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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.52 Belo Horizonte jul./dez. 2019

 

PAINÉIS E COMUNICAÇÕES SIMULTÂNEAS - TEXTOS COMPLETOS

 

O sujeito contemporâneo e a realidade virtual1

 

The contemporary subject and virtual reality

 

 

Deborah PimentelI, II, III

I Universidade Tiradentes
II Universidade Federal de Sergipe
III Círculo Psicanalítico de Sergipe

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora tece comentários sobre o mundo virtual, as novas formas de relacionamento nas redes sociais e a ausência de privacidade afetando a nossa subjetividade, a nossa individualidade e as relações do cotidiano e apontando para algum tipo de desconforto, ainda não bem esclarecido e descrito.

Palavras-chave: Internet, Redes sociais, Mundo virtual, Subjetividade.


ABSTRACT

The author comments on the virtual world, the new forms of relationship on social networks and the lack of privacy affecting our subjectivity, our individuality and everyday relationships and pointing to some type of discomfort, which is not yet well explained and described.

Keywords: Internet, Social networks, Virtual world, Subjectivity.


 

Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir
fica convencido de que os mortais
não conseguem guardar nenhum segredo.
Aqueles cujos lábios calam
denunciam-se com as pontas dos dedos;
a denúncia lhes sai por todos os poros.

Sigmund Freud

 

A internet nos trouxe ganhos inimagináveis em muito pouco tempo: transmissão de informações que favorecem o desenvolvimento técnico e científico, acesso direto a bancos de dados importantes com informações preciosas para os nossos estudos nas nossas áreas de interesse, resgate de amizades aparentemente perdidas na nossa infância, agilidade do noticiário (o que acontece do outro lado do mundo pode ser acompanhado em tempo real), abrangência das campanhas de toda natureza, que alcançam mais rapidamente o maior número de pessoas no menor tempo.

Temos a necessidade de buscar respostas sobre o desejo de saber como as novas formas de relacionamento ocupam a nossa vida.

Como será que este jeito novo de comunicar nas redes sociais funciona dentro da gente?

Como a mídia afeta as relações do cotidiano?

Estaríamos escamoteando a nossa subjetividade e cerceando a nossa capacidade de refletir e enfrentar as vicissitudes impostas pelo dia a dia?

Vivemos na sociedade da internet, do espetáculo e do hiperconsumo, que põem em risco a nossa subjetividade e nossa individualidade. As empresas de telefonia nos bombardeiam oferecendo vantagens se as contratarmos. Entre outras coisas, nos dão um celular recém-lançado, utilizando os nossos pontos velhos e assumindo uma dívida nova em 24 meses.

Se tivéssemos mais maturidade, deveríamos renunciar à satisfação dos nossos desejos, assim diz o que está escrito nos cânones da psicanálise (FREUD [1920], 1969). Será que resistir à aquisição de um celular novo seria saber lidar melhor com a castração e com o desamparo frente às redes sociais e à nova cultura? Somos educados para seguir o princípio da realidade e ignorar o princípio do prazer (BOCCA, 2019).

Não há dúvidas de que os desejos dos novos tempos são tratados como necessidades que se satisfazem a cada lançamento de um equipamento ultramoderno, criando ilusões de felicidade, bem-estar e completude. E os desejos inconscientes são substituídos pelas exigências de consumo que favorecem as demandas de identificação (PIMENTEL, 2000; PIMENTEL et al., 2016).

Se esse super smartphone não existisse, as pessoas não precisariam dele. A castração simbólica perdeu o seu efeito. A aquisição de um bem socialmente cobiçado poderá trazer, ainda que momentaneamente, a sensação de conquista e felicidade, que parece colocar o sujeito mais próximo de outros indivíduos que vivem estampando na internet sua eterna felicidade.

Aliás, nas redes sociais, espaço superdemocrático, todos são extremamente realizados e felizes por possuírem tudo o que desejam, são detentores da casa mais linda e confortável, do carro mais veloz, do marido mais companheiro, dos filhos mais bem-sucedidos, do corpo malhado com a barriga mais chapada do planeta, viagens lindas. E os internautas ‘facebookianos' acreditam em tudo o que veem. Não querem pensar sobre o custo daquelas aquisições e conquistas. Não lhes interessa se houve dedicação, persistência, suor ou montagem. Se está na internet (tudo está lá), eles creem.

Seria um mundo perfeito se na solidão essas pessoas não sofressem, se diante de si mesmas não ficassem despidas de desejo próprio: o seu desejo é apenas o desejo da mídia, do mercado voraz, das redes, dos falsos amigos, do número de seguidores, dos likes incontáveis que são muito sedutores e as fazem querer mostrar mais e mais.

O sujeito perde sua identidade, e o seu desejo é confundido com o desejo do outro e elimina as diferenças: todos iguais, alienados ao poder da mídia eletrônica, que é capaz não só de ser formadora de opiniões, mas também de alterar a nossa subjetividade (PIMENTEL, 2000; PIMENTEL e t al., 2016).

As imagens que desfilam no mundo da fantasia (leia-se: nas redes sociais) buscam apenas tamponar o grande buraco promovido pelo Real, portanto uma impossibilidade de simbolização desse frágil sujeito. O sujeito do inconsciente feneceu. Não consigo achá-lo no discurso, nem nos chistes, nem nos sonhos e nem nas palavras que tropeçam e que confessam (LACAN, [1953-1954] 2009).

Na verdade, esse sujeito apenas faz parte da massa manipulada e não percebe que é apenas uma pequena peça de um tabuleiro gigante, capturado pela mágica da internet, que tudo sabe, tudo promove e, através das imagens e dos sons, o impede de refletir e ser ele mesmo, ainda que com dor. Há um profundo vazio. E parece que só resta a pulsão escópica, que favorece o consumo de qualquer coisa, até mesmo as inimagináveis, até porque tudo é descartável e rapidamente se perde o interesse sobre o que quer que seja: objetos e pessoas.

O tal smartphone é um perigo, pois sabe tudo sobre o seu usuário. Ele é uma extensão do seu dono. Vivemos em um momento tal que o celular nos empareda em uma rede de vigilância. Ele chega ao requinte de identificar quando eu ligo o carro e que, por se tratar de uma segunda-feira às 7 h da manhã, o meu destino invariavelmente teria que ser o hospital universitário, e aponta, sem que eu peça, qual a rota eu devo seguir para não me atrasar e em quantos minutos estarei no meu destino. Eu nunca dei essa informação diretamente para o Google Maps nem para o Waze, mas eles aprenderam a me observar e sabem de toda a minha rotina.

O site da Amazon, entre tantos outros megainteligentes disponíveis, sabe do que gosto de ler e consumir, e se antecipa de forma magistral ao meu desejo, me oferecendo coisas, e o que é pior, me convencendo de que elas são tudo o que preciso para tornar minha vida mais confortável e mais feliz.

Não se trata apenas do meu celular e dos aplicativos de GPS. A farmácia também me manda mensagens graças aos seus robôs, sobre os remédios de uso contínuo que ainda não comprei neste mês, ou ainda, o banco que insiste em me avisar que estourei o cheque especial e, por isso, eles estão preocupados em me oferecer uma linha de crédito, sob medida e com juros mais camaradas.

Ou seja, há um Outro que me controla atrás da tela do meu smartphone ou do meu computador e que tem algoritmos que dizem de mim, onde eu mesma não me sei.

As pessoas gostam de ver e exercitar essa pulsão escópica, olhando cegamente, sem nada enxergar, sem o genuíno desejo de conhecer e saber, sem um interesse concreto em nada; mas gostam também – e muito mais – de ser vistas, por isso se expõem despudoradamente aos olhares através das inúmeras selfies de grande cuidado estético, entre outros detalhes, que revelam para todos, favorecendo e facilitando o trabalho desse deus onipotente que tudo vê e tudo sabe e exercitando um exibicionismo exacerbado. Exibicionistas e voyeurs alimentam, lado a lado, as pulsões sexuais que permitem a livre expressão de traços perversos próprios do ser humano e que são aceitos socialmente nas redes (GEREZ-AMBERTÍN, 2016).

É impressionante como a internet e as redes sociais varreram os famosos caderninhos da minha infância e juventude, onde eu escrevia com parcimônia o meu diário, guardado a sete chaves. Era um momento reflexivo e para consumo próprio. Hoje todos se expõem nos diários abertos das redes sociais, comunicando a Deus e ao mundo o que fizeram, com quem fizeram, aonde foram e aonde pretendem ir, o que desejam, o que sentem, o que planejam, o que comem, o que maltrata; expõem a dor, a raiva, a angústia e o que promove júbilo.

Romperam-se os limites entre o público e o privado. Não basta ser feliz: temos que publicizar a felicidade, do contrário ela não será real. Para ser real tem que ser virtual? Como ser feliz sem o olhar do outro? Hoje não basta expor a própria imagem.

Os sujeitos são compelidos a revelar os seus sentimentos mais profundos como se estivessem em um confessionário e a se mostrar também às pessoas que estão ao seu redor: têm que revelar as suas mazelas e as suas alegrias. Mas não só. É necessário expor a do companheiro, dos pais, dos amigos e dos filhos, sem pedir licença. Todos têm acesso ao que se supõe seus pedaços. O que importa mesmo é alcançar o olhar do outro, quer de admiração, quer de inveja, e ter a maior visibilidade possível: esse é o feedback que o outro vai dar com os seus emojis. Nessa fala que se expressa nas redes, não há um para além de si, mas apenas a própria imagem refletida na sua ‘página-espelho' em uma cena montada para a sociedade do espetáculo que pode dar notoriedade e criar celebridades.

Esse exibicionismo virtual é sinal dos tempos ou é sintoma patológico? Quantos psicanalistas, mestres e doutores têm o seu perfil no Instagram e no Facebook e se identificam neste meu discurso? Estariam doentes?

Será que não seria um sonho transformar-se em um formador de opinião, no linguajar atual, um digital influencer, um youtuber, um coach, ou outro nome, mas que signifique que esse sujeito sabe das coisas, dá dicas e que existe para seus seguidores que o admiram e o tiram do anonimato, oferecendo-lhe um novo status.

As conexões virtuais são sedutoras por permitir uma liberdade que jamais alguns experimentariam fora desse espaço. Na internet e nas redes sociais, as pessoas são aquilo que desejarem ser, com um perfil totalmente fake, com dados e imagens não necessariamente verdadeiros, dando ao corpo contornos totalmente imaginários, criando possibilidades também imaginárias que não necessitam do corpo e nem do espaço real.

Não temos dúvidas de que nas redes sociais o sujeito pode construir uma identidade virtual, ter uma vida dupla e ter diversas e novas experiências. Em oposição à realidade com corpos tangíveis e materializados, a ausência de existência, pode definir o virtual. Virtual significa possibilidade viável, porém sem consequência real (MICHAELIS, 2020).

Não são mundos necessariamente paralelos, porque existe possibilidade de haver uma interposição entre eles, haja vista a fronteira quase imperceptível entre o que ocorre no mundo virtual e no mundo real. Ou seja, as experiências vividas no espaço virtual, considerado ilusório, falso ou fantasioso, têm efeitos na vida real do sujeito, via linguagem e, assim, o que não existia passa a fazer parte ou ser potencialmente parte do mundo real (NICARETTA; PRETTO, 2017).

Há uma nova modalidade, ainda não compreendida, de relações objetais, em que a falta de referências de alguém que se conhece nas redes causa curiosidade, medo e desejo (CHARLOT, 2000; SFOGGIA; KOWACS, 2014).

Onde não há certezas, tudo pode acontecer e é um convite para a fantasia. Aliás, há que pensar que a profusão de fantasias propiciadas nas redes é um exercício do deslizamento constante do desejo que não se sustenta e não se realiza.

As stories construídas favorecem essa pseudorrelação com o outro. A grande novidade é o aplicativo chinês TikTok, que está entre os apps mais baixados entre os jovens da geração Z e que está sendo capaz de influenciar o jeito como a molecada conta piada, canta e dança, criando vídeos divertidos de apenas um minuto para ser lançado nas redes sociais a partir do smartphone. Um jeito engraçado de ser e ser reconhecido, algo da ordem do ideal do ego.

Para os mais desavisados, a geração Z é aquela composta por pessoas que nasceram entre 1995 e 2010 e estão entre 10 e 25 anos de idade. O aplicativo está fazendo tanto sucesso que o Facebook copiou e faz algo parecido. Tudo isso nada mais é do que uma nova fórmula de se exibir e ganhar likes dentro da tribo. Vale lembrar que ser reconhecido dentro da tribo também significa ser igual aos outros, em um apagamento da alteridade (BIRMAN,1997).

Aliás, o mundo virtual é assustador no que tange à capacidade de influência, para o bem ou para o mal, inclusive na política. Obama foi o primeiro presidente americano a usar o Twitter, o primeiro a fazer uma live no Facebook e o primeiro no Snapchat, uma plataforma que fez muito sucesso e agora está quase descontinuada Dilma Rousseff em 2014 se beneficiou na sua reeleição, e recentemente Trump fez uso de perfis falsos e robôs para ter algumas vantagens e Jair Bolsonaro também praticamente se elegeu graças à internet

Há algum tempo temos notícias da deepweb ou darkweb, que funciona sem marcos regulatórios, sem deixar registros da origem das mensagens, ao arrepio da lei. É nas profundezas desse mar sombrio que vivem e trocam mensagens de forma anônima os pedófilos, os terroristas e os traficantes, entre outros.

Temos agora uma nova ferramenta que são as deepfakes, capazes de fazer manipulação virtual, com criações digitais, avatar de personalidades capazes de entreter ou enganar quem assiste e causar assombros com fakenews. Com a nova tecnologia insere-se rostos reais em cenas falsas, criando um vídeo em que alguém, por exemplo, aparece dizendo algo que não disse. A maioria dessas deepfakes tem natureza pornográfica colocando famosos em alguma cena, mas em novas campanhas políticas, a tecnologia pode ser usada.

Os congressistas americanos já estão pedindo providências ao Facebook, ao Twitter e outras redes, no sentido de evitar vídeos enganosos na próxima campanha, evitando a máquina da desinformação que gera insegurança. Tarefa difícil. Trata-se de um perigoso recurso de manipulação, que pode destruir a vida de alguém ou mudar o destino de uma nação.

Estamos em crise, quero dizer, mais uma, e estamos sempre em permanente construção dialética. To be or not to be? O sujeito contemporâneo é plural, suas relações e sua subjetividade são fragmentadas.

A verdade é que perdemos as nossas referências de quase tudo que era posto como padrão: o Nome-do-Pai, a religião, a política, a família. As verdades já não são dogmáticas, e somos convidados pelos novos tempos a uma reestruturação dos nossos pensamentos e valores Alguns têm tentado pensar em um mais-além, fora da caixinha, como dizem os mais jovens. Ainda estamos construindo novas teorias e formando também novas subjetividades, e, enquanto isso, alguns mais vulneráveis no processo de identificação se perdem no caminho.

Ainda que favoreça encontros e conexões com os amigos e entes queridos distantes, o espaço criado dentro das redes sociais é de pura solidão e é por causa dela que as pessoas vivem conectadas diuturnamente por dificuldades com o encontro consigo mesmas, algo fundamental para a construção da identidade.

Quando objetos internos ficam empalidecidos, sem cor, há um predomínio do vazio e se busca, na demanda do outro, respostas e preenchimento da falta, aplacamento da angústia que não se nomeia. No mundo virtual, o sujeito parece ter, no “faz de conta que é de verdade”, o controle da brincadeira, tal qual uma criança que repete o papel dos adultos e que traduz o desejo de crescer e poder fazer o que eles fazem.

As pessoas acreditam que, ao lhes oferecer múltiplos contatos diários, a internet é capaz de favorecer a sociabilidade. Quanto mais amigos, mais seguidores, se imaginará mais popular e mais feliz com elevada autoestima. Há aqueles também que acreditam que a internet e seus tentáculos, as redes sociais, serão capazes de criar e manter relacionamentos como um benefício secundário e, assim, justificam o uso do Tinder, aplicativo de namoro, encontros e sexo, que fomenta encontros reais ou não, entre pessoas que partilham, nos seus perfis, das mesmas expectativas, quais sejam, encontrar alguém interessante para ficar, apaixonar-se e até namorar e casar.

As realidades virtuais existem como uma fértil possibilidade de construção de um novo modelo de identidade, realização de fantasias, fomentando possibilidades. As fantasias surgem como resultantes de uma mistura inconsciente das pulsões sexuais e agressivas dentro da realidade psíquica daquele sujeito desejante e insatisfeito, que usa as redes como um imenso caldeirão e que nelas busca inconscientemente respostas/saber e gozo. De alguma sorte realiza os seus desejos, ao tempo que exercita os seus mecanismos de defesa.

Não basta ignorar que as fantasias amorosas sobre um determinado perfil trazem traços e detalhes críticos da relação desse sujeito com figuras parentais no romance familiar, bem como com identificações e escolhas objetais e narcísicas. O encontro será, na realidade, um reencontro com o objeto perdido (COELHO JR., 2002).

As pessoas, no perfil pessoal, dizem de si o que elas desejarem, com dados verdadeiros ou não, e se lançam em uma vitrine virtual transformando-se em objetos de consumo, para uso e descarte. Enfim, se der match, combinação perfeita que só a máquina com seus critérios sabe apontar, os amores surgem no espaço virtual, ainda que para consumo rápido, pois são líquidos, sem profundidade e sem amarras. Começam e são interrompidos pela internet. Não há espaço para envolvimentos mais sérios, pois os envolvidos não suportam as frustrações que a intimidade real impõe (BAUMAN, 2004).

Os laços sociais, cada vez mais frouxos, tornaram-se virtuais, prevalecendo a necessidade de olhar e ser visto e dando a ilusão de que o sujeito é importante dentro desse universo de pseudoamigos, haja vista o enorme aparente interesse que todos têm por este, reforçando o seu jeito de ser com os likes e os emojis.

Em 2016 realizei uma pesquisa sobre o uso abusivo da internet entre estudantes de medicina. Não foi difícil perceber que esse uso tem efeitos sobre o cotidiano, e o estudo revelou que a internet tem o potencial de promover danos psíquicos que desafiam psiquiatras e psicanalistas. Claro que essas questões ainda carecem de mais estudos para se entender o que faz com que as pessoas usem excessivamente os seus dispositivos eletrônicos, em especial os smartphones (PIMENTEL et al., 2016).

As pesquisas são capazes de apontar associações entre internet com sinais e sintomas de transtornos psíquicos, porém não trazem a informação de causalidade.

Na nossa pesquisa constatamos que 1/3 dos nossos alunos investem um tempo significativo (mais de cinco horas diárias) no uso da internet para atividades lúdicas, com prováveis perdas e danos em várias áreas de sua vida e provavelmente sem perceber isso. Entre os alunos que deixam o celular ligado nas madrugadas, 53,1% respondem às mensagens recebidas. Os que verificam as redes sociais ao acordar de madrugada tiveram associação significativa com o fato de não dormir bem à noite, o que provavelmente compromete o rendimento escolar (ZHENG et al., 2014; PIMENTELet al., 2016).

O sujeito dos tempos atuais é entediado com absolutamente tudo. Não se estimula nem se sente desafiado no dia a dia e revela oscilação de humor, além de uma busca intensa de prazer e emoções sem se entregar a nenhuma paixão. Não sabe o que quer e traz um profundo vazio no lugar da demanda e da falta, ou seja, sofre de um mal-estar difuso e inominável. Usa a internet para fazer suplência daquilo que lhe falta e na ausência desta, agrava-se o seu estado afetivo com muita irritabilidade e sensação de esvaziamento (PIMENTELet al., 2016).

Com a internet o sujeito reconhece a sensação de estar vivo. O sujeito só está vivo se plugado na rede. É lá que adquire uma identidade com o seu perfil divulgado, onde é reconhecido, vê e é visto. Trata-se, sem dúvida, de uma nova subjetividade.

Quanto mais jovens, menos tempo esses sujeitos dedicam a atividades no ambiente social real e estão mais propensos a sofrer depressão. Não é à toa que os colegas psiquiatras apontam no cotidiano dos seus consultórios que adolescentes adictos de internet apresentam mais depressão, fobia social, transtornos de déficit de atenção e hiperatividade e hostilidade.

Um outro dado da minha pesquisa é que 60,2% desses jovens, quando estão com familiares, professores, amigos ou em um evento como este, acessam a internet sem cerimônia, e 78% não conseguem desligar o smartphone. E o agravante é que têm o hábito de conversar simultaneamente com terceiros na internet, durante as aulas, as apresentações e os encontros (PIMENTEL et al., 2016).

Ou seja, além das obrigações do cotidiano, que roubam o tempo afastando as pessoas, a internet despudoradamente convida os usuários a um isolamento, empobrecendo a comunicação e a convivência direta das pessoas que se amam e trazem para dentro desse espaço pessoas e mensagens sem nenhum valor, gerando queixas, mágoas e sentimento de abandono.

O celular tornou-se um hábito socialmente irritante para professores, pais, palestrantes, entretanto é uma válvula de escape para o usuário porque alivia seu estresse.

Nesse novo cenário, o sujeito desconectado das redes e da internet sofre. O nível de dependência é tão grande que, quando não estão conectados, os alunos da nossa pesquisa referiam tédio, ansiedade, irritabilidade e mostravam-se tensos, tristes, com sensação de esvaziamento, apatia, insônia, medo de perder o contato com os amigos, além de alterações do apetite (PIMENTEL et al., 2016).

Não se sabe o que é normal. Estar online todos os dias não significa dependência e as mídias sociais são não necessariamente negativas, mas apenas um jeito novo de elaborarmos certos aspectos do eu, do nosso exercício com as nossas habilidades sociais. Mas também podem ser um meio favorável para a repetição de comportamentos inadequados socialmente.

O DSM-5, no qual a American Psychiatric Association descreve e diagnostica as doenças mentais, ainda não reconhece esse distúrbio, mas faz recomendações para novos estudos, porque é uma condição associada não só à perda de controle sobre o uso da internet com resultados psicossociais e físicos, mas também ao impacto na vida laboral, social, acadêmica (APA, 2014).

Somos contemporâneos de uma grande revolução cientifica, tecnológica e comportamental. Nossa subjetividade sofre inúmeras transformações no mundo atual. Construímo-nos na relação com o outro. Este, por sua vez, também não pode ser pensado separadamente das relações interpessoais, quer sejam reais, quer sejam virtuais, estabelecidas ao longo da sua vida e que moldarão a nova subjetividade do sujeito. Não há eu sem o outro.

A verdade é que não temos a mesma métrica para avaliar os comportamentos da vida real e da vida virtual. Já ouvi argumentos como “conversar horas a fio no telefone, pode”. Mesmo considerando que é um contato também virtual e diferente de um bate-papo cara a cara, é socialmente aceito. Conversar no WhatsApp, por horas, é suspeito. Ficar isolado lendo um livro nos dará a chancela de cultos. Porém, se gastarmos as mesmas horas online lendo um livro no iPad, algo anormal deve estar acontecendo conosco e nossa escolha em usar esse recurso poderá ser interpretada como alguma manifestação patológica, como fuga da realidade e isolamento social.

Esse é um universo ainda desconhecido no que tange a seus efeitos, e temos dificuldade de lidar com o novo e com as mudanças, muitas delas radicais, no cenário social, a partir das novas tecnologias. Psicanalistas precisam estar atentos a essas metamorfoses.

Hoje o cliente nos alcança para marcar consultas pelo e-mail, pelo Whatsapp ou pelas plataformas digitais coletivas de agendamento. Bisbilhotam a nossa vida e nos escolhem conforme as fantasias tecidas em torno do que expomos nas redes sociais.

O Conselho Federal de Psicologia já liberou as terapias por Skype ou via outros recursos virtuais. E o nosso Conselho de Medicina está, via telemedicina, flexibilizando a relação médico-paciente. Só no a posteriori saberemos os efeitos disso tudo. Daqui há alguns anos, na virada do próximo século, será que teremos consultórios nos moldes atuais para receber os nossos pacientes?

Temos que reconhecer as novas formas de comunicação e de subjetividade, e não mais demonizar os meios de comunicação e os dispositivos usados. A psicanálise aponta como ilusória a dicotomia que separa indivíduo e cultura. As pessoas vivem diferentes experiências quando estão no mundo virtual e essas vivências têm dependência direta daquilo que o indivíduo carrega consigo: o seu universo simbólico entendido como seus valores e suas crenças, aquilo que ele já viveu ou pensa, dentro ou fora da rede.

Temos de nos oferecer para ser interlocutores entre esses segmentos da sociedade pós-moderna, mas apenas se formos capazes de sair do viciado discurso e não sucumbirmos à nova realidade. Nesta nova era, esse homem contemporâneo quer resolver seus problemas de forma rápida e indolor, gozando rápido e sem obstáculos, e, de preferência, sem limites.

É preciso lembrar que a psicanálise não interdita o gozo, mas aponta a desarmonia entre o sujeito e o seu gozo.

 

Referências

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BAUMAN, Z. O amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.         [ Links ]

BIRMAN, J. Estilo e modernidade em psicanálise. São Paulo: Ed. 34, 1997.         [ Links ]

BOCCA, F. V. Princípio do prazer como regulador de uma civilização em declínio. Trans/Form/Ação, Marília, v. 42, n. 1, p. 123-152, jan./mar. 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/trans/v42n1/0101-3173-trans-42-01-0123.pdf. Acesso em: 08 abr. 2019.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
E-mail: deborah@infonet.com.br

Recebido em: 10/12/2019
Aprovado em: 20/12/2019

 

 

SOBRE A AUTORA

Deborah Pimentel
Mestre e doutora em Ciências da Saúde
pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Professora titular e coordenadora do módulo Habilidades de Comunicação do curso de Medicina da Universidade Tiradentes.
Professora Adjunta IV das disciplinas Ética Médica e Habilidades de Comunicação; além de Medicina Legal e Deontologia do Departamento de Medicina da UFS.
Membro do Comitê de Ética em Pesquisas da UFS (2007-2016).
Membro do Círculo Psicanalítico de Sergipe.
Imortal da Academia Sergipana de Medicina.
Membro da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores.

 

 

1 Trabalho apresentado no Painel 5 - Picanálise e mundo virtual do XXIII CONGRESSO DO CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE e da III JORNADA DO CÍRCULO PSICANALÍTICO DO PARÁ, Psicanálise e diversidades: inconsciente, cultura e caminhos pulsionais, Belém (PA), 7-11 nov. 2019.

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