoriedade da vida, da qual nenhum de nós escapa. Em um primeiro momento, essa constatação pode levar à desesperança, mas ao se enxergar de maneira mais ampla, pode servir também para ressignificação e valorização do que foi vivido.

O último ponto a salientar dessa cena tange à questão de a subjetividade ser bruscamente interrompida pela objetividade médica. Esse é um fato recorrente no hospital. E isso faz com que Vivian reflita sobre sua experiência como acadêmica e a reviva. Quando faz essa retomada, ela revive relações transferenciais. A partir da experiência no hospital, em que tais situações se repetem, ela pôde rememorar o que ela mesma repetia, quando assumia uma postura castradora com seus alunos, assim como seus médicos fazem com ela.

Quando nos referimos à peculiaridade da escuta analítica no hospital, estamos falando de algumas diferenças nas formas de atuação, o que nos leva a pensar na relação transferencial estabelecida nesse setting, com pacientes graves, em condições adversas. Escutá-los, além de possibilitar o alívio dos sintomas, poderá levá-los ao encontro com sua subjetividade, em desejar saber sobre si (LEVY, 2008).

É o que acontece com Vivian: ainda que sem a presença do analista, ela faz de seu leito um divã e passa a se ouvir e saber mais sobre si, conseguindo até mesmo se identificar com os médicos que a colocam em um lugar de objeto.

 

Cena 2: Vivian e Susie

Como foi citado na descrição do filme, Susie é enfermeira-chefe e a única pessoa que estabelece um cuidado humanizado com relação a Vivian, enxergando-a para além de sua enfermidade e dando voz a sua subjetividade.

Susie: Temos que falar sobre uma coisa. Tem de pensar nisto.
Vivian: O meu câncer não está sendo curado, não é?
Susie: Não.
Vivian: Nunca esperaram que eu ficasse curada, não é?
Susie: Os medicamentos iriam reduzir as proporções do tumor. E reduziram, está muito menor. Mas o problema é que surgiu em outros lugares também. Descobriram muitos dados para investigação e fizeram o que podiam. Esses foram os medicamentos mais fortes, mas ainda não há uma boa cura para o seu problema. Para o câncer avançado nos ovários. Desculpe, eles deveriam ter explicado isso para você.
Vivian: Eu sabia.
Susie: Sabia?
Vivian: Eu li nas entrelinhas.
Susie: Tem que pensar no código que prefere, corresponde às ações tomadas, caso o seu coração pare de bater.
Vivian: E então?
Susie: Pode ser código total, que implica que, caso o seu coração pare, transmitimos código azul, e a equipe de código vem reanimá-la para levar para UTI até estabilizar. Ou pode ser: não reanimar. O que significa que, se o seu coração parar... Bem, não fazemos nada. Passa a ser “N.R.”. Pode pensar no assunto, mas eu acho... Queria apresentar-lhe as duas hipóteses, antes do Kelekian e do Jason falarem com você.
Vivian: Eles não concordam com isso?
Susie: Eles gostam de salvar vidas. Por isso tudo vale, desde que a pessoa continue viva. Não importa que esteja ligada a um milhão de máquinas.
Susie: Kelekian é um grande pesquisador, e os bolsistas como Jason são muito inteligentes. É uma honra para eles trabalhar com Kelekian. Mas querem sempre saber mais.
Vivian: Eu também quero sempre saber mais. Sou uma acadêmica. Aliás, era. Quando usava sapatos. Quando tinhas sobrancelhas.
Susie: Ok, tudo bem, então será código total.
Vivian: Não, não complique a questão.
Susie: Não, a decisão é sua.
Vivian: Não quero ser reanimada.
Susie: Sério?
Vivian: Sim. Se meu coração parar, que pare.

O primeiro ponto a destacar dessa cena é a relação transferencial estabelecida entre Vivian e Susie no hospital. Percebe-se ao longo do filme a construção de um vínculo de confiança entre elas, motivado sobretudo pela relação humanizada que apenas Susie consegue ter com Vivian, ao colocá-la no lugar de sujeito desejante e não mero objeto de estudo e manipulação, fato recorrente no hospital.

Segundo Freud ([1912] 2011), a transferência surge em outros âmbitos além da psicanálise clássica. Por exemplo, nas instituições em que os pacientes não são tratados de maneira analítica, a transferência se faz presente de modo ainda mais intenso e de várias formas, apresentando-se sob muitos vieses do campo erótico.

O paciente hospitalizado estabelece relações fundamentais com a família, o médico, o psicanalista, a instituição hospitalar, a enfermagem, bem como os outros técnicos. Essas relações são denominadas ‘relações transferenciais’, que se acentuam em decorrência do processo de adoecimento em que o paciente se encontra assujeitado e cria vínculos segundo modelos já vivenciados anteriormente em sua história de vida pessoal. Sendo assim, a transferência é não somente a repetição de um sentimento, como também a repetição de um lugar, de uma posição nos relacionamentos.

Outro aspecto relevante a ser considerado com relação à cena transcrita diz respeito ao fato de Susie ter implicado Vivian na decisão de seu tratamento, fornecendo possibilidade de escolha, colocando-a como protagonista do seu processo de adoecimento e finitude, dando-lhe a autonomia que por muitas vezes no decorrer do seu processo de adoecimento e hospitalização lhe foi tirada.

Susie é a única que, de fato, age de acordo com a perspectiva que se tem de cuidados paliativos que, segundo Kovács (2008), tem como preceito fundamental o resgate do morrer com dignidade. Dessa forma, o maior desafio é possibilitar ao paciente que ele viva com qualidade, inclusive, a própria morte, o que, em virtude da onipotência narcísica médica, não consegue ser viabilizado pelos médicos responsáveis pelo tratamento de Vivian, uma vez que estão preocupados com a cura ou a possibilidade de prolongar a vida ao máximo, ainda que sem qualidade alguma.

Diferentemente da psicanálise, que visa não à eliminação do sintoma, mas a descoberta do seu sentido, a medicina tem por objetivo a identificação do sintoma a partir da queixa, ou por exames, e utiliza-se de diversos procedimentos com o intuito primordial de retirá-los, sempre visando à cura, ou seja, o reestabelecimento da saúde orgânica do paciente (LEVY, 2008). Contudo, no caso de Vivian, não há mais o que ser feito e ela se depara com a castração que a morte iminente lhe impõe.

 

Cena 3: Vivian chora. O socorro de Ashford

Esta cena retrata os momentos finais da personagem e é uma das ações finais do filme. Nela é possível constatar o momento da morte real, do corpo. Vivian se mostra frágil e vulnerável, em um momento de intensa angústia, sendo amparada por sua antiga professora, Evelyn Ashford, que a visita no hospital.

Professora: Vivian? Vivian? É a Evelyn!
Vivian: Oh Deus! Professora Ashford?
Professora: Estou na cidade visitando meu bisneto. Fui ver a sua aula e me mandaram aqui.
Vivian: Me sinto tão mal.
Professora: Sim, eu sei. Eu vejo. Oh, querida!
Vivian chora muito nesse momento, a professora deita-se junto a ela na cama e a conforta.
Professora: Não se preocupe, querida. Vejamos, recito algo para você, você gostaria?
Vivian: Não.
Professora: Muito bem, vejamos – pegando um livro infantil de dentro de sua bolsa – “O cordeirinho fugitivo, de Margaret Wise Brow, 1972. Havia uma vez que o cordeirinho queria escapar, então sua mãe disse: escape, e se escapares, correrei atrás de ti, porque você é o meu cordeirinho.”
Professora: Veja isso, uma pequena alegoria da alma. “Onde quer que você se esconda, Deus lhe encontrará.” Vês, Vivian? “Talvez seja melhor ficar onde estou, disse o cordeirinho, e assim o fez.”
Vivian fecha os olhos e adormece.
Professora: É hora de partir!
A professora se levanta da cama com cuidado para não acordar Vivian, guarda o livro e dá um beijo na testa dela.
Professora: Que o coro dos anjos a receba.
Vivian morre na madrugada após essa visita.

O que chama a atenção nesta cena são os cuidados maternos, recurso possível oferecido por Ashford. Ela, a ‘materna’, consola o choro, ‘dá colo’ literalmente, ao deitar no leito e acalentá-la. Sossega o choro tal qual se faz com um bebê. Diante do desamparo e da angústia, a figura materna aparece (Ashford).

Nesse contexto, Freud ([1937] 2006) nos remete ao contexto da criança ao nascer, que se encontra em um verdadeiro estado de desamparo, pois não tem como sobreviver sozinha, vivendo em absoluta impotência, incapaz de realizar uma ação específica que aliviaria a tensão interna ocasionada por seu estado de necessidade, pois depende de outro que cuide dela, que a ame.

Ceccarelli (2006) introduz o termo “insocorrível” para definir o desamparo [Hilfosigkeit] utilizado por Freud, pois Hilfe significa socorro; los, que pode ser definido por sem e keit o que forma o subjetivo; assim, a tradução mais adequada para Hilfosigkeit seria insocorribilidade. [...] Ser desamparado atesta a condição de insocorribilidade do sujeito humano [...]. (CECCARELLI, 2006, p. 115). Portanto, o termo situa-se também como um “estado” em que o sujeito se encontra.

Segundo Freud ([1930] 2010), uma das fontes de desamparo humano ocorre em virtude de nosso próprio corpo, que é condenado à decadência. Seu adoecimento e mau funcionamento não são poupados de sofrimento e ansiedade.

Bento (2008) promove uma articulação entre essa fonte de desamparo e o processo de hospitalização: embora o desamparo nos remeta ao estado inicial do sujeito, pode ser disparado a qualquer momento por situações extremas, nas quais há ausência de defesas para lidar com a angústia que invade, situação recorrente quando o sujeito se depara com a hospitalização.

É exatamente o que ocorre com Vivian. Nesse momento emergem reminiscências do infantil, ela clama por ser cuidada e amparada nessa situação de extrema fragilidade, precisando dessa “figura materna” que a acolhe e parece oferecer alguma proteção contra do perigo. Assim, frente ao câncer, Vivian é confrontada com esse corpo que dói, o que remete a sua finitude.

Levy (2008) pontua que cada paciente vem imerso em sua rede de subjetividades e, no hospital, o sofrimento psíquico se correlaciona à enfermidade orgânica, o que deixa o sujeito ainda mais fragilizado e vulnerável.

Nesse contexto, ao adoecer de maneira inesperada e necessitar dos cuidados ofertados pelo hospital para diagnosticar e tratar o seu câncer, doença que suscita constantemente a possibilidade iminente de morte, é compreensível que Vivian desencadeie sofrimento psíquico, desvelando o desamparo e fazendo com que o afeto de angústia se manifeste.

Freud ([1926] 2011) coloca que a angústia é a reação original ao desamparo no trauma e é reproduzida posteriormente na situação de perigo como vestígio de necessidade de encontrar auxílio.

De acordo com Rocha (2000), pode-se dizer que a experiência de angústia, vivida no limiar de dor, determina o homem e se transforma no desamparo e na transitoriedade inerentes ao existir. Assim, na sua dimensão existencial, a angústia se presentifica tal como um grito, seja de desespero, seja de apelo, sempre na direção do outro.

 

Considerações finais

Neste trabalho, utilizamos a psicanálise para sustentar o desejo de falar do tema abordado, de modo que pudesse contribuir para uma reflexão sobre as repercussões psíquicas desencadeadas pelo adoecimento por câncer em estágio avançado, uma vez que pacientes nessa condição se encontram em uma situação de vulnerabilidade extrema, pois o sofrimento corporal e as sucessivas perdas intensificam o desamparo e a angústia a que todos nós já estamos suscetíveis. O desamparo e a angústia se tornam, então, mais marcantes perante os cuidados paliativos e a iminência da morte a que essas pessoas ficam sujeitas o tempo todo.

A análise de recortes de cenas do filme Uma lição de vida constituiu também um rico universo de possibilidades, visto que a personagem principal Vivian vive o adoecimento por câncer de maneira intensa e, no hospital, a partir de recursos simbólicos, consegue fazer uma intensa reflexão, elaborando o luto precipitado pelo seu processo de adoecimento e hospitalização em um movimento de ressignificação de sua história, integrando o sentido transitório da vida.

Sendo assim, a interlocução entre psicanálise e arte, mais especificamente o cinema, tornou-se um encontro possível, revelando ser um universo rico de significações como Freud valorizava.

As produções cinematográficas por meio de suas cenas constituem recursos que a psicanálise pode utilizar para analisar as formas de subjetivação dos personagens em seus conteúdos manifestos e latentes representando a dinâmica do inconsciente, a exemplo de A interpretação dos sonhos (FREUD, [1900] 2012).

Nesse sentido, a psicanálise tem muito a contribuir na escuta do sofrimento psíquico nos hospitais, espaço em que o desamparo é revivido nas cenas primitivas do sujeito que se vê confrontado com a finitude da vida. É singular como cada um direciona seu desejo, mas é universal pensar nos conceitos freudianos que sustentam este trabalho, ilustrados através da personagem Vivian, na possibilidade de suportar a morte até o fim da vida, no verdadeiro sentido da transitoriedade.

Esta temática captura cada um de nós, que de uma forma ou de outra, nos remete a nossa própria finitude, no encontro com a castração e com o desamparo vivido ou revivido por todo sujeito falante.

 

Referências

BENTO, M. Corpo estranho - narcisismo e desamparo no contexto hospitalar. Revista SBPH, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 101-111. jun. 2008. Publicação semestral da Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar.         [ Links ]

CECCARELLI, P. Pesquisa em psicanálise (2006). Simpósio o Homem e o método. Disponível em: http: www.ceccarelli.psc.br. Acesso em: 7 jul. 2017.         [ Links ]

FREUD, S. A dinâmica da transferência (1912). In: ______. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schreber”), Artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 100-110. (Obras completas, 10).         [ Links ]

FREUD, S. A interpretação dos sonhos. (1900). 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2012.         [ Links ]

FREUD, S. A transitoriedade. [1916]. In: ______. História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 247-252. (Obras completas, 14).         [ Links ]

FREUD, S. Análise terminável e interminável (1937). In: ______. Moisés e o monoteísmo, Esboço de psicanálise e outros trabalhos (1937-1939). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 225-270. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 23).         [ Links ]

FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia (1926). In: ______. Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 9-98. (Obras completas, 17).         [ Links ]

FREUD, S. Luto e melancolia (1917). In: ______. História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 170-194. (Obras completas, 14).         [ Links ]

FREUD, S. O mal-estar na cultura (1930). Porto Alegre: L&PM, 2010.         [ Links ]

KOVÁCS, M. Aproximação da morte. In: CARVALHO, V.; FRANCO, M.; KOVÁCS, M.; LIBERATO, R.; MACIEIRA, R.; VEIT, M. et al. (Orgs.). Temas em psico-oncologia. São Paulo: Summus, 2008. p. 388-397.         [ Links ]

KOVÁCS, M. Perdas e o processo de luto. In: SANTOS, F.; INCONTRI, D. (Orgs.). A arte de morrer: visões plurais. Bragança Paulista: Comenius, 2009. p. 2017-2238.         [ Links ]

LEVY, E. Desamparo, transferência e hospitalização em centro de terapia intensiva. 2008. 108 f. Dissertação (Mestrado em psicologia). Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Universidade Federal do Pará. Belém do Pará, 2008.         [ Links ]

ROCHA, Z. Os destinos da angústia na psicanálise freudiana. São Paulo: Escuta, 2000.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ana Carolina Peck Vasconcelos
E-mail: carolinapeck@gmail.com

Elizabeth Samuel Levy
E-mail: bethslevy@gmail.com

Recebido em: 12/06/2018
Aprovado em:

 

 

SOBRE AS AUTORAS

Ana Carolina Peck Vasconcelos
Psicanalista em Formação pelo Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA).
Psicóloga pela Universidade da Amazônia (UNAMA).
Mestre em Psicologia Clínica e Social pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia na linha Psicanálise: Teoria e Clínica pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Especialista em Psicologia da Saúde e Hospitalar pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicologia e Saúde (IEPS).
Pesquisadora do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Elizabeth Samuel Levy
Psicanalista.
Mestre em Psicologia Clínica e Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Presidente do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA).
Docente do Curso de Psicologia e Coordenadora da Clínica de Psicologia da Universidade da Amazônia (UNAMA).
Pesquisadora do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Creative Commons License