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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.51 Belo Horizonte Jan./June 2019

 

PSICANÁLISE E CONTEMPORANEIDADE

 

A verdade e a mentira, a política e a psicanálise

 

The truth and the lie, the politics and the psychoanalysis

 

 

Cibele Prado Barbieri

I Círculo Psicanalítico da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A instituição psicanalítica que, atenta às narrativas de seu tempo, convoca a estudar, a rever e rearticular seus conceitos a partir dos fatos e acontecimentos reinantes, põe à prova e amplia o alcance da psicanálise. Fruto de uma palestra, este texto pretende trabalhar as relações discursivas que estruturam as narrativas de nosso tempo, dando oportunidade ao psicanalista de inserir-se e participar dessas narrativas, articulando criticamente o saber da psicanálise a outros saberes.

Palavras-chave: Política, Psicanálise, Discurso, Verdade, Mentira.


ABSTRACT

The psychoanalytic institution, attentive to the narratives of its time, calls to study, to revise and rearticulate its concepts from the facts and reigning events, sets the test and extends the scope of psychoanalysis. As the result of a lecture, this text intends to work the discursive relations that structure the narratives of our time, giving opportunity to the psychoanalyst to insert and participate in these current narratives, articulating critically the knowledge of psychoanalysis to other knowledge.

Keywords: Politics, Psychoanalysis, Speech, Truth, Lie.


 

[...] ser amigo de todo o mundo
não basta para preservar o lugar
de onde temos que operar.

LACAN. A ciência e a verdade.

 

Gostaria de sublinhar e elogiar a iniciativa do Espaço Moebius1 em retomar as discussões em torno de questões como o saber e a verdade, num momento tão sensível e importante, como este que atravessamos no País e no mundo. A instituição psicanalítica que, atenta às narrativas de seu tempo, convoca a estudar, a rever e rearticular seus conceitos a partir dos fatos e acontecimentos reinantes, põe à prova e amplia o alcance da psicanálise.

Se na psicanálise em intensão cada análise refaz a psicanálise, na psicanálise em extensão o saber produzido, transmitido e reunido também “insistui”: institui ao mesmo tempo que insiste e repete o percurso histórico e lógico das instituição psicanalíticas.

Francisco Goya, em 1814, criou uma gravura intitulada A verdade morreu. O problema da verdade não é uma questão especifica do nosso século; ela nos antecede em muito e continuamos manipulando as narrativas de acordo com os interesses do momento, como sempre foi, e demonstrando que o discurso pode sofrer torções, negações, desmentidos – como vemos nas narrativas e posicionamentos do sujeito perverso – de forma que verdade e mentira são variações de narrativas que se evidenciam como discurso político, mesmo que o sujeito em causa não se pretenda ou se reconheça literalmente político. Lembramos que Lacan nos diz que “O inconsciente é a política” (LACAN, 1966-1967, p. 263) e Freud, em seu texto mais fundamental, O projeto, revela a primeira mentira – Proton pseudos histérica (FREUD, 1950 [1895]).

 

O que sabemos da verdade?

Buscando nos discursos da civilização um saber sobre a Verdade, encontrei um apólogo do século XIX também referido como um conto judaico, intitulado A verdade nua e crua. Relacionada a essa narrativa, inclusive, Jean-Léon Gérôme criou a mundialmente famosa pintura A verdade saindo do poço, em 1896.

Esse apólogo fala sobre a dificuldade em discernir entre verdade e mentira e como é fácil travestir a mentira em verdade, usando suas vestes. O conto nos leva também à essência da Verdade como inapreensível pela palavra em sua total extensão, justificando dizer que ela só pode ser dita não-toda e, por isso, necessitamos do recurso à parábola, ao apólogo e ao conto, como meio de transmissão. É que a verdade se oferece ao olhar, não apenas como muitas faces mas, justamente, como “a” face que produz horror, ao se apresentar nua e crua.

O apólogo conta:

A Verdade e a Mentira se encontram um dia.
A Mentira diz à Verdade: “Hoje é um dia maravilhoso!” A Verdade olha para os céus e suspira, pois o dia era realmente lindo.
Elas passam muito tempo juntas, chegando finalmente ao lado de um poço. A mentira diz à verdade: “A água está muito boa, vamos tomar um banho juntas!” A verdade, mais uma vez desconfiada, testa a água e descobre que realmente está muito gostosa. Então, elas se despem e começam a tomar banho.
De repente, a Mentira sai da água, veste as roupas da Verdade e foge.
A Verdade, furiosa, sai do poço e corre para encontrar a Mentira e pegar suas roupas de volta.
O mundo, vendo a verdade nua, desvia o olhar, com desprezo e raiva.
A pobre Verdade volta ao poço e desaparece para sempre, escondendo nele sua vergonha. Desde então, a Mentira viaja ao redor do mundo, vestida como a Verdade, satisfazendo as necessidades da sociedade, porque, em todo caso, o Mundo não nutre nenhum desejo de encontrar a Verdade nua.

A verdade, quando se apresenta nua, aponta para o corpo e revela o lugar do obsceno. Ela convoca os diques, que Freud postulou como primeiros entraves – impedimentos à satisfação – que são condições precoces para a repressão, o recalque ou a sublimação: o nojo, a vergonha e a moral.2

Sabemos do impacto que tal desnudamento provoca nos indivíduos e nas massas e como isso pode ser usado para gerar repúdio e dominação pela demonização do outro, tornando-o “estranho”, inimigo, mesmo que a mentira travestida com as vestes de verdade seja apenas semblante. Basta que a mentira apresente o objeto obsceno do gozo mais íntimo de cada sujeito para provocar um “efeito de manada”.

Nos vemos, então, diante da relação entre gozo e verdade, que implica que ela não possa ser dita (e vista) toda. Há que produzir uma representação capaz de imaginarizar/simbolizar que a inclua no circuito do saber.

Mas mesmo que isso permita um saber sobre esse gozo, ainda não permite que se dê conta da verdade toda, que só pode ser ‘meio-dita’, ‘mal-dita’ e protegida no equívoco, dentro e no fundo do poço, na medida em que resta algo do Real que não pode ser representado, mesmo servindo-se da imagem e do sentido. É assim que Lacan a define: como impossível.

Digo sempre a verdade. Não toda [...] pois, dizê-la toda, não se consegue [...] Dizê-la toda é impossível, materialmente [...] faltam as palavras. É justamente por esse impossível [...] que a verdade tem a ver com o real (LACAN, (1973) 2003, p. 509).

Resta sempre algo da verdade que permanece excluído da possibilidade de “dizer toda a verdade, nada mais que a verdade”, pois só o corpo a isso responde. Assim, justifica-se a afirmação de Lacan de que “a verdade tem uma estrutura [...] de ficção” (LACAN, [1956-1957] 1995, p. 259).

Mesmo assim, isso não implica que ela esteja morta, mas apenas semidita, escondida e consistente enquanto saber que existe no Real. Sabemos que existe um saber no Real que produz discurso. É como entendo os trechos de Freud que citei há pouco, onde textualmente diz que não depende da educação o surgimento desses diques; eles advêm desse saber que existe no real, que produz efeitos de verdade.

A relação entre saber, gozo e verdade está na estrutura dos discursos e permite considerar que o saber sobre o gozo é a fórmula da verdade do sujeito.

 

A mentira

Pensando sobre a mentira, é possível dizer que não é a simples contrapartida negativa da verdade. A mentira é criativa, ela engana, ela produz distorções e gera ‘realidades’. Não basta afirmar que algo não condiz com a ‘realidade’ para tranquilizar o sujeito. A mentira tem que ser comprovada, a verdade tem que testar, duvidar, pôr à prova o que a mentira diz para certificar-se, pois falta nela a vertente do Real. Ela se restringe à imagem, ao registro do ilusório, Imaginário.

Então recorro novamente à produção das histórias, das ficções e dos escritores criativos para refletir sobre a mentira. Dois livros foram importantes nessa reflexão.

O primeiro é um livro bem atual, publicado em 2018 aqui, no Brasil, onde a autora, Michiko Kakutani reúne documentos oficiais, cujas fontes são exaustivamente apresentadas, compondo um impressionante “estudo” que revela como, quando e por que vivemos a era da morte da verdade.

Este é o título do livro: A morte da verdade: notas sobre a mentira na era Trump, que ela dedica aos “jornalistas em todo o mundo que trabalham para noticiar os fatos”. Michiko é nipo-americana e, entre outras coisas, foi crítica literária do The New York Times. Não por coincidência, certamente, é diplomada em literatura inglesa – ela lida com a palavra. O livro aborda as linhas e entrelinhas, os cenários de fundo que esclarecem o momento político que vivemos, as mentiras construídas e os efeitos de verdade que se pretende colher para sustentar o que alguns denominam a Matrix em que vivemos; a alusão à ficção, pretende mostrar que vivemos uma ilusão, que estamos envolvidos, enrolados, encapsulados numa estrutura onde a mentira compõe a “realidade” e que essa realidade não corresponde à verdade, ao Real: coisa que nós psicanalistas estamos ‘fartos’ de saber.

Por isso, a literatura não nos surpreende mais do que as verdades objetivas dos relatórios dos fatos comprovados que, muitas vezes, causam um efeito de pura constatação e impotência por nos situar diante de dados que podem até ser denunciados, mas não podemos transformar, pois estão além das nossas possibilidades individuais de retificar. O grupo, a massa, o social é muito mais poderoso que o indivíduo.

Por outro lado, a literatura nos permite outra elaboração quando nos presenteia com os paradoxos mais inusitados, pois desvelam as dificuldades que temos em discernir entre a Verdade e a falsidade dos discursos que, ouso dizer, ‘nos acometem e nos atingem em cheio’.

Enquanto os relatórios objetivos e informativos vão produzindo um horror e uma crescente repulsa, como no caso do texto de Kakutani, o escritor criativo, ao contrário, produz um envolvimento e um desejo de saber até o fim, na medida em que sua trama nos insere num cenário ficcional.

Por isso, me lembrei de um dos livros que mais me impressionaram. Este é o segundo livro ao qual me referi, que há alguns anos me causou profunda reflexão e me permitiu penetrar no sentido de uma verdade histórica pela qual fui surpreendida, sem o sentimento de horror e revolta, integrando essa nova fala ao saber.

Publicado pela primeira vez em 2010, O cemitério de Praga, de Umberto Eco, foi publicado aqui no Brasil em 2011; a obra é considerada uma “visão panorâmica da história política do século XIX”.3 “O nome do livro é uma alusão ao antigo Cemitério Judeu de Praga, onde, de acordo com Os Protocolos dos Sábios de Sião, judeus teriam conspirado para dominar o mundo. A história contém uma série de conspirações e falsificações, envolvendo ainda carbonários, jesuítas, maçons e satanistas.”4

Um parêntese. É interessante notar que esse discurso de “judeus conspirando para dominar o mundo” – que sustentou a escalada de Hitler ao poder – tem se atualizado no cenário político brasileiro no que repete, literalmente plagia, o discurso nazista palavra por palavra, apenas substituindo o significante “judeus” pelo significante “comunistas”.

[...] Os comunistas são o topo do País. Eles são o topo das organizações financeiras; eles são os donos dos jornais; eles são os donos das grandes empresas; eles são os donos dos monopólios [...]5 (WEINTRAUB, ABRAHAM, 2019).

O protagonista da trama de Umberto Eco, Simonini, é um falsificador profissional que cria documentos oficiais – por encomenda ou em benefício próprio – que supostamente sofre de um “transtorno dissociativo de personalidade”, segundo algumas resenhas sobre o livro. Essa divisão do EU, ou splitting (como descrita por Freud em A divisão do ego no processo de defesa [1938]), é evidenciada por uma vida dupla, que o próprio personagem progressivamente detecta a partir de certos lapsos, lacunas na linha do tempo do seu cotidiano, que ele atribui a falhas de memória, fazendo com que recorra a um diário onde registra suas atividades cronologicamente, para tentar preencher as lacunas. O personagem acaba descobrindo uma extensão de sua própria casa, uma divisão a partir de uma determinada porta que leva à sua outra identidade, à sua outra vida, até então desconhecida, desconectada da identidade consciente. Assim ele descobre sua vida “subterrânea”, que inclui vários assassinatos.6

Mas o que me impactou nessa história foi um efeito de surpresa quando o autor, numa espécie de epílogo, que ele chamou de “inúteis esclarecimentos eruditos”, revela que seus personagens – à exceção do protagonista, que é fictício – são pessoas reais que ele apenas dissimulou sob outros nomes e codinomes. Assim também, os acontecimentos, os fatos relatados e fundamentais à consistência da trama do romance são verdadeiros e registrados na história de forma que descobrimos que a sucessão dos fatos ocorridos em muitos países da Europa foi tramada, desviada de seu rumo original, construída mediante a elaboração e a provocação de fatos forjados, baseados em mentiras produzidas, arquitetadas e materializadas como provas incontestáveis da verdade. Fake News.

Esse esclarecimento, ao contrário de inútil, é absolutamente útil e eficiente para gerar um efeito de après-coup que produz um sentido novo do texto como um todo, ao seu final, pois não se trata mais de uma criação literária, mas de uma verdade que pode ser enunciada sob os auspícios do ficcional.

Parece que essa foi a intensão primária do autor, pois no capítulo 6 de seu livro Seis passeios no bosque da ficção, Umberto Eco pergunta:

Se os mundos ficcionais são tão confortáveis, por que não tentar ler o mundo real como ficção? Ou, se os mundos ficcionais são tão pequenos e ilusoriamente confortáveis, por que não tentar criar mundos ficcionais tão complexos, contraditórios e provocantes como o mundo real?7

Isso nos coloca diante da relação sem fronteiras entre verdade/mentira; factual/ficcional; imaginário/simbólico/real, não como ‘entidades’ separadas, opostas ou contraditórias, mas como dois lados comunicantes e nos lembra que Lacan afirmou que “toda verdade tem uma estrutura de ficção”.

Bem entendido que...

Fictitious não quer dizer ilusório nem, em si mesmo, enganador. [...]

Uma vez operada a separação do fictício e do real, as coisas não se situam absolutamente lá onde poderíamos esperá-las. Em Freud, a característica do prazer como dimensão do que encadeia o homem, encontra-se totalmente no lado do fictício. O fictício, efetivamente, não é, por essência, o que é enganador, mas, propriamente falando, o que chamamos de simbólico (LACAN, [1959-1960] 1999. p. 23-24).

No apólogo do qual partimos podemos notar que em um primeiro tempo, a Verdade e a Mentira caminham e se divertem juntas, pois a Mentira faz afirmações com as quais a Verdade concorda após uma dúvida e uma prova. A prova permite o acordo.

O momento de separação entre as duas acontece a partir do roubo das vestes da Verdade. A Mentira revela-se, então, como enganadora, mostrando que sua estrutura é da ordem do engodo e só vigora a partir da imagem que a veste. A Verdade, por seu lado, enquanto estrutura ficcional, só pode ser abordada na fala e se não puder falar, permanecerá nas sombras do poço, pois nela não é a imagem que a configura, mas o simbólico.

[...] ao fazer arrepiar-se com uma nova pele a nudez com que se veste aquela que sai do poço, eu lhe daria voz. Eu, a verdade, falo [...] (LACAN, [1965] 1998, p. 873).

Para a verdade, o simbólico. Para a mentira a imagem. Isso nos lembra a fórmula freudiana do lapso, do chiste e da negação em que a verdade fala e se revela como afirmação num tempo lógico que precede e é condição tanto para a afirmação quanto para a negação, pois a negação pressupõe uma afirmação prévia.

Seria a mentira um mecanismo de negação necessário na constituição da verdade enquanto afirmação?

Alain Didier-Weill em Lacan e a clínica psicanalítica, desenvolve a ideia de um pacto originário, pré-histórico, que antecede o sujeito e se situa como condição para o recalcamento originário e o surgimento lógico do sujeito. Ele diz:

O que há de mais originário no sujeito é o fato de que ele é o resultado de um pacto que se produziu num tempo pré-histórico, no qual houve um encontro. Uma interseção entre o real e o simbólico. Lacan diz que, nesse momento, o real padece do significante. Neste pacto, que precede o recalcamento originário no qual o imaginário ainda não intervém, o que se produz é um encontro entre este real humano totalmente enigmático, ou seja, este corpo que chega ao mundo numa materialidade que pesa, que se assemelha a uma folha de papel branca [...] e aquilo que sobre ela vem inscrever-se, a ordem do significante. Aí se produz um encontro entre “há” (simbólico) e “não há” (real). Com este pacto se delineia uma espécie de dimensão de promessa, promessa de algo que ainda não se pode saber: promessa de um devir. Mas este pacto será um dia rompido, e esta ruptura é o que, desde Freud, chamamos o trauma. Pode-se dizer que o trauma é a aparição violenta desta significação: “Não há significante”. É na medida em que o pré-sujeito – pois ainda não estamos no nível do sujeito mas do pré-sujeito – tem de integrar a significação do “não há” que, no trauma ele descobre como uma espécie de revelação às avessas: “Fui enganado”. Enquanto o pacto originário significava: “Há significante”, o trauma lhe diz: “Você acreditava que havia significante, mas não há, o significante não está lá”. Chegamos assim ao ponto sem dúvida mais enigmático da psicanálise, [...] qual seja, a maneira pela qual será dada uma resposta a esta ruptura de pacto. A resposta será dada pela substituição do pacto originário por um segundo pacto que leva em conta o “'há” e “não há”. E a integração desta contradição (“há” e “não há”) será o nó desse processo enigmático que nomeamos recalque originário.

Lacan funda a instituição do recalque originário na nodulação das três consistências R. S. I. naquilo que denomino segundo pacto (DIDIER-WEILL, 2018. p. 12-13).

Nesse sentido, o engano seria a condição necessária à elaboração desse segundo pacto, que se opera no confronto e na articulação entre a crença, a afirmação (Bejahung), e a negação. “Há” e “não-há” enodados configuram o recalque original como pacto.

Convoco aqui o pensamento de Didier-Wiell, na medida em que esclarece questões que se estendem do sujeito em jogo nesses pactos ao laço social. Como não existe sujeito sem outro, o individual se aplica à psicologia das massas e o vivido subjetivamente compõe o social e se repete; isso nos permite falar das conjunturas políticas das quais somos parte.

Freud nos legou alguns textos preciosos sobre o papel da mentira no laço social. A famosa piada dos 2 judeus no trem8, por exemplo, pode servir para extrapolar o nível do sujeito singular, individual e revelar como uma verdade exposta pode ser negada, renegada e denegada quando o sujeito que ouve a recebe com desdém ou repúdio, pois não interessa levá-la em conta.

E Lacan acrescenta:

Para que serve saber se dizemos ou não a verdade? Às vezes, mentir é a forma como o sujeito enuncia a verdade de seu desejo, porque não há outra maneira de enunciá-lo senão pela mentira (LACAN, 1967-1968 apud BRODSKY, 2009, p. 2).

Mas sabemos agora, nestes tempos em que vemos a verdade sucumbir, ser calada e, aparentemente, morrer numa subversão histórica, que a mentira é uma arma política poderosa capaz de distorcer as tramas discursivas, produzir “verdades” e “realidades”, mudando os rumos da civilização; intervindo na história passada e futura, como Umberto Eco e Michiko Kakutani, entre muitos outros, revelam ante nossos olhos atônitos, descrentes.

 

Política

Até aqui falamos de política o tempo todo. O que é a política?

No dicionário encontramos: “arte ou ciência de governar, da organização, direção e administração de nações ou Estados; atividade desempenhada pelo cidadão quando exerce seus direitos em assuntos públicos através da sua opinião e do seu voto”.

A palavra “política” tem sua origem na palavra grega “polis” que significa “cidade”. Nesse sentido, determinava a ação empreendida pelas cidades-estados gregas para normalizar a convivência entre seus habitantes e com as cidades-estados vizinhas.

Politiká, é uma derivação de polis que designa aquilo que é público e tikós, que se refere ao bem comum de todas as pessoas, que diz respeito ao espaço público e ao bem dos cidadãos.

No seu livro Política, Aristóteles (2010. p. 13) define que esta é um meio para alcançar a felicidade dos cidadãos. Para isso, o governo deve ser justo e as leis, obedecidas. “[...] o homem é naturalmente um animal político [...]”. Na filosofia grega, berço da democracia, claramente transitamos no terreno do direito, das leis, em função de uma suposição de um Bem Comum a ser atingido, um soberano e absoluto Bem, como representação da felicidade para todos e cada um, como condição de convivência pacífica nos grupos.

A sociologia, por outro lado, coloca a ênfase no poder como aspiração, o poder como bem a ser conquistado. O sociólogo Max Weber9 definiu a política como “[...] a aspiração para chegar ao poder dentro do mesmo Estado entre distintos grupos de homens que o compõem”.

Nas duas acepções a política tem como objetivo neutralizar o mal-estar na civilização através da garantia de proporcionar “o Bem” que possa pacificar as exigências de cada um e de todos, consequentemente, as lutas pela equalização das satisfações/insatisfações individuais e grupais que promovem os conflitos humanos.

Objetivo utópico, pois nenhum sistema político se mostrou até aqui completamente capaz disso. Nem mesmo a democracia, na medida que, atender ao desejo e aos gozos de todos, temos que concordar com Rancière (2014),10 corresponderia ao caos, pois imaginem como seria possível satisfazer aos desejos e gozos de cada um, sempre.

Não podemos esquecer que “A insatisfação, em suma, é de estrutura, não de conjuntura” (GOLDENBERG. 2006).

Diz o Código Civil: “A propriedade é o direito de gozar e de dispor de um bem da maneira mais absoluta, desde que não se faça um uso proibido pelas leis e os regulamentos”.

Temos aqui uma chave importante para esta reflexão: o direito absoluto a gozar de um bem, mas o uso restrito, limitado por regras, que se faz desse bem/objeto – para não cair na lógica Sadiana – que implica as relações do uso do objeto como vetor de felicidade, ou seja, as relações entre sujeito e objeto como fator político.

Passamos ao campo da psicanálise.

Ricardo Goldenberg, (2006) afirma:

[...] embora não tenha sido pensada como um ramo da filosofia, a teoria freudiana aborda um problema filosófico capital, qual seja, o das relações entre o sujeito e o objeto. Relações de conhecimento entre quem explora o mundo e o mundo explorado. Relações de uso do objeto, e estamos no terreno do amor, do direito e […] da política.

Do ponto de vista da psicanálise, a partir de Lacan, a política é o discurso. O discurso é o efeito do jogo entre o sujeito, o objeto, o significante (mestre) e o saber ($, a, S1 e S2), que se articulam pelas posições estratégicas que ocupam, e que definem funções engendrando diferentes formas discursivas. Dependendo da função na qual cada um desses elementos seja instalado, teremos discursos diferentes, políticas diferentes.

Esses diferentes discursos estão submetidos a uma relação específica que, como regra, institui uma única possibilidade de variação da posição dos elementos, por rotação dextrógira.

 

 

Entretanto, uma exceção aos quatro discursos radicais é possível e chama a atenção: o quinto discurso, o discurso capitalista. Neste a ordem dos fatores é subvertida pela permuta entre $ e S1. O $ é alçado ao lugar de agente e S1, passa para o lugar da verdade.

 

 

Conhecemos as consequências lógicas e práticas dessa subversão dos discursos ditos radicais e pensamos sobre efeitos possíveis de instauração de uma “nova verdade” ou sua antítese e negação, quando é o mestre que se institui como depositário, representante oficial ou dono de um arremedo de verdade; mentira com semblante de verdade, determinando ou se apropriando da divisão do outro para o exercício do poder.

Que verdade poderá sair do poço diante do qual nos prostramos, assistindo, mesmo que horrorizados?

Termino com Lacan:

[...] veio-me a inspiração de que, ao ver animar-se estranhamente no caminho de Freud uma figura alegórica, e ao fazer arrepiar-se com uma nova pele a nudez com que se veste aquela que sai do poço, eu lhe daria voz. “Eu, a verdade, falo [...]”, e a prosopopeia continua. Pensem na coisa inominável que, por poder pronunciar essas palavras, atingisse o ser da linguagem, para ouvi-las tal como devem ser pronunciadas, no horror. Mas, nesse desvelamento, cada um entra com o que pode (LACAN, [1965] 1998, p. 879).

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: barbieri.cibele@gmail.com

Recebido em: 17/05/2019
Aprovado em: 10/06/2019

 

 

SOBRE A AUTORA

Cibele Prado Barbieri
Psicanalista, Psicóloga.
Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia (CPB).
Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) 2006-2008.
Membro da Comissão Editorial da Revista Estudos de Psicanálise do CBP.

 

 

1 Este texto foi extraído de uma palestra seguida de debate no Espaço Moebius, Bahia, em maio de 2019.
2 “Durante esse período de latência total ou apenas parcial erigem-se as forças anímicas que, mais tarde, surgirão como entraves no caminho da pulsão sexual e estreitarão seu curso à maneira de diques (o asco, o sentimento de vergonha, as exigências dos ideais estéticos e morais). Nas crianças civilizadas, tem-se a impressão de que a construção desses diques é obra da educação, e certamente a educação tem muito a ver com isso. Na realidade, porém, esse desenvolvimento é organicamente condicionado e fixado pela hereditariedade, podendo produzir-se, no momento oportuno, sem nenhuma ajuda da educação. Esta fica inteiramente dentro do âmbito que lhe compete ao limitar-se a seguir o que foi organicamente prefixado e imprimi-lo de maneira um pouco mais polida e profunda” (A sexualidade infantil, 1905; O caráter e o erotismo anal, 1908). “Já antes da puberdade, sob o influxo da educação, certos impulsos são submetidos a repressões extremamente enérgicas, ao mesmo passo que surgem forças mentais – o pejo, a repugnância, a moral – que como sentinelas mantêm as aludidas repressões. Chegando na puberdade a maré das necessidades sexuais, encontra nas mencionadas reações psíquicas diques de resistência que lhe conduzem a corrente pelos caminhos chamados normais e lhe impedem reviver os impulsos reprimidos” (Cinco lições de psicanálise, 1910. Quarta lição, v. 9).
3 <https://www.gazetadopovo.com.br/blogs/historia-cultural/literatura-e-historia-umberto-eco-o-cemiterio-de-praga>.
4 <https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Cemit%C3%A9rio_de_Praga>.
5 <https://jornalggn.com.br/educacao/o-plagio-do-novo-ministro-da-educacao-de-bolsonaro>.
6 Os cadáveres das pessoas assassinadas são escondidos por ele nos esgotos subterrâneos de Paris.
7 Disponível em: <http://www.bonslivrosparaler.com.br/livros/resenhas/o-cemiterio-de-praga/520>.
8 Dois judeus encontraram-se num vagão de trem em uma estação na Galícia. ‘Onde vai?', perguntou um. ‘À Cracóvia’, foi a resposta. ‘Como você é mentiroso!’, não se conteve o outro. ‘Se você dissesse que ia à Cracóvia, você queria fazer-me acreditar que estava indo a Lemberg. Mas sei que, de fato, você vai à Cracóvia. Portanto, por que você está mentido para mim?’ (FREUD, 1984, p. 136).
9 Max Weber <https://www.todamateria.com.br/max-weber>.
10 Jacques Rancière. Filósofo francês com vários livros publicados. Entre eles, O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.

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