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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.52 Belo Horizonte July/Dec. 2019

 

PAINÉIS E COMUNICAÇÕES SIMULTÂNEAS - TEXTOS COMPLETOS

 

A violência da palavra: política, lei e verdade1

 

The violence of the word: politics, law and truth

 

 

Cibele Prado BarbieriI, II

I Círculo Psicanalítico da Bahia
II Círculo Brasileiro de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo do texto freudiano sobre os chistes, pode-se fazer uma leitura das narrativas recentes com as quais nos deparamos para compreender os discursos em sua peculiar estrutura e consequências não apenas no plano individual, mas também no grupo, no social e, mais além, no plano histórico, político e civilizatório. A análise feita por Freud a respeito do cômico revela o poder da palavra e o grau de virulência que esta pode imprimir nos efeitos que a lei, a justiça e a verdade determinam no âmbito do trágico, seu avesso. Quando a mentira se traveste de verdade, isso exige do sujeito uma resposta cômica, caricatural, para suportar o Real em jogo.

Palavras-chave: Política, Psicanálise, Violência, Piada, Perversão, Discurso.


ABSTRACT

Starting from the Freudian text about the joke, one can read the recent narratives we are faced with to understand the speeches in their peculiar structure and consequences not only at the individual level, but also in the group, in the social and, beyond, at the historical, political and civilizing levels. Freud's analysis of the comic reveals the power of the word and the degree of virulence that it can have in the effects that the law, justice and truth determine in the context of the tragic, its reverse. When the lie is dressed as truth it demands from the subject a comic, caricatural response to support the Real at stake.

Keywords: Politics, Psychoanalysis, Violence, Joke, Perversion, Speech.


 

Num dos muitos textos que recebo pelas redes sociais, deparei-me, certa vez, com uma citação de Oscar Wilde que ratifica o saber psicanalítico sobre a palavra.

As ações são a primeira das tragédias humanas, sendo as palavras a segunda. As palavras talvez sejam as piores. Elas são implacáveis… (Oscar Wilde).2

O fato de ter tido acesso a esta citação através das redes sociais demonstra a inserção, a circulação e a atualização dos saberes nas narrativas cujos efeitos sofremos nestes tempos de agudização da informação e, também, da desinformação. Se o ato mostra, demonstra, e a imagem configura uma representação possível da Coisa (Das Ding) – causando o prazer ou o horror ao ‘êxtimo', ao Real, (como nas artes, por exemplo) – a palavra também convoca e promove os mesmos afetos na medida em que o significante, o representante representativo da pulsão carrega em si os efeitos de sentido e sem sentido produzidos pela sua natureza polissêmica. Daí a tragédia.

É essa tragédia que experimentamos quando uma verdadeira “inversão dos polos magnéticos” – se não do planeta, pelo menos do nosso país – acontece e se revela nos discursos. É o que nos ensina Freud em seu texto sobre o chiste; embora o que se pretenda com esses discursos não seja, de modo algum, da ordem do cômico.

Penso que o que mais nos afeta nesse caso é o fato de que, por mais humor que se possa ter, por mais que se recorra ao cômico, como propalado por um conhecido programa de televisão, “está difícil concorrer com a realidade”.3 O resultado é que os efeitos de tragédia excedem o potencial de satisfação que deveria gerar prazer, – objetivo fundamental do chiste – deixando o sujeito ainda mais vulnerável diante da situação real, em seus efeitos nada cômicos, diante de prenúncios pessimistas, de incertezas e de privações reais.

A ‘des-idealização', a precarização da confiança nos ideais, a falta de substrato de confiabilidade da lei que possa em seu exercício dar alguma garantia da ordem das coisas, exacerbam a própria inversão dos “polos magnéticos” que os discursos das autoridades que norteiam e comandam os rumos da sociedade promovem e dão vez ao desnorteamento, à melancolia subjetiva e ao adoecimento generalizado. Isso se alastra tornando o mal-estar cada vez mais óbvio e predominante na sociedade, mas também, e principalmente, usurpando o efeito cômico e ressaltando o aspecto trágico, pois esses discursos não são produzidos para ser lúdicos. Suas técnicas estruturais não visam o gozo prazeroso. Eles, sim, produzem um gozo da ordem do mais além do princípio do prazer, nas sendas do mortífero e do derrisório da violência. Por isso, as palavras aqui são violentas e implacáveis, pois não passam ao largo, não contornam a Coisa ; ao contrário, a expõem em todo o seu horror.

Silêncio. Silenciamos diante da violência que nelas se expõe e se dissemina.

Como nos diz Celso Lafer, “Na política, a palavra é componente da ação. O tom faz essa música das facções, do ódio e do desentendimento”.4

No campo da política, a função da palavra absorve e configura as fronteiras da verdade e da mentira, da qualidade e da direção do ato, pois quem as diz está investido do poder de representação de alguns. Quem as diz é alguém que recebeu de um grupo a incumbência de representa-lo. Isso significa que aí está implicada a vontade de muitos indivíduos que se identificam com esse representante colocado como líder, que fala por eles. Digo “indivíduos” porque aqui não se trata mais do sujeito; no grupo não há sujeito, o grupo promove o apagamento do sujeito, que perde sua capacidade crítica e suas coordenadas subjetivas, como nos ensina Freud (1921), e é tragado pela compulsão a seguir o mestre e satisfazer seus impulsos mais adversos aos valores, às normas e às regulações que cotidianamente costumavam estruturar suas ações, sua moral e sua ética.

Podemos, então, nos perguntar como entender essa conjuntura civilizatória, na medida em que o campo do cômico não dá conta, onde o cômico está sendo restringido – no âmbito da liberdade de pensamento e expressão – a alguns poucos lugares (cada vez menos e menores5) e, ainda mais, quando o cômico não se justifica (!) na medida em que repercute na vida e nos destinos de uma sociedade tão precariamente autônoma.

O que vemos nos relatos de psicanalistas, psicólogos, psiquiatras, médicos clínicos, etc. é um testemunho estarrecedor do incremento de mal-estar generalizado, das demandas sintomaticamente centradas no adoecimento psíquico fruto de um sofrimento relativo à impotência e a perspectivas negativas de reagir a um futuro sombrio, violentamente anunciado, que produz mortificação em massa. Não só silenciamos como também paralisamos. Obviamente, nessa conjuntura, o Cômico fracassa, se desvanece e se precipita no Trágico.

Como isso é feito? Qual o instrumento usado para produzir tantos efeitos? A palavra. Como psicanalistas, não nos surpreendemos.

No texto Os chistes e suas relações com o inconsciente , Freud (1905) trata dos

[...] desvios em relação ao pensamento normal – o deslocamento e o absurdo – como métodos técnicos de produzir uma forma chistosa de expressão.

Ele diz que

Um chiste é um juízo lúdico, [...] exatamente como a liberdade estética consiste na contemplação lúdica das coisas [...] Seria possível que da liberdade estética brotasse uma espécie de juízo liberado de suas usuais regras e regulações, ao qual, devido a sua origem, eu chamarei juízo lúdico. [...]

“A liberdade produz chistes e os chistes produzem liberdade”,6 diz Fischer, citado por Freud nesse texto, assim como Jean Paul [Richter], que diz: “Fazer chistes é simplesmente jogar com as ideias”.

Para entender melhor, tomo os exemplos que Freud nos dá na página 80 sobre a técnica do chiste: o do caldeirão e o do agente matrimonial.

‘A. tomou emprestado de B. um caldeirão de cobre e após devolvê-lo foi acionado por B. já que o caldeirão tinha agora um grande furo que o tornava inutilizável. Sua defesa foi: “Em primeiro lugar nunca tomei emprestado um caldeirão de B.; e em segundo lugar o caldeirão já estava furado quando eu o peguei emprestado; e em terceiro lugar, devolvi-lhe o caldeirão intacto”.' Cada uma destas defesas é válida por si mas reunidas excluem-se mutuamente. A. estava tratando isoladamente o que se devia considerar um conjunto tal como o agente matrimonial faz com os defeitos da moça. Podia-se dizer: ‘A. usou um “e” onde era possível um “ou” (FREUD, 1905).

[...] O agente [...] insistia pois em tratar isoladamente cada defeito e recusava-se a adicioná-los num total.

A mesma omissão é o núcleo de outro sofisma a propósito do qual muito se tem rido embora se deva duvidar da correção quanto a chamá-lo chiste (FREUD, 1905, cap. II).

Os “desvios em relação ao pensamento normal – o deslocamento e o absurdo”, que num primeiro momento geram um efeito chistoso, quando aplicados a questões legais, adquirem um sentido nada cômico na medida em que subvertem a ordem do discurso e suas conclusões, eximindo o sujeito de sua responsabilidade sobre seus atos através de afirmações divergentes e mutuamente exclusivas. É a fórmula usada pelo perverso quando divide o outro para governá-lo fundamentando e desmentindo a castração: ‘A mulher é castrada, mas, mesmo assim, é fálica'.

É o que escutamos quando ouvimos: “as conversas foram obtidas ilegalmente”, “não tem nada de mais nas conversas”, “as conversas foram manipuladas”. “ Cada uma destas defesas é válida por si mas reunidas excluem-se mutuamente”, diz Freud, que n unca foi tão atual, explícito e convincente!

E é claro que estava certíssimo sobre a comicidade desse tipo de sofisma. Mas há quem o aceite como argumento insofismável. As afirmações e as negações simultâneas, e a ambiguidade intrínseca geram a desconfiança e a insegurança: o desamparo e o medo. Entrincheirar-se numa mentira confortável e cômoda pode ser necessário para quem depende de certezas.

Como disse Santo Agostinho, as pessoas costumam amar a verdade quando esta as ilumina, porém tendem a odiá-la quando ela as confronta. Quando o paranoico expulsa e o perverso desmente a verdade, capturamos como num flash os efeitos de horror que a verdade pode produzir no sujeito. O neurótico não está imune a tais efeitos se não estiver muito bem ancorado e norteado nesse jogo da palavra para discernir a mentira da verdade.

É a partir desse horror que a palavra – como representação – pode carrear o sentido de violência que uma interpretação pode adquirir no processo de uma análise; mesmo sabendo que nenhuma palavra é capaz de dizer o Real todo: a verdade do sujeito. Na política assim como na psicanálise, quando lembramos que Lacan (1966-1967) nos legou o entendimento de que “O inconsciente é a política”, a palavra é componente da ação. Pode ser usada como cura, mas também como arma que produz a desconstrução, a desconfiança, o desalento, a desordem e a destruição do equilíbrio frágil de muitos sujeitos.

Vivemos tempos em que a mentira foi travestida de verdade, disseminada em nome de um projeto de poder patrocinado para impor um modo de vida que parecia ter sido ultrapassado, enraizado na repetição de relações que revelam as pulsões mortíferas, verdadeiramente destrutivas. Desconstrução das ciências, do saber acumulado, crenças doentias e deletérias fundamentando o desmonte de estruturas de funcionamento econômico, jurídico e subjetivo, pois influem na visão de mundo dos indivíduos.

Momentos que a lei da “verdade, toda verdade, nada mais que a verdade” demonstra sua impossibilidade, seu caráter utópico. Não porque seja uma utopia indesejável, mas por ter sido sabotada por seus próprios representantes e não poder sustentar-se sobre a lei escrita, eficaz e realista, para organizar e pacificar o mal-estar da civilização. Além disso, lembro Lacan quando diz:

Digo sempre a verdade. Não toda [...] pois, dizê-la toda, não se consegue [...]. Dizê-la toda é impossível, materialmente [...] faltam as palavras. É justamente por esse impossível [...] que a verdade tem a ver com o real (LACAN, [1973] 2003, p. 509).

Levada ao seu extremo trágico pelos próprios métodos técnicos de que dispõe, a palavra se distancia da lei subvertendo sua vocação e finalidade originais. Recurso que deveria constituir-se como antídoto civilizatório à passagem ao ato violento, apresenta-se hoje como imagem, destituída de seu fundamento simbólico necessário ao acordo. E assim, resta a violência da palavra sempre que falha o ancoramento na lei. Seguindo Lacan, corremos o risco de parecer pessimistas. Seria possível que todos os seres humanos se alinhassem à lei? O que seria dos paranoicos? Existiriam perversos? Certamente seria a Utopia.

Quando a imposição de silencio invade a cena pública retirando o diálogo, a possibilidade de falar e de ser ouvido sacralizando a Mentira travestida de Verdade, cai por terra, retrocede todo o esforço civilizatório em direção à possibilidade de sublimar, ressignificar os efeitos adversos da história e da estrutura discursiva.

Isso pode explicar os resultados catastróficos em termos de suicídios e adoecimento em massa a que assistimos. O silêncio, a palavra calada, que não pode ser dita, permanece viva e registrada, é também, e mais ainda, violenta e virulenta.7

Por tudo isso, concluo que a instituição psicanalítica que, atenta às narrativas de seu tempo, convoca a rever e rearticular seus conceitos, à discussão de ideias e teorias, levando em conta os fatos e acontecimentos reinantes, põe à prova e amplia o alcance da psicanálise. As instituições que, ao contrário, cerceiam e silenciam seus membros em nome de uma aparente paz e harmonia de pensamento decretam sua destituição como tal: a psicanálise não se subverte ao “Cale-se!”

 

Referências

DIAS, M. Trump e Bolsonaro investem em falas ofensivas para manter bases de apoio. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/08/trump-e-bolsonaro-investem-em-falas-ofensivas-para-manter-bases-de-apoio.shtml. Acesso em: 04 ago. 2019.         [ Links ]

FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905). Rio de Janeiro: Imago, 1984. (Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 8).         [ Links ]

FREUD, S. Psicologia de grupo e a análise do ego (1921). Rio de Janeiro: Imago, 1984. (Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18).         [ Links ]

LACAN, J. A lógica da fantasia; resumo do seminário de 1966-1967. In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 323-328. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 14: a lógica da fantasia (1966-1967). Inédito.         [ Links ]

LACAN, J. Televisão (1973). In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 508-543.         [ Links ]

LAFER, C. apud DIAS, M. Trump e Bolsonaro investem em falas ofensivas para manter bases de apoio. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/08/trump-e-bolsonaro-investem-em-falas-ofensivas-para-manter-bases-de-apoio.shtml. Acesso em: 04 ago. 2019.         [ Links ]

SOUZA, M. H. As palavras são implacáveis. Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/noblat/as-palavras-sao-implacaveis/. Acesso em: 07 jul. 2019.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: barbieri.cibele@gmail.com

Recebido em: 10/12/2019
Aprovado em: 15/12/2019

 

 

SOBRE A AUTORA

Cibele Prado Barbieri
Psicanalista. Psicóloga.
Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia (CPB).
Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) 2006-2008.
Membro da Comissão Editorial da Revista Estudos de Psicanálise do CBP.

 

 

1 Trabalho apresentado no Painel 4 - Psicanálise e violência do XXIII CONGRESSO DO CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE e da III JORNADA DO CÍRCULO PSICANALÍTICO DO PARÁ, Psicanálise e diversidades: inconsciente, cultura e caminhos pulsionais. Belém (PA), 7-11 nov. 2019.
2 Citado por Mª Helena R. R. de Souza no texto As palavras são implacáveis. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/blog/noblat/as-palavras-sao-implacaveis/> Acesso em: 07 jul. 2019.
3 Zorra total, veiculado pela Rede Globo de Televisão.
4 Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil durante as gestões de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, citado por Marina Dias no artigo publicado na Folha de S.Paulo, em 04 ago. 2019.
5 A explosão de comicidade que assistimos durante o carnaval de 2020, nas escolas de samba e nas ruas de todo o País, mostraram o triunfo do Cômico como crítica e denúncia da tragédia, contrariando ou, pelo menos, relativizando essa afirmativa, que foi elaborada no ano anterior. Podemos constatar o poder e a eficácia do carnaval como fermento para a produção do c&ociricc;mo.
6 Lúdico: Que também pode ser traduzido como “desinteressado”. FISCHER, 1889; RICHTER, J.-P., 1804, parte II, parágrafo 51. Apud FREUD, 1905, cap. II - A técnica do chiste.
7 Por exemplo, r etirar das escolas os profissionais de psicologia e assistência social significa tirar os ouvidos e silenciar as palavras. Cortar a palavra ‘no talo'.

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