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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.52 Belo Horizonte jul./dez. 2019

 

PAINÉIS E COMUNICAÇÕES SIMULTÂNEAS - TEXTOS COMPLETOS

 

Internet e psicanálise: considerações sobre seus efeitos na forma de subjetivação da criança1

 

Internet and psychoanalysis: considerations on its effects of child subjective

 

 

Elizabeth Samuel LevyI, II; Louise Freitas MonteiroI

I Círculo Psicanalítico do Pará
II Universidade Federal do Pará

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Não podemos mais ignorar as transformações que se impõem em nossa cultura e suas vicissitudes, de modo que existem efeitos concretos nas formas de mal-estar que se apresentam na contemporaneidade. A psicanálise vem tentando compreender esse fenômeno com mais perguntas do que respostas e ainda é surpreendida com o que de inédito se apresenta. A internet traz o fascínio pelo encontro a qualquer minuto e nos coloca frente ao que Freud ([1905] 1980) em seu texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade chamou de onipotência de pensamento: “Eu quero, eu posso!”, o que remete ao discurso da criança, que tem a fantasia egocêntrica de que ela e o mundo fazem Um.

Palavras-chave: Internet, Crianças, Identificação, Desamparo.


ABSTRACT

We can no longer ignore the transformations that are imposed on our culture and its vicissitudes, so that there are concrete effects on the forms of malaise that present themselves in contemporary times. Psychoanalysis has been trying to understand this phenomenon with more questions than answers and is still surprised by what is unheard of. The internet brings the fascination with the encounter at any minute and puts us in front of what Freud (1905) called omnipotence of thought: “I want, I can!”, Which refers to the speech of the child who has the egocentric fantasy that she and the world make one.

Keywords: Internet, Children, Identification, Helplessness.


 

Introdução

A psicanálise vem tentando compreender o fenômeno do mundo virtual que nos atravessa a todos, mais com perguntas do que com respostas e ainda é surpreendida com o que de inédito se apresenta.

Vive-se, hoje, em uma dimensão em que realidade e virtualidade se confundem; onde se dorme e acorda em estado de conexão constante, em uma atmosfera de contato imediato. O fascínio pelo encontro a qualquer minuto nos coloca frente ao que no texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade , Freud ([1905] 1980) chamava de onipotência de pensamento: “Eu quero, eu posso!”, o que remete ao discurso de uma criança que tem a fantasia egocêntrica de que ela e o mundo fazem Um (LEVY, CECCARELLI; DIAS, 2017).

No entanto, sabe-se que o uso de telefones celulares, bem como de outros equipamentos de tecnologia da informação que permite rápido acesso à  internet, acaba transformando os comportamentos, as subjetividades e as formas de se relacionar (EISENSTEIN; ESTEFENON, 2010).

Os jogos, os sites e a infinidade de “mundos” apresentados pela internet colocam seus usuários diante de uma janela aberta em que qualquer um pode entrar, de modo que seu rápido acesso pelas crianças pode gerar um misto de fascínio e perigo (LEVY, CECCARELLI; DIAS, 2017, p. 43).

Assim, é importante considerar esses novos riscos à saúde física e psíquica para a geração da era digital, muitas vezes gerados pelo excesso de horas de uso da internet, causando problemas de diversas ordens, chegando inclusive a quadros de angústia, queda de rendimento escolar, sedentarismo, obesidade infantil e insônia ou sono agitado e outros quadros graves com traços autistas.

Com esse novo contexto estabelecido, as crianças e os adolescentes passam a viver em dois mundos: aquele que todos conhecemos, o mundo real, e o mundo digital ou virtual, que parece muito mais interessante e surpreendente, porque oferece aventuras, oportunidades e a busca pela autonomia.

No entanto, destaca-se que a confusão entre fantasia e realidade permeia o imaginário infantil independentemente da internet, já que o advento da tecnologia produz um movimento de busca pela satisfação plena e imediata de acesso a essa fantasia, acompanhadas de um notável pensamento mágico, que parece tamponar a falta constitutiva do ser humano inerente aos processos de subjetivação.

É possível vislumbrar a ordem de complexidade envolvida na relação estabelecida entre a criança e a internet , especialmente se analisada pelo olhar da psicanálise. Assim, nos interessa aqui, ancoradas pelo aporte teórico psicanalítico de identificação e desamparo, analisar algumas formas como os sujeitos infantis podem ser atravessados por sua relação com a internet, bem como a angústia que isso pode desencadear.

Quando os pais ofertam a tela de cristal líquido aos filhos que são bem pequenos, a consequência disso, para o sujeito que está em constituição, segundo Jerusalinsky (2017), é repetir feito um autômato e a produção de linguagem é realizada através da ecolalia, de falar de si em terceira pessoa, da parasitação de ruidinhos eletrônicos que reproduzem sem se dar conta e pela repetição de enunciados em um apagamento do sujeito da enunciação. Outro fato são bebês e crianças de um ano e meio a três anos que chegam ao consultório com suspeita de autismo, por não responderem quando chamados ou por não estarem em busca dos outros. Ou observa-se crianças que falam de youtubers como se estivessem falando de amigos, sem que haja nisso nenhuma reciprocidade, essas crianças conhecem os detalhes íntimos da vida desses youtubers, porém desconhecem a vida daqueles que lhe são mais próximos. (JERUSALINSKY, 2017).

Para Jerusalinsky (2017), o ser humano da atualidade é um ser exaurido pela compulsão em viver mais e mais da Era Digital; além disso, houve uma mudança na relação tempo-espaço de nossas vivências e no modo como representamos o que nos acontece, assim como ocorreu uma descontinuidade nos modos de estabelecer o laço social e nas formas discursivas de sustentar subjetivamente as experiências.

Não podemos esquecer que é necessário que a criança se relacione com sua família, sua escola, seus amiguinhos e faça um laço social necessário para que se constitua como um sujeito desejante.

 

Desamparo e subjetivação contemporânea

Nas últimas décadas, constituiu-se no Ocidente uma nova cartografia do social, em que a fragmentação da subjetividade ocupa posição fundamental, que é a matéria-prima por meio da qual outras modalidades de subjetivação são forjadas. Dessa forma, em todas as novas maneiras de construção da subjetividade, o eu se encontra situado em posição privilegiada. O que agora está em pauta é uma leitura da subjetividade em que o autocentramento se conjuga de maneira paradoxal com o valor da exterioridade.

Com isso, a subjetividade assume uma configuração decididamente estetizante, em que o olhar do outro no campo social e mediático passa a ocupar uma posição estratégica em sua economia psíquica e, sob essa perspectiva, a existência de uma “ cultura do narcisismo” e da “ sociedade do espetáculo” são instrumentos teóricos agudos para que se possa realizar a leitura das novas formas de subjetivação na atualidade (BIRMAN, 2007).

Freud já previa que a civilização caminhava para uma organização permeada pelo mal-estar. Viana e Lazarinni (2009) defendem a ideia de que, por um lado, a contemporaneidade ampliou as possibilidades de um viver mais diversificado, por outro lado, passou a expor o sujeito a um desamparo maior, uma solidão mais difícil de lidar. Nesse contexto, há o retorno e o represamento do eu da libido, que passa a ser investida mais narcisicamente. Torna-se, então, difícil um investimento em um objeto que, no caso, caracteriza a saída para a alteridade.

Contudo, parece que, nesse processo, entre a possível realização imediata dos desejos e os limites impostos pelo trabalho de cultura (Kulturarbeit), há um certo desconforto gerado principalmente pelo inevitável confronto do sujeito com sua incompletude e, fundamentalmente, com seu desamparo (LEVY; DOLZANY; ARAÚJO, 2010).

Para Freud ([1926] 1980), diante da experiência de desamparo do eu, constitui-se um estado automático de angústia, em virtude dessa situação traumática. A angústia seria uma resposta do eu diante dessa ameaça que, por sua vez, constitui uma situação de perigo que se modifica no decorrer da vida do indivíduo, mas tem uma característica comum, que é o fato de envolver a separação ou a perda de um objeto amado, ou uma perda de seu amor – uma perda ou separação que poderá, de várias maneiras, conduzir a um acúmulo de desejos insatisfeitos e, assim, a uma situação de desamparo (Freud, [1926] 1980).

Tal situação guarda semelhanças com o desamparo psíquico, que ocorre quando o eu do indivíduo é prematuro, logo incapaz de lidar psiquicamente com o pulsional (LEVY, CECCARELLI; DIAS, 2017, p. 43).

O que Freud nos mostra é que, se não fosse pela presença do outro, o ser humano morreria. É pelo trabalho de ligação da força pulsional do outro que o organismo humano se constitui. Seria pela transmissão ofertada por um outro e não pela natureza em si. Assim, para Birman (2007), o humano se constitui pelo trabalho do outro, pela mediação de uma dependência da qual jamais se libertará mesmo que, posteriormente, ele tenha recursos para tal, relativizando sua dependência. Mas como a força pulsional é constante e contínua, ela recoloca o sujeito na condição de desamparado.

A representação do desamparo que o pai morto deixou é sempre revivida no mesmo desamparo que o infante vive nos seus primeiros momentos de vida e, para supri-lo, buscará, através de uma renúncia, apropriar-se das relações simbólicas possíveis às quais se encontram num social em que o outro, de quem ele tanto depende, está inserido.

De acordo com Ceccarelli, Levy e Dias (2017), para a existência da civilização, a organização e a diferenciação do homem, é imprescindível que o recalque se instaure. Dessa forma, abandonamos os nossos primeiros objetos de amor e podemos, então, interessar-nos por outrem. Porém, isso não ocorre sem sofrimento.

Freud (1930] 1996, p. 124) adverte que

[...] constitui, talvez, a mutilação mais drástica que a vida erótica do homem em qualquer época já experimentou.

A civilização deve proporcionar ao sujeito outras satisfações substitutivas, para que ele possa suportar a renúncia pulsional sofrida.

Contudo, as satisfações ofertadas pela cultura são, por definição, incompletas. Jamais alcançarão as renúncias outrora realizadas, o que gera o mal-estar sofrido pelo homem (LEVY, CECCARELLI; DIAS, 2017). Isso nos leva a pensar que a criança, quando entra em contato com a realidade virtual que, frequentemente, apresenta uma felicidade exagerada e possibilidades infinitas, cria uma referência irreal. E por ainda não conseguir discernir realidade de fantasia, desejará alcançá-la. Dessa forma, a criança se depararia de uma forma mais angustiada com o desamparo, uma vez que acreditaria serem reais a facilidade e as possibilidades que a internet oferece.

O sujeito também poderia se voltar contra o outro, uma vez que

[...] o outro, o diferente que nos remete à castração, constitui o alvo, por excelência, de nossa agressividade: somos agressivos porque somos castrados. O mal-estar revela o nosso desamparo (Hilflosigkeit ) contra o que nada podemos fazer (LEVY, CECCARELLI; DIAS, 2017, p. 45).

E o sujeito se volta para si mesmo, o que dificulta a saída para a alteridade. O reconhecimento do outro estaria cada vez mais prejudicado, como se não houvesse esse outro na relação?

Diante da condição de desamparo fundamental, o infante precisa, a partir do encontro com seus semelhantes, fazer seu próprio caminho para a constituição de si enquanto sujeito psíquico. Freud ([1914] 1994) afirma que o que é fundado nesse período de sua constituição provém do narcisismo dos pais. Simbolicamente, as coisas que antecedem esse período para o sujeito possibilitam a criação das condições para a sua estruturação.

Assim,

[...] não se trata, pois, do tempo cronológico, mas do tempo poético em que o simbólico reve­la assim sua ascendência (MACIEL et al . apud KAUFMANN, 2016, p. 334).

Podemos compreender o egocentrismo e a onipotência narcísica infantis como estágios que, pelo desejo e pelo afeto que os constituem, revelam-se como condições que devem ser confirmadas para que a realidade seja produzida.

É preciso que essa condição se confirme para que adentremos nesse mundo simbólico, analógico, do futuro, em que a realidade, inclusive do tempo, não é um dado, mas uma relação (MACIEL, et al. apud KAUFMANN, 2016, p. 334).

Maciel et al. (2016) salientam que a permanência do infantil no sujeito quando adulto, é tributária desse tempo em Freud e aponta ainda que o reconhecimento do outro coincide com o estabelecimento do ideal de eu. É na fundação desse processo que está a composição dos ideais e das identificações.

 

Sobre identificação e internet

O que chama a atenção da criança nos jogos, nos aplicativos e demais recursos da mídia tecnológica? Neste ponto, para compreendermos a criança do século XXI e sua relação com a tecnologia, faremos uma aproximação com o que, em seu texto Psicologia de grupo e a análise do ego, Freud ([1921] 1980, p. 133) chama de identificação – a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa. A identificação desempenha um papel na história primitiva do complexo de Édipo.

Gradativamente, o conceito de identificação atraiu valor central na obra de Freud, o qual se tornara não apenas mais um mecanismo psíquico, mas uma operação constitutiva para o ser humano. A evolução está correlacionada essencialmente ao fato de o complexo de Édipo ter sido reconhecido em primeiro plano por seus efeitos estruturais, além da

[...] remodelação introduzida pela segunda teoria do aparelho psíquico, em que as instâncias que se diferenciam a partir do id são especificadas pelas identificações de que derivam” (XERFAN apud LAPLANCHE; PONTALIS, 2016, p. 23).

Antes das primeiras identificações, o que há é o id, do qual o eu irá se constituir incorporando a si seus objetos de desejo (XERFAN, 2016, p. 29).

Nesse período correspondente à fase oral primitiva, ainda não há distinção entre a identificação e o investimento objetal. Com a maturação do bebê, essa distinção ocorrerá, de maneira que fica evidente que tendências eróticas partem do id em direção ao objeto de amor, e o eu ou as reprime, ou submete-se a elas.

A identificação, como a forma mais primitiva de expressão de vinculação com o outro, é um processo que se inicia na relação da mãe com o bebê, na qual, antes de qualquer investimento objetal, o bebê se identifica com a mãe e com o pai de forma direta e imediata.

E (Freud , [1921] 1980, p. 134) afirma que

[...] a identificação esforça-se por moldar o próprio ego de uma pessoa segundo o aspecto daquele que foi tomado como modelo.

Isso ocorre tanto por imitá-lo quanto por tê-lo assimilado em si, salienta Xerfan (2016).

Dessa forma, pode-se depreender que o vínculo existente entre as pessoas provém de suas identificações, seja por uma qualidade emocional importante em comum, seja por uma ideia. Tendo em vista que o fenômeno da internet interfere no contexto das relações interpessoais, as identificações entre as pessoas e suas vinculações, a relação entre as crianças e os geradores dos conteúdos do espaço virtual – como os youtubers ou digital influencers – são uma expressão desse fenômeno.

Atualmente, os youtubers ou digital influencers , através da comunicação e do apelo visual, influenciam os seus espectadores de diversas formas. Tornam-se uma espécie de líder para os seus seguidores, que muitas vezes se unem e se denominam virtualmente como um grupo de fãs, adotando nomes designados a isso. Freud, em 1921, suspeitou que a base em comum que os une encontra-se na natureza do vínculo existente com o líder. Logo, o sentimento pelo líder, pela figura da maior importância, liga os participantes. Sem nunca se terem visto ao vivo ou comunicado entre si, são unidos pelo interesse em comum pelo líder e pelos conteúdos por ele compartilhado.

O som inicial que o bebê escuta vem da mãe ou substituta, que introduz e nomeia o universo da linguagem. Mas e quando esse som vem do iPad? É possível que para a criança em seu fascínio, iPad o repita para esse outro?

No texto Psicologia das massas e a análise do eu , Freud ([1921] 1980) aborda o conceito da identificação e do fascínio, os quais são processos próximos, com distinções importantes. No caso da identificação, o objeto foi abandonado ou perdido e, então, introjetado no eu, que efetua em si próprio uma alteração parcial de acordo com o modelo do objeto perdido. No que tange ao fascínio, o objeto é mantido pelo eu, que despende a ele superinvestimento às suas próprias expensas. Esses não são processos contraditórios; eles podem, inclusive, ocorrer concomitantemente. Dessa forma, um mesmo sujeito pode se encontrar em um estado de ‘servidão' a um outro, tendo substituído seu constituinte da maior importância pelo objeto (característica do fascínio) e ao mesmo tempo tê-lo introjetado parcialmente em si próprio (característica da identificação).

Assim sendo, podemos relacionar o uso que algumas crianças fazem do mundo virtual à forma fascinada de vinculação a um objeto. Nessa relação, em que se apresenta a sujeição do eu aos conteúdos e ao seu transmissor, há a redução da iniciativa do sujeito, dado que o sujeito alienador assume o lugar de ideal do eu, similar ao que ocorre nos casos de hipnose, como descreveu Freud (1921).

A psicanalista Nádia Lima (2006), em sua pesquisa sobre o ciberespaço, recorta o aspecto fascinado e alienante relacionado à sua utilização, defendendo a hipótese de que essa relação fascinada do sujeito com a internet é consequência de dois fatores: a posição do sujeito diante do virtual e o poder fascinante próprio das imagens.

Subsidiada pela literatura psicanalítica que define a alienação imaginária como estruturante e constitutiva, a autora ressaltou

[...] a sua dimensão de submissão e subserviência, que pode ser expandida em uma cultura marcada pela virtualidade e em determinadas interações com o ciberespaço (LIMA, 2006, s/p).

Investigou ainda

[...] a possibilidade de a imagem eletrônica provocar o aparecimento de um fenômeno semelhante ao fascínio hipnótico, favorecendo o efeito de um rebaixamento da ação reflexiva do pensamento (LIMA, 2006, s/p).

Esse rebaixamento, que propiciaria uma posição de submissão a um outro alienador, constitui um significativo desdobramento da incursão das crianças no mundo virtual. Ainda em fase de maturação e de desenvolvimento, ao entrar em contato prematuramente com esses estímulos, as crianças podem se encontrar vulneráveis e mais propensas a esses efeitos descritos, que envolvem a alienação a um outro e uma baixa na sua capacidade reflexiva e de iniciativa.

Nos últimos anos, tem sido recorrente nos consultórios a presença das primeiras gerações de bebês e pequenas crianças que, desde o nascimento, convivem com a existência de gadgets eletrônicos. Essas crianças já trazem as consequências dessa realidade, na medida em que esses aparelhos são ofertados a elas no lugar de brinquedos e elas convivem com adultos que não têm mais tempo, porque a borda entre o espaço de lazer e de trabalho está se desconfigurando. Os adultos estão ali com eles de corpo presente, mas psiquicamente ausentes (JERUSALINSKY, 2017).

 

Para concluir...

Essa espécie de “chupeta eletrônica”, sobre a qual Jerusalinsky (2017) comenta, e junto à qual as crianças comem, tomam banho e deslocam-se pelo bairro, é a razão pela qual os bebês chegam ao consultório padecendo de intoxicações eletrônicas.

Para Jerusalinsky (2017), uma vez que está estabelecida a relação da mãe com o bebê, é importante que ela ofereça a ele, de forma progressiva, objetos substitutivos que vão passar a representar a relação do bebê com o Outro – paninhos, chocalhos, brinquedos que vão derivar depois o objeto transicional apontado por Winnicott.

No lugar disso, porém, esses objetos substitutivos acabam por se interpor na relação, supostamente “poupando” o trabalho de se relacionar com todo o mal-estar e os equívocos que isso comporta. Como assinalam Levy e Ceccarelli (2012), cada época utiliza dos meios que tem para enfrentar o mal-estar. E os expedientes usados para nomear o que nos aflige variam segundo o discurso dominante do momento sócio-histórico no qual estamos inseridos.

De acordo com Levy, Ceccarelli e Dias (2017), Freud elucida que, a fim de não ser afetado pelas pulsões desagradáveis advindas do interior, o eu lança mão de métodos iguais aos utilizados para evitar os desprazeres que vêm do exterior. Além disso, se não for compensado economicamente, esse processo poderá dar início à construção de significativos distúrbios psicopatológicos.

Nesse contexto, podemos depreender que o mundo virtual guarda fascínios e perigos que constituem a cultura e o processo de subjetivação (LEVY, CECCARELLI; DIAS, 2017). Desse modo, se faz essencial que os familiares atentem ao uso que as crianças vão fazer da internet e de seus dispositivos, preocupando-se com o ‘valor' e o ‘lugar' que os sujeitos infantis irão desempenhar no mundo virtual, o que resguarda o processo de subjetivação e formação psíquica do sujeito infantil de dificuldades que vão além das constituintes e estruturantes.

Conforme vislumbramos nesse artigo, a relação com a internet, como tudo na vida, tem dois lados. Por um lado, temos essa ferramenta que estimula a criança em vários níveis, tanto psíquicos como sociais e, por outro, pode ter efeitos nocivos na formação do psiquismo.

Nesse sentido, o sujeito infantil pode ser invadido com informações em demasia, o que contribui para que o infante invista mais ainda na fantasia em detrimento da realidade, e pode seduzi-lo para uma relação fascinada com o mundo virtual. Além do mais, pode dificultar a saída para a alteridade, a qual se revelou como um dos mais significativos efeitos, já que é a manifestação do interesse em objetos externos a si próprio, e o que possibilita sua troca, a sua socialização.

A psicanálise se faz necessária para fomentar a análise do nosso contexto e, assim, conhecermos e cuidarmos da realidade que se apresenta e nos desafia com questionamentos e realidades antes impensadas. A psicanálise não tem como responder às inúmeras questões colocadas diante desta temática tão peculiar do universo chamado internet, mas nos convoca a pensar a posição do sujeito contemporâneo frente às vicissitudes do sofrimento psíquico.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Elizabeth Samuel Levy
E-mail: bethslevy@gmail.com

Louise Freitas Monteiro
E-mail: louise_freitas_@hotmail.com

Recebido em: 12/11/2019
Aprovado em: 08/12/2019

 

 

SOBRE AS AUTORAS

Elizabeth Samuel Levy
Psicanalista do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA).
Psicóloga pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Mestre em Psicologia Clínica e Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Docente do Curso de Psicologia da Universidade da Amazônia (UNAMA).
Coordenadora da Clínica de Psicologia da UNAMA.de 1999 à 2019.
Psicóloga Hospitalar (CRP 10).
Pesquisadora do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Presidente do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA).
Filiada ao Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP).
Membro da International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS).

Louise Freitas Monteiro
Psicóloga (UNAMA), Especialista em Avaliação Psicológica (IPOG), Psicanalista em Formação pelo Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA).

 

 

1 Trabalho apresentado no Painel 3 – Psicanálise e subjetividades contemporâneas do XXIII CONGRESSO DO CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE e da III JORNADA DO CÍRCULO PSICANALÍTICO DO PARÁ, Psicanálise e diversidades: inconsciente, cultura e caminhos pulsionais. Belém (PA), 7-11 nov. 2019.

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