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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.52 Belo Horizonte July/Dec. 2019

 

PAINÉIS E COMUNICAÇÕES SIMULTÂNEAS - TEXTOS COMPLETOS

 

A escuta nas instituições e possíveis consequências psíquicas para o psicanalista1

 

Listening in institutions and possible psychics consequences for the psychoanalyst

 

 

Stetina Trani de Meneses DacorsoI, II

I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
II Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A organização/instituição se tornou objeto de estudo da psicanálise quando psicanalistas ultrapassaram as paredes dos consultórios e as sociedades de psicanálise passando a fazer parte de diversos espaços institucionais. Muito se produziu sobre o inconsciente institucional e as relações nas instituições, incluindo as consequências nos atores institucionais. Este artigo é uma análise e um questionamento sobre as possíveis consequências psíquicas para aquele que escuta o indizível nos espaços extramuros da psicanálise.

Palavras-chave: Instituição, Escuta institucional, Inconsciente institucional, Psicanalista.


ABSTRACT

The organization/institution became the object of study of psychoanalysis when psychoanalysts went beyond the walls of psychoanalysis offices and societies and became part of several institution spaces. Much has been produced about the institutional unconscious and relations in institutions, including the consequences for institutional actors. This article is a questioning of possible psychic consequences for those who hear the unspeakable in the extramural spaces of psychoanalysis.

Keywords: Institution, Institutional listening, Institutional unconscious, Psychoanalyst.


 

Introdução

A psicanálise se estendeu para o além muro, fazendo-se presente em vários estabelecimentos/ instituições. Psicanalistas ultrapassaram os espaços dos consultórios e exercem seu oficio em outras instituições, inclusive em funções não condizentes com sua especificidade.

Antes de continuarmos, faz-se necessário esclarecer que, no início do estudo de intervenção nos estabelecimentos, ocorria uma distinção entre estabelecimento/grupo e instituição. Instituição era o lugar do inconsciente no grupo com a rede imaginária de relações e com um sistema de significantes que regulam a vida social e seu funcionamento. E organização/estabelecimento – às vezes também chamados de grupos – são as concretudes oriundas da instituição que reúne pessoas em torno de um objetivo (LAPASSADE, 1983).

Aqui utilizaremos o termo “instituição” como sinônimo de “estabelecimento”, que é onde as relações entre sujeitos se passam. Vamos pensar, neste artigo, na instituição como o espaço onde

[...] psicanalistas trabalham, de maneira permanente ou parcial, onde tratam, ensinam, dirigem, clinicam; fundam instituições e exercem funções hierárquicas, políticas, econômicas ou todas juntas (KÄES, 1991, p. XV).

Nas últimas décadas, a produção de saberes psi cresceu unida a discussões sobre intervenções na chamada nova clínica e com demandas dos vários espaços do coletivo, que geralmente são institucionais.

Nosso olhar vai para as instituições cujo objetivo é ligado ao humano e não a objetos concretos. Ali a produção material é que recebe o impacto das consequências das relações humanas. Nas outras instituições voltadas para objetivos humanos, como educação, saúde, lazer, religião, tudo vai se concentrar na produção das relações entre as pessoas, entre pessoas e suas relações com a instituição e até na produção dos próprios sujeitos que a compõem.

O psicanalista se encontra nos dois tipos de instituição. O olhar purista do psicanalista nas sociedades psicanalíticas e na clínica ficou restrito num mundo globalizado com planos de saúde, aumento de centros universitários e o crescimento das várias linhas de abordagens terapêuticas. A exigência de estudo e aperfeiçoamento aumentou na mesma proporção. Assim, devemos pensar no efeito de anos de exercício da psicanálise (na clínica e em outras instituições) e no psicanalista.

Todos esses exercícios implicam submissão a regras institucionais. Não há sociedade sem um sistema de repressão do coletivo, sem sistema de parentesco, de regras de aliança e filiação. A Lei vai cobrar de cada membro do grupo a ordem social que foi imposta não por um mas pela união de irmãos, procurando proteger todos da maldade de um ou pelo menos tentar. Temos conhecimento e vivências de que cultura ética e justiça não são compatíveis.

 

Escutando a história...

Em Psicologia das massas e a análise do eu, Freud ([1918] 1996) pontua que toda psicologia é antes de tudo uma psicologia social: há sempre um outro, inclusive um outro interno. Este texto, assim como outros textos culturais, nos legou, ao longo do tempo, uma vasta produção sobre instituições.

Após IIGG, precisando atender um número grande de pessoas e com a consequente crise financeira, há o desenvolvimento e o aprimoramento das bases teóricas para a terapia de grupo. Além de teóricos das várias linhas, existe uma grande contribuição da psicanálise. Paralelamente, crescia a dinâmica de grupo com trabalhos em pesquisa ativa e que também utilizava da psicanálise no que já existia de teorias sobre grupo.

A crescente e desordenada industrialização das sociedades iniciada no final do século XIX produzia seus efeitos ou consequências: acidentes de trabalho, alta rotatividade de funcionários e obviamente baixa produção. Após várias pesquisas e experimentos, Elton Mayo (LAPASSADE, 1983) instala um tempo para lanche quando os funcionários conversam entre si e sobre sua vida. Consequentemente, a produtividade aumenta, e percebe-se que a relação entre pessoas no local de trabalho tem seu peso no todo da organização.

Para aqueles que trabalhavam nas organizações era uma novidade o comprometimento emocional e psíquico dos trabalhadores, não era apenas uma questão de emprego/salário. Como consequência dos trabalhos de Elton Mayo (LAPASSADE, 1983), recorre-se a um saber que se desenvolvia paralelamente: o estudo de grupos.

A dinâmica de grupo se instala nas instituições como possibilidade de maximizar as relações, melhorar os conflitos, diminuir a alta rotatividade e, obviamente, aumentar a produção como consequência dos itens anteriores. Os experts das relações humanas e do social são solicitados a contribuir para um melhor funcionamento das organizações/instituições.

A dinâmica de grupo passa a ser utilizada de modo contínuo, porém as consequências das tentativas de harmonizar a qualquer preço as relações em seu interior – sem sucesso, diga-se de passagem – deram origem ao estudo sobre as relações humanas nas organizações e os efeitos nos psiquismos dos atores institucionais.

Não é possível pressionar para uma boa convivência ignorando os conflitos entre os atores institucionais, o desânimo e a frustração em relação à organização/instituição, as formas de gestão e o modo como afetam as relações e as características individuais. Hoje há estudos riquíssimos sobre as doenças do trabalho, que foram se especializando e chegando a pesquisas sobre as doenças específicas de determinados ofícios.

A crise da modernidade e da globalização do capital interferiu não só nas organizações de produção como também nas de saúde mental, educação, academias, sociedades de psicanálise. Nenhuma ficou a salvo! Convocou pensadores a encontrar uma forma de intervenção que minimizasse os efeitos de metas a serem cumpridas, do ganho de capital globalizado e mesmo manter vivas várias instituições. Isso aconteceu com muitas organizações nos vários setores da sociedade provocando mudanças em seu regimento e seu estatuto.

Dessa forma, o institucionalismo foi surgindo por compreender que estar numa instituição não deixa ninguém indiferente nem imune. Poder e saber andam de braços dados. Quanto maior o acúmulo de saber, maior o monopólio do poder, e dentro das instituições vão se estabelecer classes executivas e burocráticas. Os saberes de outros grupos são desvalorizados e impedidos de se mostrar por verdades estabelecidas e valores exagerados. A dissociação entre saberes provoca desvalorização de outros saberes, paralisando produtividades e desejos.

O institucionalismo foi se fortalecendo em vários setores da sociedade, à medida que se percebia que ficamos afetados pelas relações pessoais que ocorrem no interior das organizações/instituições. Afetados por suas Leis, por sua burocratização, por seus objetivos explícitos e implícitos, por sua história passada e presente e até por seu espaço físico.

É óbvio que em tudo está inscrito o inconsciente institucional, termo cunhado por psicanalistas que passaram a escutar as instituições. As paredes falam, os ghosts andam pé ante pé assustando e sussurrando; a história oral, passada de boca em boca, cria representações sobre as relações, os objetivos e as pessoas.

O institucionalismo é uma abordagem sem um mestre. Vários teóricos contribuíram para o seu surgimento nos setores de produção, saúde e educação, nos legando diferentes formas de leituras e intervenções nas organizações/instituições.

É praticamente impossível enumerar todos. Mas, para se ter uma ideia das influências nos vários pensares do institucionalismo, levantemos alguns nomes sem fazer distinção entre escolas ou discorrer sobre a fecundidade de seu pensamento:

• Sigmund Freud, inicial e fundamental, e seus textos culturais;
• crítica da moral judaico-cristã e meditação sobre o poder:
• Sartre, Marcuse, Reich, Lacan, Foucault, Mannoni, Althusser;
• trabalho e relações humanas: Taylor, Elton Mayo;
• culturalismo: Malinowski, Fromm;
• psicanalistas kleinianos: Bion, Elliot Jacques;
• os freudomarxistas argentinos: Pichon, Revière e Blerger.

E para não ficar mais exaustivo: Lévi-Strauss, Derrida, Barthes, Pestalozzi; Laing e Cooper; Castel, Baudrillard; Lapassade e Lourau; Gauffman; Rene Kaes e Rodrigués.

E os brasileiros: Gilberto Velho, Célio Garcia, Jurandir Freire Costa; Guilhon Albuquerque, Paulo Freire, Marlene Guirado, Gregório Baremblit.

Sinto que estou deixando de lado teóricos e pensadores importantes, E provavelmente estou. mas a intenção é expor a riqueza de influências no que nomeamos de ‘institucionalismo' e a posteriori ‘análise institucional', abarcando a intervenção em todo tipo de organização: humana e de produção.

A psicanálise foi ocupando um espaço cada vez maior através da inserção dos psicanalistas nas instituições. E passamos a ter leituras instigantes a esse respeito.

 

Psicanálise e instituições

Mesmo no tempo mais sombrio
temos o direito de esperar alguma iluminação,
e que tal iluminação pode bem provir,
menos das teorias e conceitos,
e mais da luz incerta, bruxuleante frequentemente fraca
que alguns homens e mulheres,
nas suas vidas e obras,
farão brilhar em quase todas as circunstancias
e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra.

ARENDT, 1968.

A ocupação de vários espaços pelos psicanalistas instigou a produção de trabalhos:

• discussões sobre a possibilidade de transmissão da psicanálise nas instituições acadêmicas;
• atuação e intervenção de psicanalistas em instituições de saúde mental, escolas e tantas outras;
• criação das sociedades de psicanálise;
• presença de psicanalistas em todos os tipos de instituições como atores institucionais.

Cada um desses lugares nos fornecem material especifico para estudo. Na produção de análise institucional, temos pares que escreveram sobre cada uma das questões que levantamos.

Quando os psicanalistas ultrapassaram os muros das sociedades e consultórios, consideramos que um dos primeiros espaços a ser ocupado foi o das instituições de ensino. A presença de psicanalistas na academia tem produzido textos e polêmicas.

Por mais que professores tenham que seguir suas ementas e que as disciplinas ministradas não estejam diretamente ligadas à psicanálise como teoria e/ou clínica psicanalítica e/ou supervisão clínica, esse profissional inevitavelmente usará em sua transmissão o suporte teórico que o sustenta.

Partindo dessa premissa temos discussões entre os que acreditam não ser possível essa transmissão na academia e aqueles que apostam nessa possibilidade. Os que questionam essa transmissão o fazem esclarecendo que as regras institucionais comprimem o discurso no lugar do universitário e do mestre.

O mestre endereça o saber ao discípulo considerando-o um receptáculo vazio. E a avaliação é o guarda de honra da transmissão. Quando a avaliação traz bons resultados, significa que o processo de transmissão foi total (LOLLO, 2013, p. 15).

Essa situação, típica e característica do mundo acadêmico, dificulta a emergência do sujeito e seu desejo. Segundo Lollo (2013, p. 16), a retórica de Lacan tinha como objetivo não ser inteira, ser obscura, provocar interrupções através de jogos de palavras, silêncios, digressões e tantos outros elementos para fragmentar o discurso e emergir o sujeito desejante, curioso.

Para Lollo (2013), ensinar a aprender é da ordem do singular: alguém se dirige a um outro que, ao receber, dará um destino ao que foi dito. Toda transmissão é singular assim como também para o receptor. Só há transmissão na presença da escuta do outro. Escuta que é do receptor que a posteriori produz um novo saber.

Ora, acredito que só se está disponível a essa escuta se aquele que transmite estiver recoberto do sentimento da transferência endereçado pelo receptor. Assim, o psicanalista na universidade, se não em grande porcentagem, mas numa boa medida é capaz de possibilitar esse tipo de situação. A transmissão da psicanálise no meio acadêmico está submetida às regras organizacionais (como nas sociedades) não há como fugir a isso.

Contudo, a transferência – base para o trabalho clínico e instalação de um analista – é que vai levar alunos aos grupos de supervisão, palestras, grupos de estudos na academia. Após a graduação, muitos vêm até as sociedades às quais estamos ligados para fazer sua formação, instalando o novo em nossos espaços. Os jovens da academia vão procurando as sociedades e as mantendo vivas e dinâmicas! (FREUD, [1913] 1996).

Muitas das atividades de nossas sociedades psicanalíticas são feitas no espaço acadêmico. Incentivamos as pesquisas que encontram colegas dispostos a realizá-las. Não estamos deixando de lado a distinção entre clínico e acadêmico. São duas formações distintas com produções distintas.

Assim, talvez seja preciso rever muito do que se escreve sobre a transmissão da psicanálise na academia. O psicanalista no espaço acadêmico produziu muitas pesquisas e análises, frequentou congressos e se relacionou com pares, produzindo o enriquecimento da teoria psicanalítica. Ao desejo de transmitir se une a demanda de admiração e reconhecimento dos outros atores institucionais.

Retomando o histórico da presença/atuação da psicanálise nas instituições, constata-se que a queda do patriarcado e a consequente interpelação de qualquer autoridade nos levam a questionar como garantir autoridade numa sociedade/cultura não mais hierárquica. Há um esgotamento dos discursos de legitimação que interfere nas relações institucionais.

Em nossos tempos sombrios, as instituições, mais do que nunca, demandam “ser analisadas”, um pedido tanto explícito quanto implícito, de ouvir o “não dito”, e nós, felizmente ou infelizmente, é que escutamos. Vamos caminhar um pouco com alguns deles.

Nos vários teóricos sobre a leitura da instituição, o mais didático foi José Bleger (1992), psicanalista argentino que, identificado com a leitura da escola inglesa, utilizou alguns conceitos para a apreensão:

• Instituído: As leis institucionais, seu regimento, os direitos e deveres dos atores institucionais, isto é, de todos os que têm uma permanência na instituição desempenhando uma função para seu funcionamento.
• Instituinte: Não lei, transgressão do instituído. Pode levar tanto ao crescimento quanto a destruição. Depende da singularidade de cada uma das instituições e de como os grupos instituintes atuam.
• Transversalidade: O efeito das leis, das decisões e das ocorrências do mundo externo nas organizações.
• Encomenda e demanda: Encomenda se refere à solicitação do staff institucional a profissionais para que algo que está ocorrendo seja resolvido; demanda é o desejo institucional que vai surgir deformado.

Valendo-se da teoria de Elliot Jacques e estendendo-a à instituição, Bleger (1992) analisa que, se o instituído é claro, mantém encapsuladas as condutas regressivas dentro da instituição, o núcleo aglutinado.

Se não o é, vão se manifestar condutas regressivas, como excesso de licenças médicas, acidentes de trabalho, quebra de patrimônios, interpretação de sinais do não verbal, angústias excessivas e sentimentos de aniquilamento, apatia que pode levar à morte institucional – conceituada como a indiferença com os objetivos e ideais institucionais.

Não há uma instituição ‘ideal'. Todas apresentam seus núcleos regressivos, porém, quanto maiores esses focos, mais patologias temos nesses espaços. A soma do instituído com instituinte resultará na institucionalização, que é um processo singular de cada instituição, porque promove o que podemos nomear de clima institucional, inconsciente institucional, linguagem da instituição.

Para Bleger (1992), o interventor psicanalista deve realizar um enquadramento que possibilite a indagação operativa, que fará emergir a demanda institucional, de forma deformada e disfarçada como são os derivados do inconsciente. No movimento do desenrolar esse trabalho, a instituição tomará em suas mãos o processo de se autoanalisar e a consequência é a autogestão. Relações horizontais e não verticais, com base na demanda dos atores institucionais que ali interagem, produzem objetivos e clientela, e são impactados por ambos (BLEGER,1992).

René Käes (1989) utiliza O mal-estar na cultura (FREUD, [1930] 1996) e nos remete ao sofrimento inerente de estar numa instituição. Isto é, há o sofrimento por estar na cultura.

Ao adentrarmos em uma organização-instituição, o sofrer aumenta por termos de nos adequar à “linguagem da tribo”; nos adequar a leis que existem independentemente de nós, nos vermos prescindíveis (ferida narcísica). Abrimos mão da individualidade e passamos a fazer parte do corpo erógeno institucional, que implica o efeito do agrupamento em nosso psiquismo: as identificações, os pactos inconscientes, os silêncios, as idealizações, os sintomas partilhados.

Ao adentramos na mente institucional, percebemos que existe um acordo entre os sujeitos implicados para manter a continuidade dos investimentos e os benefícios do vínculo. É um acordo inconsciente, pacto denegatório para se calar diferenças, o enunciado nunca é formulado, é um deixar de lado, uma proteção contra o negativo. Acordo tácito sobre um dizer que deve permanecer inconsciente.

A instituição é um objeto psíquico comum: ela não sofre. Nós é que sofremos por nela estar, pela nossa relação com a instituição e sofremos nessa relação. É a instituição em nós, o que em nós é a instituição que sofre. Sofremos pelo não reconhecimento de nossa individualidade. Sofremos pela ferida narcísica. Sofremos pelo ideal institucional não alcançado, pelos sacrifícios do Eu, pelos benefícios não alcançados, pelo excesso e pela falha institucional e também pelos pactos não cumpridos! E mais: muitas vezes não sabemos que sofremos nem porque sofremos.

Quando esses sofreres ficam intensos e excessivos sem espaços onde possam se sustentar, como perder a ilusão na instituição ou não crer mais em seu ideal, surgirá a patologia institucional. Teremos o ataque à instituição, entre atores institucionais e ataques/agressões aos clientes institucionais, (KÄES, 1989). A todos esses ruídos o psicanalista escuta, seja exercendo seu oficio, seja sendo um ator institucional que ali exerce uma função.

Eugène Enriquez citado por Käes (1989, p. 53-54) analisa a morte institucional, que ocorre em silêncio, como lhe é característico.

A família, a Igreja, o Estado e os grupos educativos e terapêuticos podem, com toda razão, ser considerados como instituições, porque todos colocam o problema da alteridade, ou seja, da aceitação do outro enquanto sujeito pensante e autônomo por cada um dos atores sociais que mantêm com ele relações afetivas e vínculos intelectuais [...] servem [as instituições] como lei organizadora tanto da vida física como da vida mental e social dos indivíduos que delas participam. [...] favorecerá a manifestação das pulsões sob a condição de que sejam metaforizadas em desejos que sejam socialmente aceitos e valorizados, [...] trabalho a favor do projeto mais ou menos ilusório da instituição.

O circuito das pulsões vai produzindo seu efeito. Eros possibilita identificação, sentimento de fraternidade, intimidade. Há o sentimento de partilha e estabilidade, evita-se as tensões e os conflitos. Quando uma instituição substitui o modelo de trabalho de eficiência por um modelo de fusão, de comunicação infalível, ela denuncia o medo da diferença, da perda, do vazio. Evitar as tensões produz um movimento de autorregulação para preservar a condição estável.

Nessa condição, a pulsão de morte ganha espaço. Quanto mais se pressiona no sentido da ilusão de igualdade, mais emerge o desejo de transgressão, conflito e rivalidade entre irmãos. A instituição funciona com burocracia, repetição de comportamentos, limitação das iniciativas, fuga de responsabilidades.

O significado da presença de Eros é favorecer “unidades vastas” (FREUD, [1930] 1996), possibilitar o conforto psíquico “de um bem comum”, mas não evita o desejo de transgressão, que caminha de mãos dadas com a criatividade e ambas surgem pela proibição.

Com o tempo, a instituição morre. Morre não apenas porque fechou as portas e não presta mais um dado serviço à comunidade. Morre porque fica estagnada e os atores institucionais não investem em seus objetivos e ideais. A recusa dos conflitos e embates, e a dificuldade de administrar as alteridades cobram seu preço na carne e no psíquico no cotidiano institucional.

Como temos afirmado, não há possibilidade de frequentar uma instituição e ficar imune a elas. As instituições constituem sistemas culturais e simbólicos, imprimem sua marca em nosso corpo, nosso pensamento e nossa psique – “linguagem da tribo”. A pulsão de vida aglomera e nos possibilita a realização de trabalhos impostos pela instituição. O trabalho em comum provoca reunião e renúncia às descargas pulsionais, e nos compromete com o ideal institucional. Mas os conflitos, os questionamentos e as crises institucionais trazem o medo do desaparecimento. De fechar. Acabar. Como tem acontecido com tantas nestes tempos difíceis.

 

Então, escutamos: considerações e questões

Em todo o seu trabalho,
Freud se dedica a ouvir.
E ouve sonhos, histórias, descrição de sentimentos,
impressões, sensações, atos falhos, declarações.
No que ouve, reorganiza cenas e tramas
que interpreta ao sabor de suas hipóteses
sobre a dimensão inconsciente do psiquismo.

GUIRADO, 2004, p. 52.

Anteriormente neste artigo pinçamos os vários espaços que o psicanalista tem ocupado, considerando o acadêmico como um dos primeiros enquanto professor-psicanalista. Elegemos dois caminhos: um com o exercício do oficio de psicanalista e o outro com a posição de ator institucional sem o exercício manifesto de psicanalista, mas tomado pelos ruídos institucionais.

Para pensarmos sobre os espaços organizacionais, convocamos três teóricos que os pensaram sob a ótica psicanalítica, cada um deles privilegiando um conceito para tentar compreender os vários ruídos que acometem esses agrupamentos.

Na segunda tópica, Freud ([1923] 1979) privilegia o aparelho auditivo que vai constituir as vozes do supereu, as representações com força de ditames inconscientes, provocando como derivados interpretações, condutas e consequências psíquicas. Se no setting nos apoiamos no método, no enquadre psicanalítico, o mesmo não é tão acessível nos espaços extramuros, ficando à mercê do que nos cerca.

As sereias meduzam pela voz. O que uma realiza pelo terror, as outras obtêm pelo “encanto” (ASSOUN, 1999, p. 84).

A instituição é Lei, pacto de regras para barrar o prazer e o desejo de um. A mutação do laço/pacto coletivo interfere nas relações institucionais. Diante do caos instituinte pressionando o instituído, diante da exigência de um excesso de harmonia e/ou do sofrer geral institucional, tenta-se reformular a Lei, as regras coletivas. Aí o paradoxo! Tal qual um bebê que se apoia na constância da mãe e dos seus atos, que vão permitir as primeiras representações, levando a tentativas de comunicação com esse meio e esse outro não eu (FREUD, [1911] 1996), nós fazemos o mesmo com o funcionamento institucional, nos apoiamos psiquicamente: cremos em sua não mutação, em sua existência imortal. Consequentemente, cada ressignificação, a cada reformulação é a ameaça de morte.

Para os mais antigos, é uma nova instituição, já que o que existia deixou de existir! Aí surgem as doenças, as cisões, o não comprometimento com os novos ideais, os desligamentos! Todo instituído é redondo, fálico, numa tentativa de amarrar. porém, não há um instituído capaz de dar conta de toda a instituição. O instituinte é não todo, falho, barulhento.

Uma instituição é um corpo vigoroso que contém instituído e instituinte. Quando o primeiro não é claro, provoca o grito do não dito e a patologia institucional surge com agressão aos fraternos institucionais, ao patrimônio, a si mesmo, ao desempenho da tarefa que lhe cabe naquele espaço e, o mais grave, podem ocorrer ataques à clientela que a organização foi criada para atender.

A instituição se cala e massacra. Estamos a perceber mesmo que não compreendamos: sensação de estranhamento, escuta dos atos e ‘des-atos', silêncios, patologias, acidentes, licenças, discursos paranoicos. No mundo acadêmico, a sala de aula possibilita a fala que assegura um certo alívio através das trocas, discussões e (por que não?), as pesquisas. Esses colegas têm a transmissão como desejo; ideais a ser alcançados e pela transferência demandantes/seguidores amorosos. A mistura desgovernada de leis e paixões. O ideal que a instituição constrói, erige e idealiza nos mantém unidos na esperança de alcançá-lo, aceitando sacrifícios e feridas narcísicas – somos mais um – para alcançá-lo. O ganho e o crescimento institucional nos levam junto. Nos orgulhamos ao falar das instituições a que pertencemos: o sobrenome familiar; o local em que nos graduamos, o bairro em que moramos, o restaurante que frequentamos; as instituições em que trabalhamos. O ideal institucional preenchido compensa a ferida de se adequar à linguagem da tribo.

Para o psicanalista é possível ler, ver e ouvir os discursos institucionais da mesma forma que o discurso no setting . Na instituição temos significantes que se repetem, não passam despercebidos, mesmo que não se saiba o que fazer com eles. O automatismo da repetição: o inconsciente institucional. Esse automatismo é fonte de mal-estar. As instituições são habitadas por subjetividades que interagem independentemente do gerenciamento ser autocrático. E fora do setting não há a proteção do enquadre ou mecanismos construídos para tal no exercício do oficio. A transferência presente nas relações e que estabelece um analista ao lhe ser dirigida uma demanda, também está presente na organização/instituição com o turbilhão de paixões pulsionais: transferências, relações parentais, pactos inconscientes, relações incestuosas, ciúmes, inveja, coisificação do outro e – acima de todo esse turbilhão e até como consequência – a demanda de amor e admiração.

Podemos nos referir ao analista ideal que cumpre os a priori que cada vereda teórica da psicanálise assinala como fundamental ao ser analista. Porém, no dia a dia temos o humano desamparado, narcísico, precisando sobreviver cotidianamente `a sua história, vida e oficio.

Temos produções sobre a teoria, sobre aquilo com que nos deparamos na clínica, sobre a impossível profissão de ser analista, sobre regulamentar ou não a psicanálise, sobre a constituição de um analista, sobre a história da psicanálise, seus percussores, sociedades e cisões!

Mas e sobre o analista? Cumprindo todos os quesitos, está imune às consequências do exercício de seu oficio? Argumentar que cada analista é único e singular é suficiente para não pensarmos sobre os analistas? Por um lado, nosso trabalho é solitário e, por outro, fazemos parte de várias “tribos”. Posturas de distanciamento, sentimento de superioridade e exclusão de outros pares são atitudes perceptíveis e quase unânimes entre todos aqueles que estudam as instituições inclusive as psicanalíticas, estudadas por psicanalistas (ELVIRA, 2016).

A oportunidade do trabalho em comum, a “transferência de trabalho” é um caminho de laço produtivo para amenizar – ou pelo menos tentar – os narcisismos das pequenas diferenças. O importante é que nossa escuta não nos transforme em seres inconvenientes, mas em aprendizes a política institucional, que é bem diferente da do setting .

Lopes (2010), no artigo sobre o oficio do psicanalista, analisa as características inerentes e necessárias a esse exercício tais como: sublimação, uma dose de culpa e desejo de reparação e um certo tom narcísico, que na instituição tornam o psicanalista uma pessoa de difícil convívio.

O fazer repetido provoca efeito de reconhecimento, de legitimidade, tornando-se natural aos nossos olhos e provocando o desconhecimento da relatividade, do fazer diferente. E lá estamos nós escutando agora a recusa da diferença!

Não nos esquecemos de que ser analista é um tecido composto pela história de cada um de nós, nossa dor e nossa patologia que através da análise estabelece uma estilística de vida com um estilo único de ser analista e transmitir a psicanálise sem esquecer seu desamparo, suas feridas narcísicas e suas demandas de amor e reconhecimento.

Não é possível negar que somos afetados por nosso oficio, então temos de levantar questionamentos e começar a analisá-los seriamente. Enquanto atores institucionais como pagamos em nossa carne e corpo libidinal? Como nosso circuito pulsional paga por esse exercício? Como pagamos em nossa solidão interna pela percepção do mundo e pessoas à nossa volta?

Deve ser imenso o silêncio em que tais ruídos e movimentos têm lugar. E quando se pensa que a tudo isso ainda se acrescenta a presença do mar longínquo, ressoando talvez como o tom mais íntimo daquela harmonia pré-histórica, só se pode desejar ao senhor [Franz Kappus] que, cheio de confiança e paciência, deixe trabalhar em sua pessoa a grandiosa solidão que não poderá mais ser riscada de sua vida. Essa solidão permanecerá e atuará, de modo decisivo e sutil, em tudo que o senhor tem a experimentar e a fazer, como uma influência anônima, como o sangue dos antepassados que percorrem as nossas veias continuamente, compondo com o nosso próprio sangue o que somos de único e irrepetível a cada nova guinada de nossa vida (RILKE, 2010. p. 90).

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: stetina-dacorso@ig.com.br

Recebido em: 15/12/2019
Aprovado em: 28/12/2019

 

 

SOBRE A AUTORA

Stetina Trani de Meneses Dacorso
Psicóloga. Membro Efetivo e Psicanalista do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro.
Professora de Teoria Psicanalítica/supervisão do curso de Psicologia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES-JF).
Mestre em Literatura Brasileira pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES-JF).
Mestre em Psicanálise - AWU-IOWA/USA.
Presidente Círculo Brasileiro de Psicanálise - Biênios: 2010-2012 e 2012-2014.
Especialista Clínica da Sexualidade Suprema/JF.
Coordenadora do curso de Formação em Psicanálise do Instituto Brasileiro de Psicanálise, Dinâmica de Grupo e Psicodrama -JF.
Membro da Comissão Científica da Revista Estudos de Psicanálise
Professora da Especialização em Teoria Psicanalítica: Clínica e Cultura do CES-JF.

 

 

1 Trabalho apresentado no Painel 1 – Psicanálise nas instituições do XXIII CONGRESSO DO CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE e da III JORNADA DO CÍRCULO PSICANALÍTICO DO PARÁ, Psicanálise e diversidades: inconsciente, cultura e caminhos pulsionais. Belém (PA), 7-11 nov. 2019.

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