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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.52 Belo Horizonte jul./dez. 2019

 

PAINÉIS E COMUNICAÇÕES SIMULTÂNEAS - TEXTOS COMPLETOS

 

Identidades de gênero, contexto psicossocial e violência: desafios à prática clínica1

 

Gender identities, psychosocial context and violence

 

 

Fernanda Ribeiro de FreitasI, II

I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
II Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nascimento do Grupo de Trabalho de Neo e Transexualidades (GTNTrans) em 2015. Início do trabalho do grupo em agosto de 2016 numa instituição que abrigava indivíduos da comunidade LGBTQI em situação de vulnerabilidade. Necessidade de um setting psicanalítico diverso. Reuniões semanais de 90 minutos com adesão facultativa. Vivências de extremo sofrimento e discriminação precoces no ambiente familiar. Reedição dos traumas devido a precariedade emocional e financeira. Muitos viviam da prostituição. Transexuais longe das alucinações de Schreber. O interesse e a participação dos residentes. Configuração de um tipo de campo ampliado, conceito cunhado por Baranger. Movimento transferência-contratransferência fora do enquadre tradicional. Apropriação da ideia de elasticidade da técnica psicanalítica proposta por Ferenczi. Término do trabalho na instituição em dezembro de 2018 devido a perda do imóvel que ocupava.

Palavras-chave: LGBTIQI, Transexualidades, Grupo, Setting psicanalítico, Campo ampliado, Elasticidade da técnica.


ABSTRACT

Birth of the Neo and Transsexuality Working Group (GTNTrans) in 2015. Beginning of the group's work in August 2016 in an institution that housed individuals from the LGBTQI community in a vulnerable situation. Need for a diverse psychoanalytic setting. Weekly 90-minute meetings with optional membership. Experiences of extreme suffering and early discrimination in the family environment. Reissue of trauma due to emotional and financial precariousness. Many lived on prostitution. Transsexuals away from Schreber's hallucinations. The interest and participation of residents. Configuration of an extended field type, a concept coined by Baranger. Transfer-countertransference movement outside the traditional framework. Appropriation of the idea of elasticity of the psychoanalytic technique proposed by Ferenczi. End of work at the institution in December 2018 due to loss of the property it occupied.

Keywords: LGBTIQI, Transsexuals, Group, Psychoanalytic setting, Expanded field, Elasticity of technique.


 

A confiança em nossas teorias
deve ser apenas uma confiança condicional,
pois num dado caso
talvez se trate da famosa exceção à regra,
ou mesmo da necessidade de modificar
alguma coisa na teoria até então.

FERENCZI, 1927

 

Introdução

Primeiramente, gostaria de agradecer à comissão organizadora do XXII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise – em especial aos colegas do Círculo Psicanalítico do Pará. Têm sido dias de troca intensa e rica com os pares, nesta bela cidade com seu povo acolhedor.

O objetivo do presente trabalho é relatar um pouco da experiência clínica mais impactante e enriquecedora que tive até aqui. Ampliou meus limites de elasticidade técnica e me chamou à responsabilidade pela relação analítica como nunca. Regressão no setting e construção em análise foram vividos de forma aguda. Desde então, os aspectos relativos à intersubjetividade vêm tomando protagonismo em minhas pesquisas teórico-clínicas.

Não foi uma experiência solitária. Em primeiro lugar, foi graças à confiança e ao acolhimento do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro, em especial do Prof. Anchyses Jobim Lopes, cofundador, coordenador geral, defensor feroz e supervisor do GTNTrans – Grupo de Trabalho sobre Neo e Transexualidades do CBP-RJ. Também dos colegas que embarcaram nessa empreitada.

 

O começo de tudo

No início de 2015 alguns de nós – todos ainda psicanalistas candidatos à época – começamos a nos interessar por estudos de gênero a partir de teóricos da psicanálise. Mas abordar o tema dentro da sociedade sempre despertava afetos intensos, impedindo qualquer elaboração mais relevante. Sem um espaço de discussão exclusivo não haveria produção construtiva. Assim, em agosto de 2015 nasceu o GTNTrans. Semanalmente nos reuníamos para discutir teoria. Foi um período frutífero: publicamos artigos, organizamos uma jornada, participamos de congressos e recentemente lançamos um livro.

Ainda assim, não havia demanda clínica nem de longe voltada a questões de identidade de gênero. E era possível entender a razão. Por exemplo, ainda em 2015, todos nós inscrevemos trabalhos num congresso latino-americano de psicanálise. Gênero e sexualidade era um dos subtemas. Para nossa surpresa, ficamos todos na mesma mesa. Ao longo das discussões, vimos colegas deixarem a sala com visível desconforto. Ao final, deu-se uma discussão acalorada – ao mesmo tempo que havia interesse por nossas referências bibliográficas, aparentemente uma novidade para boa parte da audiência.

Se tanta intensidade e uma dose de negação ocorriam entre os pares, era fácil apostar a dificuldade que teriam analisandos LGBTQ – especialmente indivíduos trans.

Em agosto de 2016 fui apresentada a uma instituição que abrigava indivíduos da comunidade LGBTQI em situação de vulnerabilidade. Propus que nosso grupo fizesse visitas semanais à instituição por aproximadamente dois meses para que os residentes tivessem contato com a psicanálise. E depois desse tempo, os interessados escolheriam o profissional de sua preferência para iniciar sua análise individual.

No entanto, o plano não considerava alguns fatores fundamentais: primeiramente, o formato surgiu exatamente no momento da minha conversa com a direção da instituição. O encontro não fora planejado e não houve tempo hábil para entrar em contato com os demais integrantes do grupo de trabalho. Não havia garantias de que os profissionais aceitariam a proposta nem de que seria algo factível. Sua execução implicaria uma enorme flexibilidade de nossa parte em relação ao enquadre psicanalítico. Felizmente, o grupo de trabalho recebeu a novidade de braços abertos.

Foi impressionante a disponibilidade de todos. Algo bastante análogo ao que Luís Claudio Figueiredo (2003) denomina “contratransferência primordial”: a aceitação do paciente em análise, a disponibilidade para se tornar suporte da transferência – o que acontece sempre que um analista aceita um novo analisando. Só que, neste caso, especificamente, tanto paciente quanto setting, quanto enquadre demandavam uma boa dose de criatividade e flexibilidade dos profissionais. Pode-se dizer que foi uma experiência de contratransferência “mais-que-primordial”.

No primeiro encontro entre o grupo de trabalho e os residentes, alguns elementos se destacaram: a reiteração constante da diferenciação entre o grupo como unidade e os seus participantes individualmente. Ao mesmo tempo, a preferência inicial da maioria por encontros coletivos. Além disso, a situação financeira extremamente precária impossibilitaria atendimento em consultórios particulares mesmo que as sessões não fossem cobradas.

Alguns deles já faziam atendimento psicológico individual, mas eram encontros mensais que dependiam de sua disponibilidade financeira para deslocamento, por isso não era possível manter a regularidade de sessões. Também ficaram perceptíveis as questões concernentes ao uso de drogas. Uma parcela do grupo é constituída por analfabetos funcionais.

Talvez pela curiosidade, o primeiro contato contou com a participação da maioria dos residentes e foi repleto de acolhimento. A proposta era proporcionar uma experiência de escuta sem juízos de valor, sem impressões preestabelecidas. Falando, eles poderiam ouvir a si mesmos e, consequentemente, organizar seus pensamentos, nomear seus sentimentos e elaborar afetos que talvez dificultassem seus relacionamentos interpessoais.

Nesse mesmo encontro, ficou estabelecido que as reuniões aconteceriam uma vez por semana e durariam 90 minutos com adesão facultativa.

O abrigo contava com 30 residentes, em média. As portas estavam sempre abertas, e ninguém era proibido de entrar ou obrigado a sair. Sendo assim, a população do local contava com um percentual de residentes fixos e outros eventuais. As razões para estadias curtas eram as mais diversas. Por exemplo, fuga de um relacionamento abusivo, proteção contra ameaças de desafetos, hospedagem durante a espera de cirurgias de adequação de gênero para pacientes vindos de outros estados. O mesmo ocorria com os residentes fixos: primeira experiência de algo parecido com um lar, identificação com os pares, admiração pela fundadora.

O que residentes fixos e eventuais tinham em comum? Vivências de extremo sofrimento e discriminação, que começavam muito cedo, no ambiente familiar. Seus traumas eram reeditados constantemente em virtude da precariedade emocional e financeira. Muitos viviam da prostituição. Ainda que não haja nada de errado ou condenável nisso, o cotidiano da profissão é permeado por situações de humilhação, descaso, abuso físico e emocional.

As idades variavam bastante. A residente mais nova com quem tivemos contato era uma adolescente de 14 anos. As mais velhas tinham aproximadamente 35, 40 anos. Talvez por uma realidade estatística, talvez por uma percepção do desamparo, que colocava a morte como uma possibilidade muito real e próxima, as pessoas com mais de 30 anos costumavam se descrever como pessoas muito velhas. “Travesti morre cedo”, era uma afirmação frequente.

 

Os encontros

Quanto aos profissionais, em maior ou menor proporção, todos fomos convocados a lidar com nossos fantasmas internos, nossas preconcepções – tanto sobre a vida cotidiana quanto sobre a prática clínica. A extrema precariedade do ambiente, refletida nos residentes tornava a experiência bem mais desafiadora. Dito de outra forma, apesar de a psicanálise estar muito mais difundida na contemporaneidade, ela permanece privilégio de quem tem possibilidades financeiras. Mesmo que o advento da clínica social tenha aproximado os profissionais às classes menos favorecidas, esse público ainda tem casa, alguma fonte de renda e o mínimo de educação formal. No entanto, a elaboração psíquica, o espaço de escuta e a ajuda ao indivíduo na descoberta do próprio desejo não podem nem devem ser privilégio de poucos. Mas como proceder, face a tamanha carência de recursos – não só dos analisandos? À época não encontrávamos suporte teórico-clínico que desse conta da demanda que se nos apresentava.

Eliana Borges Pereira Leite (2005) faz uma analogia entre os ofícios do ator e do analista. Enquanto o ator busca elementos em sua memória emocional para dar corpo e vida ao personagem criado pelo autor, o psicanalista tem sua memória, sua imaginação e seus pensamentos inconscientes afetados pela fala do analisando. Oferecer um recolhimento de sentido, como propõe Ferenczi, torna-se ainda mais desafiador quando o analista tem pouco repertório interno sobre a precariedade e as intensas experiências de abandono. Em retrospecto, minha aposta é de que essa experiência só foi possível porque havia uma rede de sentido, porque operávamos como um grupo muito sólido, ainda que respeitando as singularidades de cada profissional.

Nos primeiros meses, não era raro que no horário marcado todos ainda estivessem dormindo ou não se lembrassem quem eram os analistas: Seriam integrantes de alguma igreja? Partido político? Sindicato? Quando nos reconheciam e estavam acordados, muitas vezes resistiam a participar.

Como qualquer analisando, eles precisavam testar os limites do abandono e da sobrevivência do objeto. Além disso, não pedíamos nada em troca. Não cobrávamos pelo nosso tempo, não exigíamos atenção – apenas permanecíamos disponíveis, semanalmente no mesmo horário.

Vale lembrar que no cotidiano da maioria daqueles analisandos, afeto, em geral era reconhecido pelo tamanho da compensação financeira. O indivíduo vale quanto custa – seja um serviço prestado ou um presente. Muitos trabalhavam na prostituição e não havia nada mais ofensivo do que a negociação com os clientes. Se um programa custasse R$ 40,00 e a profissional aceitasse trabalhar por R$ 20,00, a desvalorização monetária era normalmente percebida como desvalorização, degradação pessoal.

Nós também tivemos que aprender a acolher analisandos entorpecidos – seja por álcool, seja por drogas. Aquele nível de sofrimento talvez não pudesse ser acessado, ao menos inicialmente, de outra forma.

Sendo assim, contar com analistas que oferecem ritmo, confiabilidade, não impõem nenhuma interação e ainda não cobram pelos seus serviços mostrou-se uma enorme mudança de paradigma para aquele grupo.

Quatro integrantes do grupo de trabalho se dispuseram a atender semanalmente no abrigo. Logo após as sessões, era realizada uma supervisão coletiva exclusiva para o GTNTrans com todos os integrantes. A atividade era coordenada pelo Prof. Anchyses, que atendeu no abrigo algumas vezes. Foi importante contar com um supervisor que sabia exatamente como se configurava o ambiente, que conhecia as instalações e a dinâmica dos residentes, mas que não participava periodicamente das sessões. Essta experiência é permeada de peculiaridades, de dinâmicas muito distantes da classe média, majoritária branca e cisgênero. O setting não é aquele conhecido por psicanalistas: uma sala onde o analisando vai até o analista, com duas poltronas, um divã e possivelmente uma sala de espera. Ao supervisor deste trabalho era necessária uma visualização mais concreta da experiência. Por outro lado, não participar do atendimento semanal proporcionava o distanciamento necessário à supervisão para uma escuta à posteriori.

Na fala dos analisandos não comparecia o discurso estereotipado do transexual difundido pelo senso comum. Havia indivíduos mais ou menos integrados psiquicamente, que experimentam sofrimento extremo, sentem e, em sua maioria, ainda não entraram em contato com o próprio desejo. Essa fala mais honesta e subjetivada pode ser atribuída ao fato de perceberem a disponibilidade de escuta dos analistas. Um dos analisandos chegou a expressar que conosco não se sentia num zoológico, numa vitrine – sentimento frequente nas interações com visitantes do abrigo interessados em ajudar, mas que não percebiam os residentes como indivíduos inteiros.

Muito longe das alucinações de Schreber, alguns almejavam a cirurgia de adequação genital, outros diziam preferir manter a genitália de nascimento porque é fonte de prazer. Havia também aqueles que rejeitavam a própria genitália, mas não sabiam o que fazer a esse respeito. Todos com quem tivemos contato se mostravam conscientes de sua anatomia original.

Quanto à organização psíquica, tudo era muito familiar e análogo aos nossos analisandos de classe média com suas patologias neonarcísicas. Com poucas exceções, eles pareciam ter tido um ambiente suficientemente bom no começo da vida. O que os diferencia? Dificuldades inimagináveis, total desamparo e, acima de tudo, ao longo da vida não foram autorizados a reconhecer sua própria dor.

No último ano, com a chegada de dois novos analistas, decidimos nos dividir em dois grupos, e cada trio atendia quinzenalmente. No entanto, as supervisões semanais com todos os analistas permaneceram. Logo percebemos que alguns analisandos começavam a sessão de onde haviam parado na semana anterior, mesmo que com um analista diferente. Inconscientemente eles sabiam que os profissionais se comunicavam, trocavam percepções e relatos das sessões.

Vimos se configurar uma espécie de campo ampliado.2 Conceito cunhado por Baranger (1961, 2010), o campo abarca toda a situação analítica, incluindo o setting e as regras; a compreensão recai nas fantasias inconscientes do par analista-analisando, estruturado a partir de duas vidas mentais e identificações projetivas cruzadas. Em sua contribuição sobre o mesmo conceito, Ferro (1995) afirma que o analista seria capaz de acolher e transformar as identificações projetivas de seus analisandos.

Na experiência descrita no presente artigo, o campo do analista foi ampliado, incluindo todos os analistas autorizados por determinado analisando a acolher e transformar suas identificações projetivas. Não é um processo consciente muito menos perceptível, mas amplia os limites da escuta e sugere que o que conhecemos como setting possa ser ampliado também.

Corrobora a percepção de um campo ampliado o fato de que, diferentemente do que ocorre muitas vezes na relação analítica, aqueles analisandos demonstravam pouco interesse sobre a vida pessoal dos analistas. Era comum não usarem nosso nome. Éramos, em geral, “o pessoal, a menina, o rapaz da psicanálise”.

A preferência por um ou outro profissional só ficou explícita no último ano de trabalho. Alguns deles fizeram visitas pontuais ao nosso consultório; outros continuaram o trabalho de escuta de forma remota, depois do encerramento das atividades coletivas. O que todas as sessões em consultório têm em comum foi o fato de aqueles indivíduos não estarem residindo no abrigo na época. Isso indica o quão importante era a experiência de escuta para alguns deles.

Pessoalmente, recebi um residente com quem já convivia há pouco mais de um ano. Prestes a mudar de cidade, ele solicitou uma sessão. Por aproximadamente uma hora ele descreveu vivências e fez elaborações que nós havíamos discutido anteriormente. Era claro o movimento de fechar um ciclo antes do recomeço iminente. No abrigo, ainda que preservando a assimetria necessária à relação analítica, havíamos experimentado todas as possibilidades de elasticidade da técnica. Mas naquela sessão individual a demanda era de enquadre. E estiveram presentes todos os elementos e discussões de uma sessão de encerramento. A posteriori, ficou bem clara a importância daquele encontro tanto para o analisando quanto para a analista.

É comum, depois desta descrição, que perguntem se o que fazíamos era psicanálise.

Bom, nunca é demais lembrar que, em suas Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, Freud ([1912] 1976) não descreve a psicanálise pelo que ela é, mas justamente pelo que não é. Não há um manual de instruções, um checklist . E assim como as formas de satisfação pulsional se modificam em relação ao tempo histórico e a uma determinada cultura, a técnica psicanalítica, desde seus primórdios, vem mostrando sua plasticidade.

Em Elasticidade da técnica psicanalítica, Sándor Ferenczi ([1928] 1992) propõe que o analista seja catalizador de novas significações, mas ainda numa relação assimétrica, a fim de garantir a ética psicanalítica. Analisando e analista trabalham juntos, mas em posições distintas, garantindo a realização do trabalho.

E foi exatamente assim na experiência aqui descrita. Mesmo quanto ao setting. Os analistas iam até os analisandos, é verdade. Mas considerando-se os obstáculos que indivíduos tão marginalizados teriam que enfrentar para chegar a um consultório tradicional, ainda que fossem pagos para isso, não seria esta a única maneira de proporcionar a experiência analítica àquele grupo?

Convido o leitor a imaginar a seguinte cena: uma trans mulher pobre, com roupas velhas, sujas e curtas, no transporte público durante o horário comercial. Depois ela segue em direção a um prédio comercial de classe média para realizar sua sessão de análise. Ela realmente conseguiria acessar o prédio? O acesso seria negado com respeito ou rispidez – ou mesmo palavras ofensivas? Não é só o risco de assédio moral. Os riscos à integridade física são altos também.

Um dos residentes já expressou que fica na janela observando a vida, aqui compreendida como a rotina normal de pessoas que circulam livremente pelos espaços públicos sem ser notadas ou estigmatizadas.

Um segundo questionamento: não seria a troca financeira essencial para a relação analítica? É verdade, mas num contexto de tamanha precariedade, talvez a maior demonstração possível de comprometimento fosse a presença deles nas sessões.

Além do mais, para alguém tão acostumado a relações em que o dinheiro é peça central, relacionar-se e comprometer-se sem pagamentos ou valores monetários envolvidos, essa seria uma excelente oportunidade de valorização para além do dinheiro: Meu valor não tem preço; eu valho porque SOU, porque EXISTO e SOU VISTO.

E quanto ao movimento transferência-contratransferência? Seria possível fora do enquadre tradicional? Lembrando Ferenczi (1909), transferência é o fenômeno psicanalítico por excelência, muito comum, que se encontra na base de toda relação humana. A transferência não compareceu em todos os residentes, experiência análoga na clínica tradicional.

Como citado anteriormente, muitas vezes os analistas percebiam a transferência, não específica a um analista, mas se apresentando em direção a um bloco, uma ampla entidade. Esse fenômeno nos chamava ainda mais à responsabilidade: como manejar contratransferência?

Como sinaliza Pinheiro (2016), o que precisa vir primeiro é a contratransferência. Eu não posso me apoiar a uma parede, se não houver uma parede. O analisando não pode se entregar à própria vulnerabilidade, às fantasias, se não houver um analista pronto a sustentar a relação.

Também já fui questionada quanto ao que realmente contribuímos num grupo tão precário. Nós oferecíamos a escuta a partir de um universo bastante desconhecido. E esse choque cultural e socioeconômico propicia a abertura de novas possibilidades tanto subjetivas quanto concretas. Utilizar o analista como um espelho pode operar mudanças bastante significativas. Eles podiam, na regressão em análise, experimentar o SER antes do FAZER.

Estatísticas (ainda imprecisas, devido ao enorme índice de subnotificações e resistência das autoridades em nomear corretamente os crimes), indicam que somos o país que mais mata transexuais no mundo. A formalização da identidade de gênero transexual está mais fácil, mas não é simples. Muitos desses indivíduos permanecem com seu nome de batismo. Outros, por terem sido expulsos muito cedo de casa ou terem vivido nas ruas, nem possuem documentação. Aqui falamos de indigentes.

Por exemplo, uma das residentes foi expulsa de casa aos 14 anos de idade, porque não conseguia mais esconder sua real expressão de gênero. Seria de esperado de alguém tão jovem, lidando com angústias impensáveis, que se lembrasse de levar consigo a certidão de nascimento?

 

O encerramento do trabalho

O trabalho se encerrou em dezembro de 2018. O abrigo funcionava numa ocupação irregular e, depois de anos de ameaças, o grupo foi despejado. Todos já estavam cientes da ordem judicial, mas foram tantas ao longo dos anos, que nem residentes nem analistas levavam a sério as notificações. Por isso, eu e um colega fomos testemunhas das últimas horas daquele grupo com algum endereço fixo.

Ao chegarmos ao prédio, avistamos por volta de 30 residentes na calçada, com seus pouquíssimos pertences. Não tinham para onde ir nem como pagar o transporte dos móveis e das bolsas. Por ética profissional ou por maciça contratransferência, permanecemos com eles durante 90 minutos, escutando, trocando, como se ainda estivéssemos dentro do edifício.

Eventualmente recebemos notícias de algum residente. Um telefonema, uma mensagem de texto. São eventos pontuais, mas que o grupo faz questão de compartilhar.

Há pouco tempo, encontrei uma das residentes em um evento público. Eu rapidamente fui levada por ela a uma área mais reservada, e ela falou como se nunca tivéssemos nos afastado. Quando eu me surpreendia com as novidades de algum residente, ela demonstrava espanto: “Como ninguém te disse isso? Como você não sabia?”. Então percebi que o analista havia sido introjetado. Não especificamente eu, a analista. Mas aquele bloco único de escuta que ofereceu aos residentes a oportunidade de escutar a si mesmos e validar a própria dor.

 

Considerações finais

Identidade de gênero não define a subjetividade, não é o único portador de problemas ou soluções. Esse aspecto só terá relevância na medida em que nós, psicanalistas cisgêneros, não entramos em contato com nossos próprios fantasmas, não aprofundamos a nossa análise pessoal.

Em seu Manuscrito de 1931, Freud ([1931] 2017) lembra que todos os seres humanos são bissexuais – possuem elementos masculinos e femininos. Não somente seus aspectos psicológicos, mas também fisiologicamente. Homens e mulheres possuem os mesmos órgãos sexuais – o que os difere é a extensão do desenvolvimento e a alteração ou perda de função. E vai além: masculino e feminino (atividade e passividade) são expressões que começam a surgir com as primeiras relações objetais. Mas masculinidade anatômica e masculinidade psicológica com frequência não se apresentam juntas. No entanto, como isso ocorre, não sabemos. Afinal, a psicologia deve apenas aceitar esses fatos, não explicá-los.

Ontem, aqui no congresso, falou-se que o governo silencia vozes. É verdade. Mas o analista também tem esse poder. Ele também pode reeditar traumas.

Para encerrar, compartilho aqui uma conversa-consulta em grupo de RH, numa rede social profissional:

Uma dúvida, uma funcionária mulher que optou em ser um homem trans conseguiu na justiça a mudança de sexo nos documentos de feminino para masculino, porém agora está grávida. O que fazer, pois a licença-maternidade é um direito das mulheres e não dos homens?

Aqui testemunhamos os desafios de um indivíduo transexual que tem emprego fixo, acesso a documentação e direitos civis. A consulta, ainda que denuncie falta de conhecimento do colaborador do RH, é legítima e demonstra interesse em ajudar.

Respondendo a esses questionamentos, esclarecemos:

• A mulher não optou por ser um homem. O homem apenas adequou sua identidade de gênero, que não estava em sintonia com o sexo biológico designado no nascimento.

• O funcionário em questão não está “grávida”, está gestando um bebê. Ser capaz de gestar um filho não é prerrogativa do gênero feminino, mas de qualquer indivíduo que possua útero, ovários e trompas em plenas funções.

• Sendo assim, licença-maternidade, é privilégio não da mãe, mas de quem deu à luz.

A boa notícia é que o mundo está em constante transformação e que há uma demanda enorme por uma escuta empática e disposta a aprender. Não é privilégio da contemporaneidade e há uma infinidade de fontes bibliográficas à nossa disposição.

 

Referências

BARANGER, W.; BARANGER, M. A situação analítica como um campo dinâmico (1961-1962). In: Controvérsias a respeito do enactment e outros trabalhos. Livro Anual de Psicanálise, Tomo XXIV. São Paulo: Escuta, 2010. p. 165-212.         [ Links ]

FERENCZI, S. Elasticidade da técnica psicanalítica (1928). São Paulo: WMF Martins Fontes, 1992. p. 25-36. (Obras completas, v.4).         [ Links ]

FERRO, A. A técnica na psicanálise infantil: a criança e o analista: da relação ao campo emocional. Rio de Janeiro: Imago, 1995. p. 35-42.         [ Links ]

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LEITE, E. B. P. A escuta e o corpo do analista. 2005. 203 f. Tese (Doutorado em Psicologia) - Instituto de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
E-mail: fernandafreitas.psi@gmail.com

Recebido em: 12/11/2019
Aprovado em: 08/12/2019

 

 

SOBRE A AUTORA

Fernanda Ribeiro de Freitas
Licenciada em Letras: Português/Francês pela UERJ.
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Participante do Grupo de Trabalho sobre Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ.
Membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi (GBPSF).

 

 

1 Trabalho apresentado no Painel 6: Sexualidades e mudanças discursivas do XXIII Congresso Do Círculo Brasileiro De Psicanálise e da III Jornada Do Círculo Psicanalítico Do Pará , Psicanálise e diversidades: inconsciente, cultura e caminhos pulsionais. Belém (PA), 7-11 nov. 2019.
2 Não confundir com o conceito de campo expandido nas artes plásticas (KRAUSS, 1978).

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