SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número51A arte como objeto petit aAs faces da (im)potência sexual e a histeria masculina na psicanálise índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.51 Belo Horizonte enero/jun. 2019

 

GÊNERO, SEXUALIDADE E PSICANÁLISE

 

Vamos (voltar a) conversar sobre sexualidade em psicanálise? Amor e ódio e seus destinos nas manifestações da sexualidade1

 

How about (going back to) talking about sexuality in psychoanalysis? Love and hatred and their fates in manifestations of sexuality

 

 

Gilla Maria Jacobus Bastos

I Circulo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A formação psicanalítica no Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS) integra e aprofunda conteúdos que podem causar questionamentos sobre o desenvolvimento do escopo teórico da psicanálise, ao mesmo tempo que auxilia no enfrentamento dos desafios clínicos decorrentes da vida profissional nesse campo da psicologia. Inicio a discussão teórica com as postulações freudianas sobre a relação mãe-bebê, com seu enfoque pulsional, porém levando, já em conta, a responsabilidade da mãe sobre a construção do eu, desde a constituição do narcisismo com sua importância no complexo edípico mais tarde na vida do sujeito, preparando a sexualidade do bebê. Levanto o conceito da bissexualidade orgânica (Fliess) e psíquica (Freud) em jogo nas identificações edipianas com seus possíveis destinos, inclusive, ou principalmente, na sexualidade. Parto em seguida para os autores pós-freudianos, como Green, Laplanche e Ceccarelli, a fim de atualizar conceitos e impressões acerca do tema tão necessário, a meu ver, sobre os destinos das pulsões influenciando as relações humanas de amor.

Palavras-chave: Relações de objeto, Sexualidade, Identificações, Amor, Ódio.


ABSTRACT

The psychoanalytic formation at Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS) completes and deepends topics that may raise questions regarding the development of the theoretical scope of psychoanalysis, whilst also aiding in meeting clinical challenges arising from working in this field of Psychology. I start the theoretical debate with freudian postulations regarding the relationship between mother and baby concerning its driving focus, but also taking into consideration the mother’s responsibility towards the construction of the self, from the constitution of narcissism with its importance in the oedipal complex later on in the individual’s life, preparing their sexuality. I bring forth the concept of organic bisexuality (Fliess) and psychic bisexuality (Freud) concerning the oedipal identification towards the individual’s possible fates, including in, or mainly in, their sexuality. Afterwards, I use concepts of post-freudian authors such as Green, Laplanche and Ceccarelli so as to update concepts and impressions concerning a much needed topic, as is my belief, regarding the fates of drives that influence human love relationships.

Keywords: Object relations, Sexuality, Identifications, Love, Hate.


 

Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que um dia
Deixei pra você

(CHICO BUARQUE DE HOLANDA, 1993)

 

Como aprendemos (ou não) a amar?

Os desafios das manifestações da sexualidade na clínica contemporânea, com suas inúmeras configurações, remetem-nos a rever conceitos psicanalíticos importantes, a fim de entender os fatos que se revelam no cotidiano da clínica ou fora dela.

A cultura hoje, como no tempo de Freud, volta a colocar em evidência a sexualidade humana, ou seja, nas suas múltiplas formas de trabalhar e de amar, de assumir a tarefa de se responsabilizar por escolhas próprias. O que no tempo vitoriano era reprimido na sexualidade, na atualidade é estimulado.

Mas como se constituiria a vida sexual de um sujeito? Quais manobras a alma humana precisa realizar para isso acontecer satisfatoriamente ou não?

Vamos ao desafio.

É fundamental para a sexualidade futura do sujeito o modo como foram estabelecidas as relações objetais nos seus primórdios, pois ali nasce o afeto.

Já em Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud ([1905] 1996) argumenta que a sexualidade infantil começa pela destrutividade do bebê em relação a sua mãe, ou seja, para se constituir, o bebê primeiramente incorpora o objeto (mãe), mastiga, engole e se identifica; depois domina, controla e agride; enfim, quando consegue formar um Eu forte, descobre-se como um ser com ou sem pênis. Assim, pela relação com o ambiente, define-se como menino ou menina.

Freud ([1905] 1996, p. 198) escreve:

O componente cruel do instinto sexual se desenvolve na infância ainda mais independentemente das atividades sexuais ligadas às zonas erógenas. A crueldade em geral aparece facilmente na natureza infantil, já que o obstáculo que detém o instinto de domínio diante da dor da outra pessoa – ou seja, a capacidade para a piedade – se desenvolve relativamente mais tarde [...] a ausência da barreira da piedade traz consigo o perigo de que a conexão entre os instintos cruéis e os eróticos, assim estabelecida na infância, se possa mostrar indestrutível na vida ulterior.

Freud ([1915] 1996), em Os instintos e suas vicissitudes, explica que o Eu a princípio se constitui de suas pulsões, que o impulsionam em busca de prazer e, dessa forma, aplacam o seu desprazer, obrigando-se a trazer (introjetar) do mundo externo o objeto capturado pelos seus instintos, ou seja, incorporando para si a relação que inaugura o amor-próprio ou o narcisismo. Para se relacionar com o objeto, primeiramente utiliza-se dele a fim de se consolidar. A qualidade dessa relação primordial daria início a três sentimentos primordiais, a saber: amor, ódio ou indiferença. Então, o objeto é levado do mundo externo para o eu a princípio pelas pulsões de autopreservação, assim como o odiar, originalmente, caracterizou a relação entre o eu e o mundo externo alheio com os estímulos que introduz. Já a indiferença se enquadra como caso especial de ódio ou desagrado, após ter sido inicialmente seu precursor. Temos, pois, primeiro a indiferença do Eu em relação aos objetos externos, depois a percepção destes pela possível incorporação no encontro e só depois se dará a revelação do objeto pela pulsão.

Ou seja, se o objeto causa prazer ao Eu, este fica incorporado como objeto amado, fonte formadora desse Eu do prazer purificado, deixando os objetos de fora como odiados ou estranhos mais uma vez.

Primeiro o Eu é indiferente ao mundo externo; depois que faz o contato com ele e obtém algum prazer, incorpora-o como objeto amado ameaçador, deixando de ser indiferente. Mas e o ódio? Este seria resultado do desprazer e da frustração com o objeto, reverso do amor. Passaria a rejeitá-lo para evitar o desprazer, reeditando a tentativa original de fuga do mundo externo e seus estímulos. O sentimento seria de repulsa do objeto e depois de ódio. Intensificando a ponto, por vezes, de agredir esse objeto e até mesmo destruí-lo.

Segundo Freud (1915), o Eu odeia, abomina e persegue com intenção de destruir todos os objetos que constituem fonte de desprazer para ele, sem levar em conta que significam uma frustração quer da satisfação sexual, quer das necessidades autopreservativas. Realmente, pode-se asseverar que os verdadeiros protótipos de ódio se originam não da vida sexual, mas da luta do ego para preservar e manter-se.

Assim, o amor resulta da satisfação autoerótica do Eu, sendo originalmente narcisista, passando somente depois para relação com os objetos, que foram incorporados ao Eu ampliado, expressando seus esforços motores em direção a esses objetos como fonte de prazer. Reconhecemos a fase de incorporação e devoramento como sendo a primeira dessas finalidades – um tipo de amor que é compatível com a abolição da existência separada do objeto e, que, portanto, pode ser descrito como ambivalente. Na fase mais elevada da organização sádica anal pré-genital, a luta pelo objeto aparece sob a forma de uma ânsia de dominar, para a qual o dano ou aniquilamento do objeto é indiferente.

Freud ([1915] 1996, p. 143) afirma:

[...] amor nessa forma e nessa fase preliminar quase não se distingue do ódio em sua atitude para com o objeto. Só depois de estabelecida a organização genital é que o amor se torna o oposto do ódio [...] O ódio, enquanto relação com o outro, é mais antigo que o amor.

Em outro texto, porém, como Luto e melancolia ([1915] 1996), Freud esclarece que o investimento no objeto, ao se deparar com frustrações, pode retroceder ao narcisismo identificando-se com ele e, assim, apesar dos conflitos com a pessoa amada, não precisa renunciar a ela, substituindo a relação erótica. Ocorre aqui uma identificação com o objeto a fim de não perdê-lo.

Portanto, essa regressão, à escolha objetal narcísica pela identificação, pode ser a primeira forma de amar.

Para Freud aqui está a origem afetiva, o modelo que se perpetuará nas relações futuras do indivíduo. Se baseada numa relação de confiança e amor, com mais prazer do que desprazer, surge um Eu incorporado de sensações agradáveis e capaz de buscar relações ou um Eu sem busca pelo outro, evitando relações com receio de voltar às frustrações já sentidas e repelidas.

Esse Eu construído em seus primórdios estará preparado para uma relação objetal ou permanecerá identificado com o objeto perdido, carecendo de capacidade para tal, mostrando-se um Eu enrijecido no seu próprio narcisismo.

Assim, conforme Freud, a mãe inaugura a sexualidade ao interagir com seu bebê que pode fixá-la de forma saudável ou nem tanto, através desta dupla via: pulsão e objeto.

Os afetos (a relação de objeto) que surgem lá na relação da dupla mãe-bebê serão determinantes para o desenvolvimento psicossexual do sujeito. Implica a formação da sua identidade, seu gênero e seu caráter, pois, ao passar pela fase fálica, onde agora a criança – não mais o bebê – começa uma relação mais intensa com seu corpo e da outra pessoa e com o mundo. Se for um corpo erotizado, reconhecido e aceito pelos pais, conseguirá também ela se reconhecer, ter prazer e satisfação própria para substituí-los pelo demais.

Nesse jogo entre amor e ódio-indiferença com o objeto, o sujeito vai se formando como pessoa de afetos e relações, do narcisismo ao Édipo, reconhecendo-se como homem, mulher ou ainda bissexual.

 

Sexualidades no jogo do amor/ódio

Saindo um pouco das relações objetais e pulsão, Freud, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade ([1905] 1996), propõe reconhecer também uma “bissexualidade psíquica” (Freud) a partir da “bissexualidade orgânica” (Fliess). A bissexualidade orgânica foi proposta por Fliess (cartas de Fliess e Freud), e Freud desmistificou esse conceito através da bissexualidade psíquica, descrevendo a questão do monismo pulsional: ativo e passivo para ambos, masculino e feminino. Afirmou também que a pulsão é essencialmente masculina em ambos.

Depois em Uma criança é espancada Freud ([1919] 1996, p. 215) amplia seu conceito referindo que no fato da constituição bissexual dos seres humanos a força motivadora da repressão, em cada indivíduo, é uma luta entre os dois caracteres sexuais. O sexo dominante da pessoa, aquele que é mais intensamente desenvolvido, reprimiu no inconsciente a representação mental do sexo subordinado. Portanto, o núcleo do inconsciente (quer dizer, o reprimido) é em cada ser humano, aquele lado dele que pertence ao sexo oposto.

Freud desenvolve sobre identificações, entre outras obras, em Psicologia das massas e análise do eu, disse que a psicanálise conhece a identificação como a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva a outra pessoa. Ela desempenha um determinado papel na pré-história do complexo de Édipo. Mas harmoniza-se muito bem com o complexo de Édipo, e ajuda a preparar o terreno para este (FREUD, [1921] 2011, p. 60).

Em O eu e o isso ([1923] 1996) Freud vai afirmar ainda que no jogo identificatório da demolição do complexo de Édipo, pareceria que em ambos os sexos a força relativa das disposições sexuais masculinas e femininas é o que determina se o desfecho da situação edipiana será uma identificação com o pai ou com a mãe. A bissexualidade é talvez, a responsável pelas vicissitudes subsequentes do complexo de Édipo.

Parece que entra em jogo na constituição do sujeito e na sua relação com o outro a condição da bissexualidade, oferecendo nuances variadas aos afetos ali imbricados.

O autor que se interessou por integrar esses dois eixos da psicanálise de forma profunda foi André Green. Em sua obra Orientações para uma psicanálise contemporânea (2008), insistiu em sair do debate preponderantemente de uma escola de relações objetais para o retorno ao discurso sobre a sexualidade.

A razão de Green falar sobre sexualidade obriga os psicanalistas a rever constantemente suas questões nessa área?

Ele nos disse que o problema não é simples. Lembra que Freud justificadamente constituiu as fundações de sua concepção sobre a vida pulsional, que é, a uma só vez, o que há de mais primitivo e solipsista na psique, e o que em princípio nada conhece a não ser o Isso. Mas de fato, mesmo adotando esse ponto de vista, a pulsão revela a existência do objeto apto a satisfazê-la, assim como, inversamente, o objeto é revelador da pulsão (GREEN, 2008, p. 87).

Assim, Green tornou-se um defensor da dupla pulsão-objeto para dar conta da clínica, e a solução não está nem de um lado, nem de outro. A sexualidade está presente desde o princípio na vida do sujeito. Considera a sexualidade do bebê excitado com o afeto materno durante a amamentação, por exemplo.

Na mesma questão acrescenta:

O ponto de vista epistemológico moderno enfatiza a dimensão da relação, que deve prevalecer sobre a concepção da definição de um objeto considerado por si só [...] cabe insistir na dimensão assimétrica da relação (GREEN, 2008, p. 88).

Escreve ainda que na Inglaterra, particularmente sob influência de Melanie Klein, a ênfase colocada na destrutividade eclipsa a atenção dada à sexualidade. Assim, a sexualidade sofre ataques conjugados da psicologia do ego, psicologia do self, da intersubjetividade e da perspectiva das relações de objeto (GREEN, 2008, p. 90).

Porém, Lacan conserva a questão do desejo e Green (2008, p. 88). afirma:

A psicanálise francesa pode se orgulhar pelo fato de que, mais além de suas divisões (lacanianos e não lacanianos), todas as correntes estão de acordo em reconhecer na sexualidade um papel maior, mesmo que sejam interpretados de formas diferentes.

E com audácia propõe que O esboço da psicanálise enuncia uma mudança notável. A teoria das pulsões trata de duas pulsões fundamentais: eros e pulsão da destrutividade.

Quanto à sexualidade, ela não é mais uma função que já não está diretamente ligada à teoria das pulsões (GREEN, 2008,).

Pois, segundo Green (2008, p. 88),

[...] deve-se substituir aqui a visão centrada sobre um elemento particular, para substituí-la pelo conceito de uma corrente erótica que começa com a pulsão e suas moções pulsionais e prolonga-se naquilo que se manifesta no prazer-desprazer, expande-se no estado de expectativa e busca de desejo, alimentado por representações inconscientes e conscientes, organiza-se sob forma de fantasias inconscientes ou conscientes, ramifica-se na linguagem erótica e amorosa das sublimações. Podemos ver, com efeito, que tudo isso remete à questão essencial das relações da sexualidade e do amor, relações que suscitam ainda muitas interrogações.

Green disse que Freud revelou ao mundo que a mãe é a primeira sedutora da criança através dos cuidados e da atitude geral que tem com ela.

Aqui imbricam quatro ideias:

• As zonas erógenas são despertadas pelos cuidados maternos, mas, inibidas no seu fim, retira-se a ideia do trauma.

• Essa relação erótica inscreve-se num contexto puramente marcado pelo selo do amor. Mãe e criança estão reciprocamente enamoradas uma da outra.

• No despertar das zonas erógenas pela mãe (perversão polimorfa), constitui-se o autoerotismo, onde a criança, em um momento de falta, possa encontrar o objeto em seu próprio corpo.

• A inscrição de traços dessa experiência permanecerá no inconsciente e não desaparecerá jamais.

Green ainda mostra surpresa de que, no desenvolvimento da teoria pós-freudiana, tão importante para todos, tenha desaparecido a dimensão erótica ligada às trocas entre mãe e criança. Disse que isso aconteceu por múltiplas razões, entre as quais, o puritanismo tenha sua parte, como “[...] se as mães anglo-saxãs não fizessem amor” (GREEN, 2008, p. 89). Finaliza com a questão:

[...] a teoria das pulsões de Freud sofreu uma verdadeira repressão por parte dos psicanalistas, prontos para aproveitar todas as ocasiões para livrar-se dela (GREEN, 2008, p. 90).

Ele trouxe a questão da sexualidade novamente para o debate psicanalítico, que se faz necessário, devido à retomada desse tema na clínica contemporânea. Com sua diversidade através das manifestações da sexualidade, clínica de hoje nos desafia diretamente.

O autor refere no livro Narcisismo de vida, narcisismo de morte (GREEN, 1988) que o encontro mãe-bebê se daria pela necessária ramificação de dois aparelhos funcionais ligados um ao outro, pela diferença potencial devido ao seu desenvolvimento desigual (cobertura do Isso-Eu da criança pelo Eu-Isso da mãe. Essa primeira articulação se ramificaria sobre o aparelho paterno. Cada um desses três aparelhos poderia servir de mediação para os outros dois. É necessário considerar que a atribuição de um sexo à criança por um dos pais age como um tipo de impressão psíquica. Essa impressão constitui-se na sequência percepção do corpo da criança como sexuada, a ser confirmada ou infirmada nessa forma por um dos pais. Deve-se portanto, atribuir à fantasia parental, um papel de potente indutor no desenvolvimento da monossexualidade individual.

Parece que estamos para além da necessidade de entender como se dá a relação objetal somente, proponho que pensemos sobre suas consequências nas sexualidades. O início da vida afetiva humana determinando o rumo da corrente erótica e formação do Eu.

Laplanche (2001, p. 226) também já descrevia o seguinte sobre as identificações: “A personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações”.

O autor contemporâneo e brasileiro Paulo Roberto Ceccarelli (2017), estudioso do tema, em Transexualidades, refere que o eu é formado a partir de identificações que tomam o lugar de investimentos abandonados relativos aos objetos dos dois sexos. O eu é precipitado de identificações (FREUD, [1923] 1996 apud Ceccarelli, 2017, p. 117). A identificação com os dois sexos é o que melhor traduz a noção de bissexualidade e, graças a essas identificações, a criança introjetará, além das figuras parentais, as referências simbólicas do masculino e do feminino.

Ceccarelli reforça a importância do papel da bissexualidade psíquica na construção do psiquismo, que seria responsável pelas manifestações sexuais efetivamente no homem e na mulher. Seria determinante para a escolha de um objeto ou mais de um.

Chegamos, assim, ao Édipo, momento organizador tanto da formação da identidade quanto da bissexualidade psíquica.

Diz Ceccarelli (2017, p. 118) que, à medida que a diferença entre os sexos se afirma, a bissexualidade se virtualiza: persistir na reivindicação bissexual equivale recusar a diferença dos sexos. Passado o período edipiano, o sujeito acederá, na maioria dos casos, a uma identidade ‘monossexual’ em harmonia com seu sexo anatômico. A orientação recalcada permanecerá ativa no inconsciente, manifestando-se nos desejos inibidos em sua finalidade, e na atividade sublimatória. O recalcamento de uma das moções pulsionais dependerá de fatores que fogem à predisposição inata.

Nos transexuais, devido a sua história identificatória e mesmo recalcando as moções bissexuais, se manifestarão as não correspondentes ao seu sexo anatômico. Assim, o retorno desse recalcado terá para ele a conotação da ordem do estranho, não reconhecido.

Parece que desde bebê o ser humano vai aprendendo e fazendo o destino das suas futuras relações, de como ele se apresentará na sua identidade, em um somatório de vivências satisfatórias ou não, determinando o rumo da sua sexualidade. O equilíbrio dessas forças internas em contato com os seus cuidadores: mãe, pai, família e cultura determinarão seu formato de amar.

O bebê é um ser desamparado, mas já sexuado, como aponta Green. Ocupará um lugar no seu meio e receberá uma enxurrada de projeções e deslocamentos narcísicos dos seus pais, tendo que sobreviver a esse fenômeno herdando e construindo um Eu capaz de seguir em frente com determinação para ocupar um lugar na cultura, identificado com regras organizadoras internas, mas que permitam seu contato com o outro ser humano para juntos evoluírem a espécie. Sobrepor a destrutividade, eis a função da sexualidade, seria a manifestação de pulsão de vida e morte fusionadas. O equilíbrio entre o sadismo e masoquismo.

Para Green (2010), a satisfação é acompanhada do investimento erótico, fundamento do narcisismo primário e dos investimentos objetais que entram em conflito com a pulsionalidade e a realidade. O recalcado está ligado à sexualidade.

 

Considerações finais

Vimos que Freud teve a coragem de desmistificar o campo humano da sexualidade, explicando o quanto é errante e precisa ser ligada aos afetos para se constituir de forma saudável e não perversa. Apontou que o ódio seria uma busca de preservação dramática de sobrevivência narcísica e quanto o amor seria o resultado de contatos amorosos de duplo sentido: o bebê incorpora o que é prazeroso. A incapacidade de amar ficaria por conta de vivências dolorosas para o ser humano em constituição. A perversão seria então o fracasso do contato de um Eu com o objeto procurado, cristalizando um narcisismo rígido de indiferença ou de ódio cujas satisfações sexuais parciais prevaleceriam sobre as de relação de objeto.

A escolha homo ou heterossexual do objeto estaria ligada ao arranjo das identificações masculinas ou femininas no decorrer da vida do sujeito. E o afeto correspondente seria o determinante da qualidade saudável ou não da sua vida sexual. Se fixada em períodos primitivos quando a frustração prevaleceu, a tendência seria uma vida sexual difícil e dolorosa, reeditando o passado também doloroso. Prevalecendo a capacidade de vínculo, de piedade e a triangulação edípica, estaremos diante de uma possibilidade de relacionamento afetuoso e genital. Se homo ou hetero haveria alguma diferença na qualidade da relação sexual?

Relembrando Freud ([1905] 1996, p. 213), ainda em Três ensaios, define que uma vida sexual normal só é assegurada pela exata convergência da corrente afetiva e da corrente sensual, ambas dirigidas para o objeto sexual e o objetivo sexual a partir da puberdade. Considera que os instintos (as pulsões), antes centrados nas zonas erógenas, agora devam ter um fim de reprodução, portanto altruístico. Entendemos que, uma vez considerado o objeto como alvo da sexualidade, implica uma relação de objeto e que toda a patologia da vida sexual pode com justiça ser considerada uma inibição do desenvolvimento, cuja fixação estaria na forma da construção do narcisismo?

Parece que, havendo consideração pelo objeto, com sentimentos afetivos estabelecidos, princípios éticos e de reciprocidade, a genitalidade estaria justificada independentemente do gênero. Porém, onde prevalecer um eu destrutivo em uma relação de dominação, parcial e dolorosa, a sexualidade estaria comprometida.

As pessoas que procuram atendimento na clínica hoje vêm em busca de resolução de conflitos nos relacionamentos e buscam amenizar seu sofrimento independentemente da sua escolha objetal ser heterossexual ou não. Buscam falar sobre a sua forma de amar ou a impossibilidade disso. Parece que aí reside a contemporaneidade. As mudanças tecnológicas nos aproximam dos contatos virtuais, e diferentes manifestações sexuais entre o público e o privado, mostram a forma como isso se estabelece: se geram frutos e evoluem ou se enrijecem, castigam e maltratam o outro.

Freud, desde 1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, inicia a desmistificação da sexualidade quando relativiza a inversão, retirando-a da degeneração e da organicidade para uma categoria de condição humana bissexual. Considera o desenvolvimento psicossexual na infância como determinante afetivo para relações futuras e estabelece a teoria da libido para discriminar sua qualidade – narcísicas ou objetais – em relação ao estabelecimento de vínculos.

Em Sobre o narcisismo: uma introdução ([1914] 1996), Freud amplia tais questões, levando-nos aos destinos dos instintos (pulsões) e à construção do aparelho psíquico. Assim como os autores pós-freudianos como Green e Ceccarelli, citados neste trabalho, buscaram atualizar tais conceitos para dar conta à clínica contemporânea, onde a sexualidade volta a nos desafiar.

São aportes importantes para se considerar na clínica atual, pois encontramos sustentabilidade para encarar os desafios e, assim como o mestre, haveremos de dar seguimento às pesquisas nessa condição humana.

 

Referências

CECCARELLI, P. R. Transexualidades. São Paulo: Pearson, 2017.         [ Links ]

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: ______. Um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Direção geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 119-229. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7).         [ Links ]

FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In: ______. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre a metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção geral da tradução de Jayme Salomão Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 81-113. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).         [ Links ]

FREUD, S. Os instintos e suas vicissitudes (1915). In: ______. A história do movimento psicanalítico: artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 123-144. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).         [ Links ]

FREUD, S. Luto e melancolia (1917). In: ______. A história do movimento psicanalítico: artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 249-263. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, 14).         [ Links ]

FREUD, S. Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais (1919). In: ______. Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918). Direção geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 195-218. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17).         [ Links ]

FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). In: ______. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. __-__. (Obras completas, 15).         [ Links ]

FREUD, S. O ego e o id (1923). In: ______. O ego e o id e outros trabalhos (1923-1925). Direção geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 25-71. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19).         [ Links ]

GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988.         [ Links ]

GREEN, A. Orientações para uma psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago; São Paulo: SBPSP, 2008.         [ Links ]

LAPLANCHE, J. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: gillabastos@gtmail.com

Recebido em: 28/05/2019
Aprovado em: 25/06/2019

 

 

SOBRE A AUTORA

Gilla Maria Jacobus Bastos
Psicóloga formada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo/RS (UNISINOS. 1987).
Psicoterapeuta especialista em psicologia clínica realizada no Instituto de Psicologia (IPSI) Novo Hamburgo/RS, reconhecido pelo Conselho Federal de Psicologia (2004).
Docente da disciplina Psicologia do Desenvolvimento I (Freud I) no Curso de Formação em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica no IPSI desde 2010.
Supervisora do Instituto de Psicologia (IPSI) desde 2012.
Candidata em Formação no Circulo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.
Currículo Lattes: </lattes.cnpq.br/1412024916645924>.

 

 

1 Trabalho apresentado em Jornada de Estudos do CPRS, em 26 maio 2018.

Creative Commons License