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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.52 Belo Horizonte July/Dec. 2019

 

PAINÉIS E COMUNICAÇÕES SIMULTÂNEAS - TEXTOS COMPLETOS

 

Assédio do simbólico: o trauma necessário à constituição do sujeito1

 

Harrasment of the symbolic: the necessary trauma to the constitution of the subject

 

 

Esperidião Barbosa NetoI

I Universidade Federal de Alagoas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A experiência traumática inicial do indivíduo é fundante, a partir dela emerge o sujeito. A construção da subjetividade se inicia por força do Real do trauma, segundo a ideia lacaniana de Real, Simbólico e Imaginário como dimensões da vida psíquica. A posição adotada, neste artigo, é de que o trauma inaugural é efeito do assédio do simbólico, evento este traumatizante, mas necessário à confirmação do propriamente humano. Nosso objetivo é apresentar a experiência traumática inicial do recém-nascido como primeiro passo da construção subjetiva e, na sequência, o advento da Lei, considerando o que chamaremos de “assédio do simbólico”. Primeiro, discorreremos sobre A anterioridade do sujeito e sua imersão na linguagem; depois, Assédio do simbólico: arrebatamento do puramente instintivo; por último, A Lei: corte de uma relação que não se sustenta. O trabalho é teórico, as reflexões se nutrem da prática clínica. Conclui-se que toda ação humana se encontra, inclusive, no campo da incerteza em relação ao alcance dos seus efeitos, a ressonância de cada ato repercute em futuras gerações. Alcançamos o campo da ética e do vínculo, cada existente é responsável pela história psíquica da humanidade, seja por anteceder e cuidar do novo ser ou por se posicionar como sujeito.

Palavras-chave: Real-Simbólico-Imaginário, Trauma inaugural, Real do trauma, Assédio do simbólico.


ABSTRACT

The initial traumatic experience of the individual is foundational, from which emerges the subject. The construction of subjectivity begins with the Real of trauma, according to the Lacanian idea of Real, Symbolic and Imaginary as dimensions of psychic life. The position adopted in this article is that the inaugural trauma is the effect of harassment of the symbolic, traumatizing event, but necessary to the confirmation of the proper human. Our objective is to present the initial traumatic experience of the newborn as the first step of subjective construction and, consequently, the advent of the Law, considering what we will call “harassment of the symbolic”. First, we will discuss the subject's anteriority and its immersion in the language; then Harassment of the symbolic: rapture of the purely instinctive; finally, The Law: cutting a relationship that does not hold itself. The work is theoretical, reflections are nourished by clinical practice. It is concluded that all human action is even in the field of uncertainty as to the extent of its effects, the resonance of each act has repercussions on future generations. We reach the field of ethics and the bond, each existing is responsible for the psychic history of humanity, whether by preceding and caring for the new being or by positioning himself as a subject.

Keywords: Real-Symbolic-Imaginary, Inaugural Trauma, Real Trauma, Symbolic Harassment.


 

Para se chegar à fonte,
é preciso nadar contra a corrente.

Stanislaw Lee,
escritor polonês,
1921-2006.

 

Introdução

O sofrimento é inerente ao ser humano. Homem algum se encontra livre do mal-estar e da angústia que habitam cada um de nós, marcados pelo trauma. Traumática é uma situação pela qual grande intensidade de excitação externa invade a organização psíquica, impossibilitando-a de assimilar. O trauma mobiliza o aparelho psíquico, que se posiciona defensivamente, um

[...] acontecimento [...] destinado a provocar um distúrbio em grande escala no funcionamento da energia do organismo e a colocar em movimento todas as medidas defensivas possíveis (FREUD, [1920] 1976, p. 45).

O trauma inaugural e o civilizatório são fundantes. O homem não nasceu para ser feliz (FREUD, [1929/1930] 1974), no entanto pode construir a felicidade; a linguagem que institui o sujeito também o reconstitui.

Nosso objetivo é apresentar a experiência traumática inicial do recém-nascido como primeiro passo da construção subjetiva e, na sequência, o advento da Lei, considerando o que chamaremos de “assédio do simbólico”.

Trabalhamos:

• A anterioridade do sujeito e sua imersão na linguagem;
• Assédio do simbólico: arrebatamento do puramente instintivo e
• A Lei: corte de uma relação que não se sustenta.

Concluímos: o trauma assedia, mas humaniza; atingiremos o campo da ética ao situar o sujeito como responsável pelo seu discurso.

Os tempos da construção subjetiva, que serão mais ou menos delimitados neste trabalho, têm caráter “fronteiriço”. Não se trata de momentos estáticos e bem demarcados. Há uma mobilidade pela qual cada tempo estrutura o anterior e, concomitantemente, antecipa o seguinte. O próprio texto que os descreve não estabelece, com nitidez, o limite (idade) de cada um; contudo, a escrita não compromete a sequência evolutiva gradual entre os tempos.

 

A anterioridade do sujeito e sua imersão na linguagem

O humano é feito de sentido. O sujeito se encontra imerso na linguagem desde o princípio; antes de falar ele é falado, e, ao falar, vai além do que diz. Pensamos a linguagem como um jogo combinatório de elementos simbólicos operando de maneira pré-subjetiva. Ela se encontra na cultura, no não dito ou negado, na expressão humana mais ínfima. No contado está o contador, disse Lacan (1964); o sujeito é levado em conta desde antes da sua aparição no mundo.

Para Lévi-Strauss (1976) tudo é estruturado segundo uma linguagem; o sentido da vida, como pensa e vive um povo nas suas relações entre si e com o mundo, é tecido pela organização histórica e social. O desejo do Outro (pensando-se uma coletividade) ressoa nas gerações posteriores, embora seus traços e seus efeitos nem sempre apareçam na geração seguinte, e sim bem mais adiante. Nesse caso, a geração afetada nem se dá conta, expressando-os com clareza, sutilmente ou através da negação.

A ontogênese repete a filogênese, aponta a escrita freudiana. Cada um carrega a marca dos seus antepassados, embora inconscientemente. O desejo, portanto, é vinculante; desde os pais dos pais, dos avós e muito além do alcance cogitado:

[...] antes mesmo que se inscrevam as experiências coletivas que só são relacionáveis com as necessidades sociais, algo organiza esse campo, nele inscrevendo as linhas de forças iniciais (LACAN, [1964] 2008, p. 28).

Segue o autor, na mesma página,

[...] antes ainda que se estabeleçam relações e que sejam propriamente humanas, certas relações já são determinadas.

Ao nascer, passamos a respirar o simbólico.

Lacan (1975) é enfático ao dizer que o vivente nasce com todas as condições para ser humano. Ele é permeado pelo Real, Simbólico e Imaginário, dimensões psíquicas ainda não enodadas, restando ao vivente trançá-las.

O Real, diz o autor em outro seminário, está no corpo, no “fracasso de uma relação esperada entre uma ordem simbólica e a resposta do real”, ou “quando as cavilhazinhas não entram nos furinhos” (LACAN, [1959-1960] 1997, p. 130), onde o sujeito não funciona.

Simbólico, no sentido grego do termo, quer dizer união de fragmentos em direção à unidade; trata-se da organização de um sentido, do “encaixe” de fragmentos.

Nesse caso, às “cavilhazinhas” se encaixam. O imaginário se encontra na relação especular com o outro, o que implica dizer, também, consigo mesmo (eu-eu). É a imagem de si em jogo, contínua tentativa de buscar no outro o que se perdeu de mim. Imaginarizar é especular a partir do outro, um esforço para se recompor como sujeito, ajustar-se no sentido de unidade, modulação do “eu sou”. O trançamento dessas três dimensões, após o nascimento, constituirá a dimensão psíquica, subjetividade em permanente construção.

 

Assédio do simbólico: arrebatamento do puramente instintivo (trauma inaugural)

Posto no mundo, embora cruzado pela linguagem desde antes, o vivente ainda não opera o simbólico. Ele tem que vencer o momento transitório e pré-subjetivo, passagem da situação parasitária da vida uterina ao início do trançamento que enoda o Real-Simbólico-Imaginário. A passagem é o limite, região fronteiriça nada tênue, um entre, que separa o não ser do ser. Advertimos, no entanto, que o sujeito não surge segundo a ideia de uma “tábula rasa”, tampouco determinado biologicamente; nesse momento ele não se reduz a um animal qualquer.

A esse momento pré-subjetivo, isto é, entre o nascimento e início do trançamento do RSI, Vorcaro (1997) o denomina de posição zero. Nela o bebê vive em estado de gozo pleno, funciona no simbólico embora não o opere. Há uma matriz simbólica mínima. A autora enfatiza, a propósito do que preconizou Lacan ([1959-1960] 1997, p. 127) sobre a linguagem, que nessa posição já se encontram postas as linhas que representam as dimensões do Real, do Simbólico e do Imaginário, “[...] três linhas vizinhas e maleáveis que sofrerão deformações contínuas” a partir do enodamento que engendra a construção subjetiva.

Na posição zero, o recém-nascido funciona sob um estado de regularidade automática de alternância, movimento mínimo e constante de caráter binário: tensão-alívio (t-a-t-a-t-a...). O “ t” remete a “ a”, este conduz a “ t”, repetição circular movida pela diferença de um em relação ao outro. Paradoxalmente “ t” e “a” são também iguais na medida em que um substitui o outro: um é, a um só tempo, o outro, mesmo na diferença. O bebê chora (t) e é satisfeito (a); saciado, a tendência do organismo é a tensão novamente. Isso o acomoda, poupando-o de qualquer esforço, inércia que o faz deslizar de um ao outro (t-a-t-a...). O gozo não vai longe, uma ruptura o supera e dá lugar ao tempo 1.

• Tempo 1: O Real incide sobre o simbólico, continua Vorcaro (1997). A presença do Outro desestabiliza o gozo na medida em que perturba o vivente, rompendo a regularidade da alternância em curso. O impacto se deve à intrusão do Outro materno que representa o mundo organizado pela linguagem (simbólico). Isto é, a mãe age de maneira especular em relação à necessidade do bebê, ela faz uma tradução dele: todo gesto, todo cuidado (ou descuidado) e toda palavra etc. se dão a partir da subjetividade dela ao imaginarizar o corpo do outro; a interpretação tem como referência sua própria a imagem. Ela o nomeia: supõe o desconforto e a satisfação do vivente, cuida do seu modo, isto é, cobre a criança com o manto do próprio desejo.

Não sendo perfeita, a mãe falha, padece do mal-entendido. Seu auxílio pode chegar antes da necessidade ou tardiamente, e nunca na medida exata.

Dunker (2006) observa que a criança, eventualmente, chora e recusa o seio materno embora sinta fome. Há uma confusão de línguas, diz o autor, desencontro entre a assistência do adulto e o que, de fato, a criança recebe e interpreta:

[...] quando a mãe aparece, em resposta a esse choro, tudo o que ela poderá oferecer jamais corresponderá ao traço da memória formado pela criança (DUNKER, 2006, p. 15).

O cuidado nem sempre corresponde ao nível da suposta demanda do desamparado.

O sentido da ação materna é legítimo do ponto de vista cultural, ela “se encaixa”, mas esse descompasso é imperceptível. Para o vivente, no entanto, a mãe se apresenta como imposição, “não se encaixa”. O impacto é avassalador, traumático na medida em que impõe a alternância terciária t-a-a-t-t-t-a-t-a-a-t-a-t-t…, suspendendo a regularidade binária ( t-a-t-a…).

É nesse ponto que o Outro simbólico assedia, segundo a ideia forjada por nós. A mãe marca o corpo do bebê, toma posse dele, apreende-o; o outro não chega a pedir, a intromissão apaga seu apelo precocemente: “ele quer isto”; “não quer aquilo”; “tem fome”, “se parece com o pai” etc.

Para Quinet (2012), é do Outro que vêm os elementos que dão origem a todo o simbólico, os quais engendram a história do sujeito; o Outro é a senha para produção de sentidos,

[...] o arquivo dos ditos de todos os outros que foram importantes para o sujeito em sua infância e até mesmo antes de ter nascido (QUINET, 2012, p. 21).

Porém, o novo ser não entende, o que lhe chega são apenas significantes, e a força assediadora o arrebata do puramente instintivo, instalando um vazio.

No dicionário Aurélio (FERREIRA, 2001), assédio quer dizer “cerco posto a um produto para tomá-lo”, cujo verbo pode ser dito: assediar, no sentido de “pôr assédio ou cerco”. Assim, o Outro materno encurrala o vivente, ferra-o (marca, tal a impressão do ferro no gado), toma conta do seu corpo e o nomeia, eximindo-o da possibilidade de uma vida predominantemente biológica. Sem trégua, o vivente é acossado, inclusive pelas marcas/cerco do mundo simbólico já existente. Como saída para o conflito, o vazio causado pela experiência traumatizante precisa ser superado, lugar para outro tempo.

• Tempo 2: O imaginário incide sobre o Real. O vazio do trauma impele o bebê à busca do estado anterior, o gozo pleno. Enquanto falado pela mãe, seu corpo é imaginarizado: “mamãe, estou com fome”; “eu sou o queridinho da mamãe”; “o que seria dela sem mim?” – diz o Outro materno. A criança procura coincidir com esses dizeres, imaginariza a partir do que foi imaginarizado pelo Outro, tenta se vê como é vista. O jogo imaginário vai suspendendo a força do assédio que dá lugar à sedução, cujo sofrimento é amenizado. Porém, o estado anterior é inalcançável e, ao invés do gozo absoluto, a criança vislumbra a possibilidade de outro gozo, agora na via do simbólico.

• Tempo 3: O simbólico incide sobre o imaginário. A criança se localiza a partir do imaginário da mãe, aliena-se a ela; ambos se tornam unidade. É a posição fálica pela qual cada um representa para o outro o objeto que falta. Não se trata apenas de alívio da tensão. A criança opera o simbólico na medida em que encarna o poder do Outro e o exerce – falo.

 

A Lei: corte de uma relação que não se sustenta (trauma civilizatório)

A relação fálica é condenada, desde o início, ao fracasso, embora necessária enquanto simbólico transitório. Não tarda, essa posição vai se tornando duvidosa para a criança; ela será surpreendida e forçada a se descolar da imagem do Outro. Na medida em que deixa de ser o atrativo primordial para a mãe sua ilusão de completude cai, e, pior ainda, não entende o fato de ser barrada, destituída do poder fálico. A tormenta do Real a atinge outra vez, no tempo 4 – o segundo trauma.

• Tempo 4: Segunda incidência do Real sobre o simbólico; para nós, o trauma civilizatório. Se no tempo 1 a mãe aparece como terceiro, agora é o pai quem faz esse papel; ele surge como intruso que desestabiliza, desalojando a criança da posição fálica. A figura paterna se apresenta como legislador, pai-Real, inassimilável e intransponível. A mãe, por sua parte, confere a legislação:

[...] ela funda o pai como mediador de qualquer coisa que está além dela e de seus caprichos (VORCARO, 1997, p. 116).

Ela se afasta, cada vez mais; volta a gerir sua própria vida, seja pelo trabalho, seja relação com as outras pessoas, seja principalmente pela reaproximação/dedicação ao pai.

Dito melhor, primeiro foi o Outro simbólico na figura da mãe, agora na figura do pai, ambos com efeito de Real. Repete-se a cena traumática de separação (primeiro da condição instintiva, agora do objeto primeiro amor). O pai se impõe como Lei e, na sequência, não deixa de assediar, enquanto separa, nem de portar seu lado sedutor. Antes, no trauma inaugural, a mãe “salvou” a criança do puramente instintivo, agora, no trauma civilizatório, o pai a “salva” do gozo fálico junto a mãe.

Nesse contexto, diz Vorcaro (1997, p. 114), a criança é marcada por terrível angústia,

[...] vivida como o desejo da mãe se exercendo na direção da criança, em sua insaciável voracidade [e que] revela ao sujeito que ele pode perder-se.

Diante da angústia, a criança pode imaginarizar. Ela já o fez em relação à mãe e o fará diante do pai (no tempo 5).

• Tempo 5: O Imaginário incide sobre o Real. A criança procura solucionar o conflito ao imaginarizar o pai como poderoso, grande; não há como detê-lo na sua onipotência. Ela brinca: bandido, policial; bom e mau; monstro, fada; é a lei e transgressão dela. Escuta histórias terríveis, por exemplo, pedindo para que sejam repetidas do mesmo modo, tentativa de saída da realidade traumática. O movimento imaginário produz efeitos, a superação ocorre no tempo 6.

• Tempo 6: Finalmente, o Simbólico incide sobre o Imaginário, causando furo no Real. Toma curso o processo de elaboração de afetos sem representação, a criança opera o simbólico. Para ela o pai deixou de ser apenas privador, ele também protege. Ela assimila sua Lei, vai encontrando o lugar e tempo para cada coisa: mãe, pai; como se portar diante de determinadas situações (onde, quando, como). Torna-se aliada do pai. A estrutura básica da subjetividade se encontra posta.

A Lei dá sentido na medida em que organiza o disperso, a princípio deslizante entre a tensão e o alívio. No âmbito da cultura, o sujeito se vê como um não-todo, castrado. Rocha (2012) apurou que o termo “ castrado” está relacionado, inclusive, ao vocábulo “casto”, aquele que pertence ao clã. “ Cesto” também se inclui na história dessa palavra; o que se encontra nele é puro. Para pertencer à casta, o indivíduo precisa se tornar puro, passar por um ritual, deixando de ser incasto.

No contexto do que estamos examinando, somente com o advento da Lei ele se purifica, torna-se aquele que tem “horror ao incesto, à transgressão de tudo aquilo que se tornava tabu” (ROCHA, 2012, p. 105). Completa o autor, na mesma página:

[...] essa vivência, proveniente de um processo de castração, só ocorrerá se aquele que ocupar a função materna for, efetivamente, um semelhante, isto é, se além de um outro humano for também portador dessa lei que interdita.

Nesses termos, o autor nos apresenta a mãe como coadjuvante na medida em que confere ao outro a função paterna.

A redoma civilizatória exige do vivente tornar-se não inteiro. Criadores de gado costumavam denominar o touro de inteiro, aquele que não sofreu perdas, com poder absoluto sobre as fêmeas, ao passo que o boi castrado (não inteiro) perdeu a força, fez-se dócil e apto a outras funções ao invés de exclusivo reprodutor. Nesse contexto, e do ponto de vista psíquico, o humano é não natural (não inteiro), feito de linguagem; ele aliena-se a um Outro para, na sequência, descolar-se deste e construir sua própria imagem – contínua passagem do eu ideal para o ideal do eu. Sem a experiência traumática (marca da subjetividade) isto não seria possível.

Tornar-se humano, desse modo, não é possível sem a presença do Outro, aquele que desacomoda, rompe a relação harmoniosa e gozante do princípio. O sujeito há de portar a Lei, cuja constatação é: a mãe não foi feita para o filho, nem o filho para ela; impossibilidade de volta ao estado anterior. O pai, como terceiro, faz a mãe sair de cena para, ao mesmo tempo, permanecer na condição de objeto do desejo; do mesmo modo ele, o pai, uma vez simbolizado, desaparece como tal, permanecendo como Lei. Daí em diante, a cada encontro com o outro semelhante (“espelho”) o sujeito é apontado: “você não é isto, não é o que pensa ser”, rompendo-se a constatação sobre si próprio, de até então, possibilitando-o nascer outra pessoa. 

O sujeito se constitui segundo o tecimento de um nó ( borromeano ), a partir de incidências do Real sobre o simbólico. Incidir é cortar, fazer furo, atingir alguma coisa, ocupar um espaço. No , o Real incide duas vezes sobre o Simbólico, ocupando praticamente todo o espaço deste; o Imaginário duas vezes sobre o Real, cobrindo-o com um véu imaginarizado, assim possibilitando o alcance da elaboração simbólica. O Simbólico não incide sobre o Real, ele o faz sobre o Imaginário, também por duas vezes. O que o simbólico pode sobre o Real é indiretamente, pela via do Imaginário. Isto é, o Real não é transformado em simbólico; no Real são feitos furos, apenas. Eis a leitura do Nó borromeano (LACAN, 1975).

 

Considerações finais

O Outro assedia, mas humaniza. O trauma é o ponto de partida,

[...] o que inscreve o sujeito na ordem da linguagem, [e] funda a memória do homem como sujeito falante (MACÊDO, 2014, p. 46).

Na clínica, pacientes em estado de intenso sofrimento, e em vias de superação, retomam um passado marcado por conflitos aterrorizadores cuja origem não se alcança.

Emma tinha reações de pânico, queixa que a fez procurar a análise; no percurso do tratamento se lembra de uma cena aos 12 anos de idade, “cena I”, sendo levada à “cena II”, quando tinha 8 anos (FREUD, [1895-1950] 1969). Para nós, Freud sabia que a origem do trauma de Emma teria elementos anteriores aos oito anos, impossíveis de recordação.

Em outro texto ele afirma,

[...] há um tipo especial de experiências da máxima importância, para a qual lembrança alguma, via de regra, pode ser recuperada (FREUD, [1914] 1969, p. 195).

Seriam os primeiros traumas.

D., da nossa clínica, relatou sobre sua infância. Nutriu fantasia “amorosa” pela professora, depois em relação à cunhada. Ao se deitar para dormir, lhe vinha a tormenta, era envolvido por “uma coisa enorme”, sem forma, insuportável, capaz de engoli-lo (ele disse: “essas palavras não retratam a imagem nem o pavor sentido, não sei dizer como isso funcionava”). A escuta permitiu associar elementos de uma idade ainda mais distante, indícios de situações severamente angustiantes.

Silva (1987, p. 35) anotou resposta de um menino de seis anos frente a IV lâmina do método Rorschach:

[...] parece um gorila grande e feroz (pausa), mas se ele tirar a fantasia é um homem. É um homem fantasiado de gorila.

Eis o conflito edipiano.

Na medida em que o simbólico assedia, ele não apenas humaniza, mas faz elo entre gerações. Somos responsáveis pelos efeitos do trauma (embora não culpados), assim como pelos nossos deslizes, que não são poucos nem brandos. É preciso levar em conta o desejo (LACAN, [1959-1960] 1997). Por um lado, somos marcados pelo trauma; por outro, seus efeitos podem desviar as gerações da direção de uma humanidade refinada (no sentido da canalização pulsional, efeito do trabalho psíquico).

Nossos pais cometeram faltas, escreveu Lacan ([1955] 1985, p. 118),

[...] estou condenado a reproduzi-las porque é preciso que eu retome o discurso que ele me legou, [...] porque não se pára (sic) a cadeia do discurso, e porque estou justamente encarregado de transmiti-lo em sua forma aberrante a outrem.

O trabalho psíquico opera sobre a linguagem, reconfigurando o discurso do Outro na medida em que o tomo como significante e, assim, dou-lhe nova configuração, embora a longo prazo. O sujeito precisa se responsabilizar pelo desejo, posicionando-se, moduladamente, entre a força restritiva da cultura e o imperativo da pulsão, geradores da experiência traumática desde o princípio.

É uma questão ética que devemos retomar.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: esperidiaobneto@gmail.com

Recebido em: 12/11/2019
Aprovado em: 08/12/2019

 

 

SOBRE O AUTOR

Esperidião Barbosa Neto
Doutor em Psicologia Clínica, linha de pesquisa em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise, pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
Mestre em Psicologia Clínica (UNICAP).
Especialista em Filosofia Política, Psicologia Social e Psicopedagogia, todos pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Graduado em Psicologia pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió (CESMAC).
Professor Assistente II da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

 

 

1 Trabalho apresentado no XXIII CONGRESSO DO CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE e da III JORNADA DO CÍRCULO PSICANALÍTICO DO PARÁ, Psicanálise e diversidades: inconsciente, cultura e caminhos pulsionais. Belém (PA), 7-11 nov. 2019.

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