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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.51 Belo Horizonte Jan./June 2019

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

Escritos sobre a clínica psicanalítica na adolescência

 

Writings on psyhoanalytic clinic with adolescents

 

 

Gabriela Lazarini

I Faculdade Ruy Barbosa

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Isolamento excessivo, bullying, ameaças à construção da autoimagem, transgressões, cortes no corpo, desejo de matar e de morrer, fragmentos do discurso que desvelam o uso de drogas, experiências sexuais com pares do mesmo sexo. O objetivo deste artigo é compreender o que a adolescência tem a dizer ao psicanalista. Um caminhar dirigido para a expansão da teoria e dos dispositivos clínicos no campo da psicanálise.

Palavras-chave: Adolescência, Psicanálise, Inconsciente, Eros, Desejo.


ABSTRACT

Excessive isolation, bullying, threats to the construction of self-image, transgressions, cuts in the body, desire to kill and die, fragments that reveal the use of drugs, sexual experiences with same-sex couples. The purpose of this article is to understand what adolescence has to say to the psychoanalyst. A path directed towards theoretical expansion and clinical devices in the field of psychoanalysis.

Keywords: Adolescence, Psychoanalysis, Unconscious, Demand, Desire.


 

Sexo é um troço que não entendo mesmo.
Juro que não entendo.
1

 

Estudar a adolescência é estudar uma temporalidade subjetiva, um tempo “entre dois”, entre dois modos de fazer laço social, uma temporalidade implícita na origem etimológica do termo. Segundo um dicionário etimológico,2 “adolescente” vem do particípio presente do verbo adolescere que, em latim, significa crescer; enquanto o particípio passado do mesmo verbo originou a palavra “adulto” – termos equivalentes a ‘crescente’ [adolescente] e ‘crescido’ [adulto] em português. Apesar de a adolescência ser considerada uma ‘invenção sociológica’ relativamente recente, “[...] a palavra ‘adolescente’ é cerca de cem anos mais antiga que a palavra ‘adulto’”. Isso significa que pensar a adolescência como uma fase, como uma passagem, só fez sentido a posteriori, ou seja, após a conceituação de sujeito, a qual possibilitou caracterizá-lo como adulto. Antes de tal nomeação/definição, éramos todos crescentes.

No artigo Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905 [1996] p. 196) nos diz que a vida sexual adulta só é assegurada por uma

[...] conciliação entre as duas correntes dirigidas ao objeto e à meta sexual, a corrente da ternura e a corrente sensual [...]. É como a travessia de um túnel perfurado desde ambas as extremidades.

Nesse sentido, a adolescência é entendida como uma passagem que, a princípio, liga nada a lugar nenhum, mas possibilita novas “combinações e composições que levam a mecanismos complexos”.

Nas palavras de Freud (1905 [1996] p. 196),

[...] também aqui há uma oportunidade para perturbações patológicas, caso essas reordenações não se realizem.

Daniela Viola e Ângela Vorcaro (2018, p. 1) explicam que a adolescência é uma

[...] tarefa psíquica que precisa incluir, em uma mesma equação, a escolha do objeto sexual e a separação da família, com o consequente encaminhamento do jovem em direção à sociedade mais ampla.

No Seminário 10: a angústia, Lacan ([1962-1963] 2005) caracteriza essa passagem como uma reformulação periódica de conceitos, uma passagem de um sistema conceitual para outro, quando considera haver um curto “momento de resistência”.

Viola e Vorcaro (2018) identificam nos fenômenos da adolescência moderna a ausência de um tipo de operação psíquica compreendida pelo antropólogo Lévi-Strauss como “eficácia simbólica”. Eficácia simbólica é o termo para a transmissão de algo impossível de ser significado, uma referência aos ritos de passagem, justamente o que garante o atravessamento do impasse adolescente nas sociedades tradicionais.

As pesquisas etnográficas de Lévi-Strauss compreendem como nas culturas indígenas sul-americanas determinadas “representações psicológicas” são invocadas, através do canto dos xamãs, no intuito de curar certas doenças (LÉVI-STRAUSS, 1975).

Segundo Lévi-Strauss (1975, p. 221), o canto dos xamãs “[...] constitui uma manipulação psicológica do órgão doente” de onde se espera uma cura.

Na descrição do tratamento ofertado nos partos difíceis, por exemplo, o canto descreve em detalhes uma

[...] verdadeira anatomia mítica, que corresponde menos à estrutura dos órgãos genitais do que a uma espécie de geografia afetiva do corpo da parturiente (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 224).

O objetivo é narrar e nomear as dores físicas de uma maneira que essas mulheres possam apreendê-las “pelo pensamento, consciente ou inconsciente”. Essas dores, revestidas em “monstros fantásticos e animais ferozes”, capturam as causas e identificam os pontos que resistem ao livramento dos males “bem definidos” pela cultura dos povos tradicionais (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 225).

Um longo percurso é cantado, recheado por obstáculos, invasões, torneios, descidas e subidas, entradas e saídas de situações obscuras auxiliadas pela convocação de “abridores de caminho”, por quedas e resgates, por personagens como os espíritos protetores, os espíritos maléficos, as criaturas sobrenaturais e os animais mágicos que fazem parte de um sistema coerente que corresponde à cosmologia indígena. O xamã, com seu canto constituído por sons, ritmos, entonações e torções, pela letra enraizada em suas tradições, apropria-se de um corpo desde então metaforizado como travessia. Um ritual sustentado pela voz que enuncia o nascimento ao pedir passagem para um novo sujeito, abarcando todo o percurso desde a preparação até a sua consolidação.

Na adolescência, todo esse percurso se atualiza tendo como protagonistas não mais as parturientes ou os xamãs, porta-vozes da trama fantasmática transmitida pela tradição; são os próprios jovens das comunidades tradicionais, aqueles que até esse momento não desfrutavam de nenhum tipo de status social, os responsáveis por conquistar o aval de pertencimento a determinado grupo. É quando os meninos se preparam para o confronto, para os desafios predeterminados pelos rituais, quando apenas suas ações irão lhes garantir um lugar social hierárquico definido pela divisão social do trabalho.

É interessante sublinhar que

[...] em muitos casos, esses rituais são caracterizados por provações físicas dolorosas e por marcas no corpo, como circuncisões, perfurações, tatuagens, retirada de dentes e cabelos, amputações, etc. (VIOLA; VORCARO, 2018, p. 5).

No que diz respeito à sexualidade desses jovens, a antropóloga Margareth Mead, (1928 citada por VIOLA; VORCARO, 2018, p. 4) descreve os tabus, as obrigações e os privilégios impostos às meninas de um povoado polinésio que habita a ilha de Samoa, ao sul do Oceano Pacifico. A pesquisadora explica que nessa sociedade o tema do sexo, assim como a exposição às cenas de gravidez, do ato sexual, do nascimento e da morte, faz parte do cotidiano das famílias. A ideia ocidental de privacidade não se aplica a essa sociedade. O ponto principal de diferenciação é que os assuntos relacionados ao sexo são públicos, estabelecidos como “estruturas inevitáveis da existência”.

Nessas condições, a escolha sexual não é um dilema moral, o que acarreta a ausência de impasses complexos devido a determinados posicionamentos que podem causar conflitos familiares ou rejeição social. Quanto à educação de crianças e adolescentes, eles são instruídos sobre o sexo em seus aspectos morfológicos.

A diferença sexual é instituída desde cedo por tabu, já que meninas e meninos são mantidos separados até a adolescência (MEAD, 1928 citada por VIOLA; VORCARO, 2018, p. 4).

Trata-se de uma organização social em que os conflitos são minimizados por uma tendência à homogeneização. No plano familiar, isso também é verificado. Mead (1928) atribui o temperamento brando e pouco conflituoso dos membros de uma família samoana à maneira como as crianças são criadas. De acordo com ela, pais e filhos são muito mais distantes afetivamente que nas famílias ocidentais, o que, em seu entendimento, contribui para a ausência de estados emocionais indesejados (VIOLA; VORCARO, 2018, p. 4).

Além da temporalidade regida pela tradição, os variados modelos de passagem têm em comum a função de reconhecimento e de instituição dos jovens em uma comunidade. Os ritos de iniciação têm o caráter de modificação radical do estatuto e do sentimento de identidade dos iniciados, que ascendem, assim, a um saber superior e a um novo status social, anteriormente cobiçado. Como eventos que assinalam uma morte simbólica, os ritos asseguram a transmissão social e o reconhecimento do sujeito pelo grupo, bem como demarcam a diferenciação entre homens e mulheres (VIOLA; VORCARO, 2018, p. 5).

E o que tudo isso tem a ver com a problemática adolescente atual?

Num esboço de resposta, podemos dizer que o adolescente das sociedades ocidentais se rebela contra o seu ‘destino’ e confronta, através de atos, palavras, queixas e transgressões, a herança simbólica que fixa a realização de seu ser num lugar predeterminado. As experiências vividas e contadas pelos adolescentes reatualizam a trama simbólica transmitida pela tradição ordenada segundo as leis da linguagem. São esses atos que permitem que os conteúdos recalcados relativos à constituição cultural de instituições como estado, família e religião venham à tona.

É nesse tempo de passagem que as lacunas de um passado são recolocadas, revestidas pelas grandes questões que causam comoção e discurso social. Os atos adolescentes são enunciações que, assim como as provocadas pelos xamãs, apelam pelo nascimento de sujeitos inscritos, num tempo a posteriori, numa nova/velha lógica: a dos adultos do Ocidente.

Às expensas de uma cronologia, o tempo subjetivo da adolescência tem como marco a impossibilidade de apreensão plena do saber sobre o sexo que irrompe no sujeito, dito de outro modo, do saber sobre o desejo do Outro – um tempo de luto dos ideais familiares que nortearam os laços subjetivos na infância e constituíram toda uma trama fantasmática que deixou de funcionar (FERRÃO; POLI, 2014).

A vivência do desamparo, o lado obscuro de um campo aberto pelo impossível do desejo, é efeito de uma condição que sombreia o espaço narrativo que tende a se abrir, na medida em que o jovem se distancia da família e se autoriza a transitar nos espaços públicos. Um movimento que vem sendo cerceado pelas expectativas dos adultos de nossa época fascinados pelas possibilidades imaginárias atribuídas à adolescência como uma fase de prazer e liberdade.

Valéria Sampaio Ferrão e Maria Cristina Poli (2014, p. 52) explicam que

[...] ser jovem virou slogan usado pela publicidade como ‘o melhor’, ‘o sucesso’, significantes que fixam o sujeito referenciado pelo ‘Eu Ideal’ em detrimento do ‘Ideal de Eu’ – conceitos freudianos.

Nesse contexto, fica comprometida a função de guia do ‘Ideal de Eu’, intermediado pela imagem que responde do lugar destinado ao sujeito no desejo do Outro (LACAN, ([1953-1954] 2009). Na atualidade, há um vazio do lado do adulto que desampara o adolescente.

Ao se perceberem num mundo que dita regras, em que não há/existe um “conflito necessário” entre suas inovações, seus sonhos e seus ideais que contrariam os referenciais ou os caminhos impostos por pais e professores, os jovens deixam de se posicionar como autores de sua própria narrativa (FERRÃO; POLI, 2014, p. 52).

O efeito dessa ausência são relatos de experiências não ouvidas nem reconhecidas em sua magnitude, sejam transgressoras, sejam heroicas, atos que permanecem silenciados.

Não apenas a ausência do conflito, mas a ausência de reguladores simbólicos, de leis inscritas nos códigos do Direito Constitucional em consonância com as transformações identitárias, efeito dos movimentos feministas, raciais e LGBT+ nas últimas décadas. Sem adentrar nessa questão, visto não ser esse o objetivo desse artigo, ainda assim questionamos: o que distingue, por exemplo, a concepção moderna de pessoa humana daquela advinda das culturas gregas, romana e judaica antiga, do pensamento cristão primitivo e escolástico?

Segundo Marcus Vinicius Parente Rebouças e Analice Franco Gomes Parente,3 a crença dogmática na ideia de dignidade da pessoa humana é uma ideia capital que coloca “o homem em primeiro plano” num mundo “multifacetado de bruscas e fugazes mudanças existenciais”, imerso em novos paradigmas que caracterizam o “que se tem denominado globalização”. Nesse contexto, encorajaria o debate a aprovação de leis que garantam a sobrevivência e o convívio com a diferença identitária, ao circunscrever o campo de confronto dialético.

Na contramão de uma passagem que faz nascer sujeitos de direitos e deveres, quase aos moldes da descrição de Lévi-Strauss (1975), que cartografa as coordenadas simbólicas que inauguram o tempo da infância (do infans) e o do adulto, abre-se “[...] uma brecha para os adolescentes serem cooptados por Estados totalitários ou Instituições, como a Igreja e o Exército”.

Alinhadas com Freud ([1921] 1996) na discussão trazida no texto Psicologia das massas e análise do Eu, Ferrão e Poli (2014, p. 52) revalidam o convite de Maria Rita Kehl (2008) de pensar como “o esvaziamento da experiência tira o sentido da vida”.

As autoras comentam sobre o

[...] paradoxo da depressão de uma cultura que tem a juventude como ideal, apoiada em sensações efêmeras de prazer, onde se cava um buraco cada vez maior pela falta de sentido.

Em Psicologia das massas e análise do Eu, Freud ([1921] 1996, p. 106) explica que nesses dois grupos artificiais, Igreja e Exército, a causa do laço que une cada integrante do grupo ao líder é o amor de Cristo ou do “comandante-chefe” por todos os integrantes, um amor de “pai que ama a todos igualmente e, por essa razão, eles são camaradas entre si”.

Freud enfatiza que o líder desses grupos tem a função de garantir a distribuição do amor de modo igualitário, do contrário o pânico pode surgir como um sinal de ausência dessa função distributiva que quantifica as forças psíquicas envolvidas no laço entre os integrantes, o que pode acarretar não só na dissolução do grupo mas também no aumento dos crimes e dos atos de violência.

Nesse texto, Freud defende que os laços emocionais constituem a essência da mente grupal, nomeia de ‘Eros’4 esse poder que mantém unido tudo o que existe no mundo. Diz ainda que o abandono de tudo o que distingue um integrante do outro, possibilitando, inclusive, a influência do líder do grupo por sugestão, só pode ocorrer em decorrência da necessidade que cada integrante tem de preservar a harmonia com os membros, de preferência a estar em oposição a eles, “de maneira que, afinal de contas, talvez o faça ihnen zu Liebe5 (FREUD, [1921] 1996, p. 103).

Ao buscar em Freud algumas respostas para a problemática adolescente, notamos que, nas sociedades ocidentais, é o amor entre jovens e adultos, ou melhor, a confiança que torna incondicional amor entre eles, o que está sob provação.

Uma hipótese alinhada com a definição freudiana acerca da identificação, ou seja, com “a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa” (FREUD, [1921] 1996, p. 115). Essa definição é atrelada como função à trama edípica, quando Freud explica que a identificação para o menino, por exemplo, é o que o impulsiona a tomar o pai como ideal, sendo capaz de desenvolver, a partir daí, uma relação do tipo anaclítica para com a mãe.

Assim, as duas correntes dirigidas ao objeto – a da ternura e a sexual, que teriam como destino o “avanço irresistível no sentido de uma unificação da vida mental” – acabariam por se reunir, “o complexo de Édipo normal origina-se de sua confluência”. Teríamos, assim, aquilo que Freud ([1921] 1996, p. 115) compreendeu como um adulto. Ainda que pertinente, essa análise teórica desconsidera o que acerca do inconsciente, nos chama atenção nesse texto e em tantos outros do autor.

Destaco uma citação:

Sabemos que as neuroses de guerra que assolaram o exército alemão foram identificadas como sendo um protesto do indivíduo contra o papel que se esperava que ele desempenhasse [...] (FREUD, [1921] 1996, p. 107).

Para Freud, o duro tratamento dos soldados alemães pelos seus superiores na guerra em questão seria a causa daquilo que nomeou como “moléstia”. Freud ([1921] 1996, p. 107) chega a escrever que “as reivindicações da libido” não foram bem apreciadas pelos superiores e que, por isso, os soldados se dirigiram para outro mestre.

Na lição de 22 de janeiro de 1964 do seu Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan ([1964] 2008, p. 25-26) discursa sobre o título O inconsciente freudiano e o nosso. Inicia com o poema curto de Aragon Contracanto, para retomar o que foi dito ao longo do seu seminário do ano anterior a respeito da função do -? e de sua correspondência com as formas diversas do objeto a.

Ainda na introdução, sublinha que uma das coordenadas indispensáveis para a apreciação de seu ensino é que as pessoas

[...] não podem, onde estão, imaginar até que grau de desprezo, ou simplesmente de desconhecimento para seu próprio conhecimento, podem chegar os praticantes [da psicanálise] (LACAN, [1964] 2008, p. 26).

Lacan está se referindo à função da voz do psicanalista, “um instrumento”, uma fala que também corresponde ao lugar do -φ.6

Lacan ([1964] 2008, p. 27) diz claramente que o inconsciente freudiano é “outra coisa”, o que ele chama de “recusa do conceito”. Lacan dedica todo o Seminário 11 aos quatro conceitos freudianos principais, quais sejam: o inconsciente e a repetição, a transferência e a pulsão. Anuncia que, ao tratar do conceito de transferência, pretende criticar o que uma análise tem de “[...] profundamente problemático, e ao mesmo tempo diretor, a função da análise didática”; isso sem minimizar “o lado movente, se não escabroso” de uma aproximação com esse conceito.

Para Lacan, todo conceito, para ser estabelecido, implica numa aproximação com “a realidade que ele foi feito para apreender”, uma aproximação ao que nos impõe, sob a forma do cálculo infinitesimal. Inconsciente, por exemplo, como o mínimo finito, concebido apenas por um “salto, por uma passagem ao limite, é que ele chega a se realizar”.

Segundo Lacan ([1964] 2008, p. 28), a definição de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” torna a psicanálise muito mais acessível ao campo da ciência do que na época de Freud. Um acesso pela via da linguística,

[...] cujo modelo é o jogo combinatório operando em sua espontaneidade, sozinho, de maneira pré-subjetiva – é essa estrutura que dá seu estatuto ao inconsciente.

A linguística é o que garante que há sob o terreno do inconsciente “algo de qualificável, de acessível, de objetivável”. Lacan cita O pensamento selvagem7 (LÉVI-STRAUSS, 1969) como fundamento para o inconsciente.

Antes de qualquer experiência, antes de qualquer dedução individual, antes mesmo que se inscrevam as experiências coletivas que só são relacionáveis com as necessidades sociais, algo organiza esse campo, nele inscrevendo as linhas de forças iniciais [...] Antes ainda que se estabeleçam relações que sejam propriamente humanas, certas relações já são determinadas. Elas se prendem a tudo que a natureza possa oferecer como suporte, suportes que se dispõem em temas de oposição. A natureza fornece, para dizer o termo, significantes, e esses significantes organizam de modo inaugural as relações humanas, lhes dão as estruturas, e as modelam (LACAN [1964] 2008, p. 28).

O importante, para nós, é que vemos aqui o nível em que – antes de qualquer formação do sujeito, de um sujeito que pensa, que se situa aí – isso conta, é contado, e no contado já está o contador. Só depois é que o sujeito tem que se reconhecer ali, reconhecer-se ali como contador (LACAN [1964] 2008, p. 28).

Retomando o que dissemos no início do artigo, compreendemos a adolescência como o intervalo entre esses dois tempos, entre o antes e o só depois de um reconhecimento do sujeito enquanto “contador”. É esse o domínio onde a lógica de forças determinantes organiza o que se entende como cadeia significante, serve de suporte para as relações humanas, na medida em que organiza os elementos de uma língua em temas de oposição: preto-vermelho; amor-ódio; medo-desejo, etc. O desfalecimento, o tropeço, a rachadura, a surpresa, o achado, o que manca ou claudica são efeitos de uma lacuna, de uma fenda, de um intervalo ou hiância no encadeamento da cadeia significante – é “algo que aparece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade”, é algo “não realizado” num outro tempo, definido como desejo inconsciente (LACAN, [1964] 2008, p. 32).

Voltamos a Freud ([1921] 1996), que admite a dimensão da causa, tão defendida por Lacan, quando entende as neuroses de guerra como um protesto dos soldados alemães contra o papel destinado a eles mesmos enquanto sujeitos de desejo. Ao contrário do que interpretou Freud como causa da neurose de guerra, o tratamento duro dos superiores possibilitou aos soldados uma resposta, talvez a única naquele contexto, para a seguinte questão: o que o Outro quer de mim? A neurose de guerra desencadeou novos laços, novos arranjos simbólicos, determinou a falha, o atraso, ao atrapalhar ou romper com o objetivo dos mestres de guerra de ganhar batalhas. Em Freud, “moléstia”, “neurose de guerra” é a resposta advinda do confronto com o desejo do Outro, que instaura a dimensão da perda, do inconsciente, um lugar onde o encontro é sempre com o vazio de significação.

Freud entende como causa da doença dos soldados a falta de amor dos mestres para com seus subordinados, de acordo com a citação freudiana “[...] as reivindicações da libido não foram bem apreciadas” (FREUD, [1921] 1996, p. 107).

Em contrapartida, para Lacan, o que causa é o desejo. Lacan ([1964] 2008) fala do amor, do Eros conceituado por Freud com certa ironia. Segundo ele,

[...] o inconsciente se acha na margem estritamente oposta à de que se trata no amor, do qual todo mundo sabe que é sempre único e que a fórmula quem perde um encontra dez encontra nele sua melhor aplicação (LACAN, [1964] 2008, p. 32, grifo do autor).

A neurose, assim como o amor que faz um, tem caráter absoluto, coloca-se como miragem sobre “o fundo de uma totalidade”, aos moldes de uma cicatriz, “não cicatriz da neurose, mas do inconsciente”.

Retomo a palavra de Lacan ([1964] 2008, p. 33, grifo do autor):

[...] vocês concordarão comigo em que o um que é introduzido pela experiência do inconsciente é o um da fenda, do traço da ruptura.

Lacan brinca com a as palavras, com essa definição de inconsciente como conceito referenciado pela linguística de Lévi-Strauss (1969):

Aqui brota uma forma desconhecida do um, o Un do Unbewusste. Digamos que o limite do Unbewusste é o Unbegriff – não o não conceito, mas o conceito da falta (LACAN, [1964] 2008, p. 33).

Agora que chegamos neste ponto, nos permitam uma provocação: se as neuroses de guerra dos soldados de Freud tinham algo a dizer a respeito do desejo de seus mestres, a clínica psicanalítica, ao fazer realizar o inconsciente, inscrita nesse tempo lógico que é a adolescência, tem o que a dizer a respeito do desejo dos seus?

 

Referências

FERRÃO, V. S.; POLI, M. C. Adolescência como tempo do sujeito na psicanálise. Adolesc. Saúde, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 48-55, abr./jun. 2014.         [ Links ]

FREUD, S. Psicologia de grupo e a análise do ego (1921). In: ______. Além do princípio de prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Direção geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 79-154. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18).         [ Links ]

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: ______. Um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Direção geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 119-229. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7).         [ Links ]

KEHL, M. R. A fratria órfã: conversas sobre a juventude (2008). São Paulo: Olho d’Água; 2018.         [ Links ]

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LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de M. D. Magno. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.         [ Links ]

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VIOLA, D. T. D.; VORCARO, A. M. R. A adolescência em perspectiva: um exame da variabilidade da passagem à idade adulta entre diferentes sociedades. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 34, e3448, 2018 . Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722018000100507&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 10 fev. 2019. Epub Sep 17, 2018. http://dx.doi.org/10.1590/0102.3772e3448.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: gabilazarini@gmail.com

Recebido em: 10/03/2019
Aprovado em: 12/04/2019

 

 

SOBRE A AUTORA

Gabriela Lazarini
Psicóloga pela Faculdade Ruy Barbosa (Salvador-BA).
Psicanalista.
MBA em psicologia organizacional, relações de trabalho e gestão de pessoas pela Faculdade Ruy Barbosa (Salvador-BA).

 

 

1 Frase do personagem Holden Caulfield do romance O apanhador no campo de centeio de centeio, de J. D. Salinger.
2 Disponível em: <https://www.dicionarioetimologico.com.br/adolescente>.
3 Para saber mais, consultar REBOUÇAS, M. V. P.; PARENTE, A. F. G. A construção histórica do conceito de pessoa humana. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=066d47ae0c1f736b>.
4 “Em sua origem, função e relação com o amor sexual, o ‘Eros’ do filósofo Platão coincide exatamente com a força amorosa, a libido da psicanálise [...]” (FREUD, 1921 [1996], p. 102).
5 Em consideração a eles ou pelo amor deles.
6 Lugar de hiância, do que sobra essencialmente da função da causa, do “inanalisável” dos conceitos, do que apesar de escrito, não pode ser racionalizado (LACAN, [1964] 2009, p. 29).
7 Segundo nota introdutória da 8ª edição, a tradução literal do termo “pensamento selvagem” é o nome da flor conhecida no Brasil como amor-perfeito, amor-perfeito silvestre, ou amor-perfeito bravo, ou ainda violeta-tricolor (Viola tricolor, L., pensamento dos campos, erva•da•trindade).
8 O lugar de opacidade descrito pelo amante no poema de Aragon. Assim como a fala do psicanalista, corresponde a algo de anticonceitual, indefinido e não racionalizado – corresponde a CAUSA e se distingue da LEI (LACAN, [1964] 2009).
9 A submissão? A morte?

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