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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.51 Belo Horizonte Jan./June 2019

 

GÊNERO, SEXUALIDADE E PSICANÁLISE

 

Considerações do Édipo transicional de Ogden nos estudos de transexualidade

 

Ogden transitional Oedipus considerations in transsexual studies

 

 

Márcia Alves da Rocha

I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Através dos casos de transexualidade analisados por Robert Stoller – um dos precursores nos estudos sobre o tema na cena psicanalítica – refletimos sobre as implicações do complexo de Édipo na sexuação e na identidade de gênero. Passando pela compreensão do que Stoller denominou como identidade de gênero nuclear, também avaliamos a teoria do complexo de Édipo transicional postulada por Thomas Ogden como uma possibilidade de entendimento da importância das marcações pré-edípicas na experiência transexual.

Palavras-chave: Complexo de Édipo, Complexo de Édipo transicional, Identidade de gênero nuclear, Neossexualidades, Transexualidade.


ABSTRACT

Going through the cases of transexuality analyzed by Robert Stoller – a precursor author who studied transexuality – we will think about the implications of the Oedipus complex in sexuation and gender identity. Considering Stoller’s concept of core gender identity, we will also evaluate the theory of transitional Oedipus complex postulated by Thomas Ogden as a possibility of understanding the importance of pre-Oedipal markings in transsexual experience.

Keywords: Core gender identity, Neo-sexualities, Oedipus complex, Oedipal transitional complex, Transexuality.


 

[...] essas letras todas procuram estabelecer cânones:
lésbicas são assim, gays são assado,
bissexuais são assim, transgêneros são assim,
transexuais, travestis, etc.
Você não pode se manter dentro dessas coisas
porque a diversidade humana é muito grande.
E se eu for gay, lésbica, bissexual,
transgênero e simpatizante,
tudo ao mesmo tempo?

LAERTE

 

Introdução

Desde Freud, passando pelos estudos de Robert Stoller até as publicações contemporâneas que dialogam com a teoria Queer – propagadas a partir do pensamento da filósofa Judith Butler – a comunidade psicanalítica tem refletido acerca das questões edípicas frente à identidade de gênero e suas pluralidades, incluindo a temática da transexualidade. Com o passar do tempo algumas barreiras foram sendo quebradas, por exemplo, a proposição de que a certeza de pertencer ao sexo oposto seria necessariamente da ordem de uma estrutura psicótica. Ainda assim, podemos afirmar que não há respostas a todas as perguntas efetuadas, ousando dizer que, se houvesse uma matriz de respostas, não estaríamos respeitando um dos preceitos básicos da psicanálise: a subjetividade inerente ao sujeito.

Os estudos de Stoller, efetuados prioritariamente através da análise de casos clínicos, influenciaram um grande número de psicanalistas que o sucederam, seja através de adeptos entusiasmados, seja através de críticos contundentes. No decorrer dos anos, sua obra foi avaliada, complementada e criticada por autores interessados em aprofundar os estudos sobre transexualidade, ou em outras possibilidades que não se enquadram nas categorias sexuais ou de gêneros mais comuns. Assim, este trabalho toma os casos relatados por Stoller como ponto de partida, propondo algumas reflexões quanto aos efeitos do complexo de Édipo nas saídas psíquicas encontradas pelos transexuais.

Ao refletir sobre a proposição efetuada por Stoller, revisitamos alguns aspectos da obra de Freud e sua evolução teórico-clínica sobre os pontos inerentes ao complexo de Édipo. Essa reflexão nos levou a Thomas Ogden, autor contemporâneo que, entre outras contribuições, traz em sua obra o conceito de transicionalidade do complexo de Édipo e ressalta a importância das marcações pré-edípicas na constituição subjetiva.

De forma geral, a temática transexual tem sido amplamente estudada a partir de meados do século XX. De acordo com Stoller, o termo “psicopatia transexualis” surgiu em 1949, mas somente em 1953 o tema passou a ser estudado de forma mais aprofundada. Em 1966 a literatura passou a convencionar a adoção do termo “transexualismo” a partir da proposta do médico Harry Benjamin para criação de uma escala de “orientação sexual”, onde estabeleceu uma diferença entre travestismo e transexualismo, excluindo a homossexualidade do segundo grupo (ARÁN, 2006).

Em publicações mais recentes nos deparamos com autores que defendem uma nova cartografia da relação entre os sexos. Com abordagens contrárias às concepções normativas dos sistemas sexo-gênero, observamos um claro questionamento sobre a utilização do termo “transexualismo”, entendendo-se que, em decorrência do sufixo “ismo”, o emprego desse termo dá ênfase à patologização e ao entendimento da questão transexual como um “transtorno de identidade”.

Na busca de reforçar a despatologização e de reforçar um fazer performativo presumindo possibilidades de escolhas, alguns teóricos atuais priorizam a utilização do termo “transexualidade”, sugerindo que não é preciso patologizar o sofrimento que advém dessas situações para que se legitime as escolhas subjetivas de cada sujeito. Concordamos que a manifestação da sexualidade deve estar no campo da subjetivação e da possibilidade, por isso, ao longo deste trabalho, priorizamos o uso do termo “transexualidade”, com exceção apenas para trechos em que ocorrem citações integrais dos autores pesquisados.

 

Aspectos edípicos na experiência transexual

Encontramos na literatura indicações de que foi através dos estudos e das publicações de Stoller que a psicanálise se deparou pela primeira vez com o termo “gênero”. O uso desse termo se deu em decorrência da necessidade de diferenciar sexo anatômico e identidade sexual. De acordo com Porchat (2014) a entrada desse termo na cena psicanalítica ocorreu através da patologia, onde Stoller destacava a incoerência entre sexo anatômico e identidade sexual em seus pacientes transexuais.

Separando sexo e gênero, Stoller postula que a identidade de gênero é uma convicção, denominando, então, o conceito de “identidade de gênero nuclear”. Para ele, a identidade de gênero nuclear resulta de uma combinação de fatores que abrangem desde forças biológicas e neurofisiológicas até questões culturais e ambientais.

Stoller (1993, p. 29) define assim a identidade de gênero nuclear:

É o primeiro passo em direção à identidade de gênero fundamental da pessoa e a conexão em torno da qual a masculinidade e a feminilidade gradualmente se desenvolvem. A identidade de gênero nuclear não implica em papel ou relações objetais. Em torno dos dois ou três anos de idade, quando podemos observar a masculinidade definida nos meninos e a feminilidade nas meninas, ela está tão estabelecida que é quase inalterável.

Para Stoller, cinco itens interdependentes são os responsáveis pela identidade de gênero nuclear do sujeito, a saber: (1) uma força biológica que se origina na vida fetal; (2) a designação do sexo do indivíduo ao nascer (de acordo com a mensagem que a aparência dos genitais externos do bebê leva àqueles que podem designar o sexo); (3) a influência incessante das atitudes dos pais; (4) os fenômenos biopsíquicos causados por padrões de manejo do bebê; e (5) o desenvolvimento do ego corporal.

Entretanto, pode-se dizer que a pesquisa relacionada aos conceitos de formação da identidade sexual e as suas diferenças não esperou a formalização da noção de gênero. Cossi (2011, p. 70) ressalta que tal pesquisa já aparecia em Freud.

Já em Freud, a formação de um gênero não estava determinada pelo sexo. As noções de masculinidade e feminilidade não eram para ele facilmente definíveis. Inicialmente, a masculinidade foi associada ao conceito de atividade e a feminilidade ao de passividade. Contudo, tais noções sofreram várias modificações ao longo de sua obra.

Desde as cartas a Fliess, passando pelos textos Três ensaios sobre a sexualidade (1905), Dissolução do complexo de Édipo (1924), Consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925) e Sexualidade feminina (1931), entre outros, Freud nunca descartou a bissexualidade como um elemento fundamental na constituição humana.

Em O ego e o id (1923) faz uma elucidação do complexo de Édipo considerando a bissexualidade:

[...] em ambos os sexos a força relativa das disposições sexuais masculina e feminina é o que determina se o desfecho da situação edipiana será uma identificação com o pai ou com a mãe. Esta é uma das maneiras pelas quais a bissexualidade é responsável pelas vicissitudes subsequentes do complexo de Édipo. [...] É este elemento complicador introduzido pela bissexualidade que torna tão difícil obter uma visão clara dos fatos em vinculação com as primitivas escolhas de objeto e identificações, e ainda mais difícil descrevê-las inteligivelmente [...] (FREUD, [1923] 1996, p. 47-48).

Numa tradução recente do chamado Manuscrito inédito de 1931, encontramos também um Freud defendendo seu ponto de vista de que a bissexualidade faz parte da constituição subjetiva do ser humano.

Nos diz ele:

[...] todos os seres humanos são constituídos em dupla camada, são bissexuais. Cada indivíduo singular, seja homem ou mulher, é composto por elementos de masculinidade e feminilidade (FREUD, [1931] 2017, p. 39).

Mais à frente, fazendo referência à atividade e à passividade dos elementos de masculinidade e feminilidade, o autor complementa:

[...] masculinidade anatômica e masculinidade psicológica com frequência não se apresentam juntas [...] há também mulheres que trazem tão pouca feminilidade que, em tudo, com exceção da anatomia genital, são equiparáveis aos homens. [...] A psicologia precisa aceitar esses fatos, não precisa explicá-los (FREUD, [1931] 2017, p. 43).

Assim como Freud, Stoller (1982) acredita que a masculinidade e a feminilidade estão presentes nos homens e nas mulheres e que as memórias edípicas são carregadas por toda a vida. Stoller afirma concordar com a maior parte das teorias freudianas, entretanto complementa seu pensamento afirmando que a perda do pênis para um transexual não é da ordem da castração, e sim da existência. Para ele a verdadeira importância do estudo da temática transexual estaria no entendimento de que a mudança de sexo está diretamente relacionada a um medo da perda do eu. Segundo Stoller, a saída transexual é, por definição, a mais profunda distorção entre masculinidade e feminilidade.

Esse pensamento é calcado em um aspecto fundamental da teoria de Stoller. Para ele, não é a feminilidade que é construída e sim, o contrário. Ou seja, o menino, em virtude de uma forte simbiose com seu cuidador inicial (na maioria das vezes, uma mulher), teria primeiro que se separar dessa figura parental para construir sua masculinidade. Acredita que anatomia não significa o destino, este seria advindo do que as pessoas fazem com a anatomia.

Para avançar para o estado heterossexual, que é, então, a origem do conflito edipiano, o menino necessita desprender-se da simbiose primal, original, na qual ele e sua mãe estavam, a princípio, fundidos (STOLLER, 1982, p. 295).

De acordo com Stoller, nos casos em que ele observou, as mães dos meninos que ansiavam pela transição sexual demonstraram grande interesse na gestação e, em especial, por terem sido mães de um belo menino. Era como se tamanha beleza personificasse com perfeição o falo que sempre haviam desejado, sugere o autor. Como resultado, mantiveram esse bebê o mais perto de si possível, reduzindo ao mínimo a separação dele de seu corpo, num grau de proximidade e intimidade que, segundo o autor, continham microcomportamentos incômodos de serem vistos por um observador externo.

Isso nos remete à teoria da sedução generalizada apresentada por Laplanche, ao postular os “novos fundamentos da psicanálise”. Nesse trabalho, Laplanche retoma a teoria da sedução abandonada por Freud, complementando-a com o entendimento de que tudo o que é vivido pela criança desde os primeiros cuidados corporais é da ordem da passividade: a criança está sempre num estado de imaturidade, incapacidade e insuficiência em relação ao que lhe acontece.

Ao postular que o primeiro objeto de amor do menino é heterossexual, Stoller sugere que a criança deve realizar uma grande façanha, separando sua identidade da identidade mãe, para passar por um doloroso processo de tornar-se masculino. Com isso, o autor entende que a masculinidade ainda não criada é posta em perigo por uma profunda e primitiva unidade do bebê com a mãe.

Stoller afirma ter fundamentado seu pensamento a partir do que considerou uma consistente observação clínica. Acredita que os casos por ele observados tinham em comum o fato de os meninos não terem conseguido seguramente distinguir onde sua mãe acabava e onde eles mesmos começavam. Complementa o desenvolvimento de seu raciocínio expondo que um tipo de estrutura psicológica serviu como ponte, conectando continuamente as mães a seus filhos. Afirma, porém, não ter uma concepção adequada, e muito menos um nome, para o que tentou exemplificar como uma “estrutura psicológica”.

Stoller relata que essa “estrutura psicológica” tomou a forma de feminilidade nos meninos dos casos que observou e foi estabelecida quando eles não ultrapassavam a idade de um ano, época em que teriam aparecido os primeiros núcleos de feminilidade nos meninos, vestindo-se ou autonomeando-se como meninas. Esse ponto do trabalho de Stoller nos leva a refletir que a tal “estrutura psicológica” – que ele próprio alega não ter conseguido conceber adequadamente, ou nomear de melhor forma – se dá anteriormente ao complexo de Édipo postulado por Freud e ao que o próprio Stoller denominou como identidade de gênero nuclear, que se daria a partir de um somatório de aspectos por volta dos dois ou três anos de idade.

Stoller defende que o conflito edípico, sua resolução e formação de identidade seriam essenciais para a produção da masculinidade, mas sugere que no menino transexual não aparece o conflito edípico e, consequentemente, a masculinidade não se desenvolve. O autor defende que o menino já possui a mãe, mais que isso, ele é como ela. O pai, por sua vez, não interfere nessa relação e não se torna objeto de identificação para o menino.

Analisando de forma um pouco mais detalhada o que Stoller chamou de “influências parentais no transexualismo (sic) masculino”, observamos que o autor aponta para itens em comum que denotariam uma forte bissexualidade recalcada da mãe, que, por sua vez, teria questões não resolvidas de seu próprio complexo de Édipo, marcadas por forte inveja do pênis. Genericamente falando, de acordo com Stoller, as mães dos meninos por ele estudadas tiveram uma mãe pouco feminina, que se incumbiu de apagar a masculinidade de seu pai e, nos casos das que tiveram irmãos homens, sempre se sentiram preteridas em relação a eles, entendendo que seu sentimento de inferioridade dava-se em decorrência da virilidade dos irmãos.

As observações de Stoller sugerem ainda um certo distanciamento dos pais na criação dos meninos transexuais, o que aumentaria ainda mais a simbiose do relacionamento mãe-bebê. Apesar de enfatizar tal ausência paterna, o autor não aborda a questão sob o ponto de vista da foraclusão do nome do pai, ao invés disso, parte da ideia de que toda identidade é uma ilusão.

Entretanto, a partir de seu ponto de vista, é necessário que seja feita uma clara distinção entre delírio e ilusão. Enquanto o primeiro estaria associado a fenômenos psicóticos, em que se tenta erguer ou construir uma nova realidade em face de uma realidade anterior inaceitável, a ilusão estaria ligada à má interpretação da realidade externa, não visando a sua reconstrução. Nesse sentido, Stoller vai defender que, como o transexual não reconstrói seu corpo à maneira psicótica – através do delírio, tal qual Schreber –, pede por uma intervenção médica que tornaria seu corpo em relação à sua identidade psíquica.

Por essa definição, o transexualismo [sic] não é, tampouco uma ilusão, mas talvez possamos mantê-lo nessa categoria, porque o transexual, sendo diferente de uma pessoa delirante, nunca nega a realidade externa (seu sexo anatômico). [...] os transexuais não conseguem alucinar uma mudança sexual; é por isso que precisam tomar hormônios e buscar a cirurgia para mudar de sexo (STOLLER, 1982, p. 31).

Stoller defende que as influências ambientais na primeira e segunda infância são grandes responsáveis pela constituição do sujeito, considerando a figura materna como o primeiro ambiente a ser vivenciado. E oferece a hipótese de

[...] que somos levados a concluir que somos adequados para nossos corpos por forças tão externas a nós e tão além de nossa capacidade de mudança (mesmo por decisões inconscientes), como ocorre com estas pessoas bizarras (sic) que discuto aqui (STOLLER, 1982, p. 19).

 

O Édipo transicional de Ogden

Avaliando os pontos que Stoller indica como constituintes para a saída transexual, e seu entendimento de que as manifestações femininas dos meninos por ele observados se dão precocemente, somos levados a refletir sobre as marcações pré-edípicas que Thomas Ogden (2004) denominou de complexo de Édipo transicional. O autor elabora a ideia de que antes da entrada no complexo de Édipo freudiano, que classifica como Édipo maduro, o bebê precisa se relacionar com uma mãe pré-edípica através de seus objetos internos. Acerca das relações objetais, Ogden sempre destaca em seus trabalhos a importância de se refletir o tema fundamentalmente a partir de uma teoria de relações objetais internas inconscientes. “Esse conceito de relações objetais internas vai muito além da noção clássica de representações mentais de self e objeto” (OGDEN, 2017, p. 140).

Para Ogden (2004), há diferenças significativas entre o complexo de Édipo transicional da menina e do menino. Este último é mais elaborado, porque o menino tem que lutar para se separar da poderosa mãe pré-edípica antes de cair de amores pela mãe edípica. Em sua farta produção teórica, ancorada na observação clínica, Ogden traz referências claras tanto de Freud, quanto de Bion, Winnicott e Klein. No que diz respeito especificamente a seus pensamentos acerca do complexo de Édipo, assim como Melanie Klein, Ogden destaca a importância das marcações arcaicas como formadoras de um arcabouço fundamental na constituição do sujeito. Entretanto, enquanto Klein destaca a culpa, a inveja e a gratidão nas marcações arcaicas do complexo de Édipo – e a consequente formação do superego – Ogden vai colocar o foco nos acessos inconscientes que o bebê faz ao Édipo internalizado da mãe.

Para Klein (1928), o complexo de Édipo começa durante o primeiro ano de vida, e a relação do bebê com o seio da mãe é um dos fatores essenciais que determinam o desenvolvimento emocional e sexual. Contrapondo Freud, que afirma que os desejos genitais e escolha de objeto ocorrem na fase fálica, Klein vai nos dizer que

[...] o desenvolvimento sexual e emocional tanto do menino quanto da menina inclui, desde a mais tenra infância, sensações e tendências genitais que constituem os primeiros estágios do complexo de Édipo positivo e invertido (KLEIN, [1945] 1996, p. 461).

Ogden corrobora esse pensamento quanto à precocidade do complexo de Édipo, entretanto traz uma nova contribuição, postulando uma transicionalidade no complexo de Édipo. Utilizando as referências winnicottianas, Ogden sugere que, assim como o bebê necessita da mãe suficientemente boa para constituir um objeto transicional rumo à alteridade, é também através da mãe que passa por um complexo de Édipo transicional antes de adentrar no complexo de Édipo freudiano.

Assim como Klein, Ogden questiona alguns pressupostos estabelecidos no complexo de Édipo freudiano. Em 1931, no texto Sexualidade feminina, Freud cita a existência de uma fase pré-edípica, entretanto, Ogden enfatiza que ao fazer isso Freud não deu a correta dimensão de tal fase para os meninos, classificando-a como menos importante do que seria a fase pré-edípica das meninas. Assim como o fez Klein, Ogden situa mais pontualmente as diferenciações no complexo de Édipo de meninos e meninas, mas, conforme já citado, o que diferencia a fase sugerida por Ogden é o fato de em sua abordagem ele classificar como fundamentais as marcações edípicas da mãe, que o bebê acessaria de forma inconsciente, desde o nascimento.

A esse respeito, Ogden fala que a mãe traz o pai fálico para a relação edipiana com seu filho através de seu próprio pai edipiano interno. A ausência desse pai interno, firmemente estabelecido na mãe, gera um vácuo emocional que impossibilita o menino de acessar um dos principais ingredientes para elaborar seu complexo de Édipo. É como se o pai real fosse apenas secundariamente o portador do falo com o qual o menino vai identificar o significado fálico para si mesmo. No começo, não há outra coisa além da presença do pai de acordo com as imagos inconscientes da mãe.

Se pensarmos nas observações que Stoller fez dos casos que compareceram em sua clínica, vemos que o olhar de Ogden acerca do Édipo transicional dos meninos tem muito a acrescentar no entendimento das marcações pré-edípicas do sujeito transexual. Citando o próprio Stoller em seu texto, Ogden diz que, para o menino, a mãe como objeto de desejo edípico é continuamente um perigo de ser corroído por essa ligação com a mãe pré-edípica. Esse pensamento nos remete novamente às postulações de Laplanche acerca da teoria da sedução generalizada, quando o autor destaca que uma das formas de veiculação da sedução materna é através dos cuidados corporais dispensados ao filho.

Para Ogden, a jornada entre a mãe externa e a mãe interna (pré-edípica), vai ser medida, em parte, pelo poder das fantasias da cena primária como organizadora de significado sexual e identidade. O autor ressalta que, apesar de Freud ver a cena primária como parte da pré-história do complexo de Édipo, não chega a elaborar esse conceito na direção de que esse grupo de fantasias influencia o desenvolvimento do complexo de Édipo. Ogden, por sua vez, considera que as fantasias da cena primária são organizadores cruciais para a constituição do complexo de Édipo maduro.

Sugerindo que é a partir da fantasia da cena primária que o bebê consegue transitar da mãe pré-edípica para a mãe real, Ogden reforça que, se não há esse terceiro na cena primária, o bebê fica apenas com a mãe interna. Paradoxalmente, é através da mãe que o menino adquire o falo. Isso se dá no contexto de uma relação com a mãe, em que a triangulação do complexo de Édipo se resolve. Assim, para Ogden, as fantasias da cena primária não são simplesmente pensamentos acerca do intercurso parental, são importantes veículos para a constituição identitária.

Apesar de Ogden não relacionar diretamente as implicações do complexo de Édipo transicional a estudos sobre transexualidade, somos levados a observar que suas pontuações podem, de alguma forma, nomear ou dar mais clareza ao que Stoller tentou exemplificar como “estrutura psicológica”. Ao postular a importância dos objetos internos maternos na fase pré-edípica do bebê, assim como a precoce triangulação que se faz necessária para que o bebê se separe dessa mãe na direção de um caminho de alteridade, Ogden, de certa forma, corrobora o pensamento de Stoller de que há marcações anteriores ao complexo de Édipo freudiano que podem ser fundantes nas saídas encontradas pelo sujeito transexual.

Outro fator merece ser destacado. Stoller defende que o processo de identificação remete ao direcionamento a um objeto percebido como não sendo a própria pessoa.

Isto significa que deve existir uma mente desenvolvida o suficiente para compreender o objeto (ou uma parte do objeto) e desejar tomá-lo, tendo como consequência o fato de que a representação de objeto pode ser expelida (projeção) (STOLLER, 1982, p. 292).

Ogden, por sua vez, sugere que a transição das fantasias da cena primária efetuadas pelo bebê – que possibilitam a entrada do terceiro nessa fase pré-edípica – se assemelham ao conceito de objeto transicional postulado por Winnicott, ou seja, pressupõe que a criança já tenha uma elaboração de que ela não é a mãe, para que possa, então, dar conta dessa transicionalidade.

 

Considerações finais

Thomas Ogden nos fornece valiosas contribuições em suas publicações feitas a partir de sua clínica contemporânea. Trouxemos para este estudo apenas um extrato de sua farta e proeminente pesquisa. Apesar de seus escritos citados neste estudo não apontarem a transexualidade de forma específica, entendemos que suas contribuições dialogam com qualquer tipo de clínica, enriquecendo o entendimento da psique humana.

O desejo de refletir a experiência transexual a partir da teoria do complexo de Édipo transicional deu-se a partir do entendimento da importância das questões pré-edípicas observadas nos casos relatados por Stoller. Esse autor contesta o pressuposto de que a escolha objetal, assim como masculinidade e feminilidade seriam influenciados por uma bissexualidade constitucional e universal. Apesar de não negar a influência dos sistemas biológicos, considera que os principais efeitos são advindos do ambiente. A identidade de gênero seria, portanto, estabelecida no início da vida, por forças psicológicas que nos remeteram ao pensamento da teoria de Ogden.

Stoller reconhece a importância do conflito identitário gerado pela experiência dissonante entre o corpo e o gênero, demonstrando que a relação entre anatomia e identidade sexual não é binária. Afirma que os atributos biológicos da criança podem ser subvertidos, indicando que não têm o papel principal nem mesmo no estágio mais primitivo da formação da identidade genérica.

Para Stoller, o transexual não tenta mudar de gênero, apenas de sexo, de forma que seu corpo fique de acordo com a sua psique. Complementa seu entendimento acerca da castração falando que

[...] aqueles que nasceram sem um pênis ou que o perderam traumaticamente podem sofrer de angústia, mas não de tais catástrofes como, por exemplo, perda das fronteiras do ego, i.e. perda de senso do eu (self) (STOLLER, 1982, p. 287).

Em suas reflexões sobre a temática transexual, Ceccarelli (2017, p. 131) vai nos sugerir:

Seja como for, a diferença é uma questão complexa e implica a sexuação, a “escolha” e assunção subjetiva do sexo. Para poder “escolher”, tem que haver diferença a partir da qual o sujeito se posiciona. Sendo a diferença um dado não localizável, a escolha é incerta e ambígua. Nessa perspectiva, a pergunta “o que é uma mulher?” e/ou, “o que é um homem?” para além da lógica fálica, fica sem resposta. Cada sujeito vai situar-se nesta diferença – mais ou menos do lado dos homens ou das mulheres, de forma sempre singular e imprevista.

Finalizando este estudo, refletimos que as saídas encontradas pela psique humana, diante da experiência, da vivência e do ambiente de cada um, são as mais variadas possíveis. Da mesma forma, o são as multiplicidades possíveis na identidade de gênero e sexuação.

Para encerrar, trazemos as postulações de Joyce McDougall (1997, p. 186) sobre o que denominou de “neossexualidades”:

O aspecto notável dos seres humanos em sua estrutura psíquica – como em sua estrutura genética – é sua singularidade. Os sintomas psicológicos são tentativas de cura de si mesmo, de evitar o sofrimento psíquico; este mesmo propósito se aplica às sexualidades sintomáticas. [...] Defrontados com as dificuldades de sermos humanos, bem como com os conflitos inconscientes dos nossos pais, todos nós temos de inventar meios de sobreviver, tanto como indivíduos quanto como seres sexuais – e as soluções que encontramos tentem a durar a vida inteira.

Para McDougall as neossexualidades abrangem todas as heterossexualidades e homossexualidades desviantes. Considera que o sujeito se utiliza de neorrealidades em tentativas ilusórias – ou mesmo delirantes – de encontrar soluções para conflitos esmagadores.

Nesse contexto, a autora complementa:

As variações da estrutura psicossexual são tão grandes que somos obrigados a falar no plural – de heterossexualidades e homossexualidades (MCDOUGALL, 1997, p. 180, grifo da autora).

A autora vai nos dizer ainda:

[...] ninguém escolhe livremente empenhar-se nas condições altamente restritivas e exigentes impostas pelas invenções neossexuais (MCDOUGALL, 1997, p. 193, grifo da autora).

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: marcia_a_rocha@hotmail.com

Recebido em: 13/05/2019
Aprovado em: 10/06/2019

 

 

SOBRE A AUTORA

Márcia Alves da Rocha
Graduada em comunicação social.
Candidata do Curso de Formação Psicanalítica do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do CBP-RJ.
Integrante do Grupo de Trabalho sobre Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ.

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