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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.52 Belo Horizonte jul./dez. 2019

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

Ser psicanalista: um ofício meio doido

 

Being a psychoanalyst: Kind of a crazy job

 

 

Luís Claudio FigueiredoI, II

I Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro
II Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta reflexão sobre o oficio de psicanalista foi inspirada no romance O apanhador no campo de centeio , de J. D. Salinger, que narra a irreverência, a instabilidade e a crítica ao mundo adulto feita por um adolescente americano da década de 1940. O texto busca a relação de certas fantasias deste adolescente com as ideias que Christopher Bollas desenvolveu no livro Apanhe-os antes que caiam (2013) sobre o atendimento de pacientes em sofrimentos extremos; a partir daí, tece considerações a respeito do lugar da ambição e da onipotência, mas também da necessária modéstia dos psicanalistas em suas práticas. O trabalho faz referências à matriz freudo-kleiniana e a Wilfred Bion para falar da atividade analítica, e também ao que o analista precisa ter de infantil, imaturo e inconsciente.

Palavras-chave: Analista implicado, Analista reservado, Adoecimentos psíquicos, Práticas clínicas.


ABSTRACT

This reflection on the job of psychoanalyst was inspired by J. D. Salinger's novel The Catcher in the Rye , which recounts the irreverence, instability and critique of the adult world by an American teenager in the 1940s. The text relates certain fantasies of this teenager to the ideas Christopher Bollas developed in his book Catch them before they fall (2013) about the care of patients in extreme suffering; from then on, it makes considerations about the place of ambition and omnipotence, but also the necessary modesty of psychoanalysts in their practices. The work makes references to the Freudo-Kleinian matrix and to Wilfred Bion to talk about the analytical activity, and also to what extent the analyst needs to have infantile, immature and unconscious characteristics.

Keywords: Analyst involved, Reserved analyst, Psychic illness, Clinical practices.


 

Sabe o que eu queria ser?
Quer dizer, se eu pudesse escolher qualquer merda? [...]
Enfim, eu fico imaginando um monte de criancinhas brincando
de alguma coisa num campo imenso de centeio e tal.
Milhares de criancinhas, e ninguém está por ali
– ninguém adulto, assim – fora eu.
E eu estou parado na borda de um penhasco maluco.
O que eu tenho que fazer é que eu tenho de pegar todo mundo
se eles forem cair no penhasco
– quer dizer, se eles estiverem correndo
e não olharem para onde vão,
eu tenho de aparecer de algum lugar e apanhar eles.
Era a única coisa que eu ia fazer o dia todo.
Eu ia ser o apanhador no campo de centeio e tal.
Eu sei que é doido, mas é a única coisa
que eu queria ser de verdade.
Eu sei que é doido.

(Salinger , [1951] 2019, p. 208-209).

 

Introdução: a longa crise depressiva de Holden Caulfield

O relato de Holden Caulfield, 17, desde suas últimas horas na escola de que acabava de ser novamente expulso, atravessando alguns dias de liberdade, desorientação, encontros e encrencas em Nova York , antes de retornar à casa dos pais, até sua última comunicação, já internado em uma clínica psiquiátrica, cobre exatas duzentas e cinquenta e três páginas, na edição da Todavia ( Salinger , 2019). É uma narrativa cheia do humor, da irreverência, da instabilidade, do tédio, da depressão e da crítica ao mundo adulto desse adolescente americano da década de 1940, no pós-guerra.

Vamos lendo fascinados esse relato, mas é apenas nas páginas 208 e 209 que encontramos um esclarecimento do título do romance: O apanhador no campo de centeio. Quando li esse trecho, que aqui foi colocado como epígrafe, imediatamente me lembrei do livro do psicanalista Christopher Bollas (2013) Apanhe-os antes que caiam.

Podia jurar que Bollas se inspirara nesse trecho do livro de Salinger. Nunca obtive alguma confirmação dessa suspeita, mas ela me abriu o horizonte para as considerações que se seguem em torno de nossas práticas clínicas. Em especial, do que nelas pode haver de ‘ doido' , como na fantasia amalucada e hiper-reparadora do garoto Holden Caulfield, no final das contas, um garoto inteligente, muito bom e generoso.

No mesmo momento me veio o desejo de dedicar este pequeno texto aos amigos do Terceira Margem do Rio, que há vinte cinco anos se reúnem – sob o signo de uma certa loucura mansa (o nome diz tudo) – para conversarmos sobre nossas experiências, nossas inquietações, nossas ideias.

 

A psicanálise, evidentemente, não é só isso

Não fazia parte do empreendimento de Freud uma pretensão salvífica dessa monta. Ao contrário, o furor curandis é por ele condenado e dessa condenação não se tornou obsoleta. Não obstante, a clínica psicanalítica muitas vezes foi obrigada a ‘estender as mãos' para pacientes muito adoecidos que correm, desarvoradamente, para a borda do abismo e precisam ser, sim, apanhados antes que caiam.

Foi assim com os casos relatados por Bollas (2013), e tinha sido assim quando a analista inglesa Anne Alvarez (1992) cunhou a noção de ‘reclamação' diante de um paciente autista, quando intuiu que, se não o apanhasse, ele cairia para sempre e definitivamente. Antes deles, essa fora a índole de uma parte muito significativa das inovações que Sándor Ferenczi introduziu na psicanálise em seus derradeiros trabalhos. Mas antes de avançar, seria conveniente retomar em que medida a prática psicanalítica não se assemelha à fantasia do personagem de J. D. Salinger.

Não apenas o salvar a todo custo não fazia parte da clínica freudiana nem da kleino-bioniana, dado o reconhecimento de forças contrárias ao tratamento operando o tempo todo – as resistências combinadas do isso, do eu e do supereu e, em particular, as chamadas pulsões de morte – como a suposição de onipotência de Holden Caulfield não nos ajuda em nossa labuta.

Nos imaginarmos como ‘o único adulto na borda do penhasco' é um péssimo começo para virmos a ocupar o lugar do analista a quem cabe escutar, exercer a complexa tarefa de uma escuta polifônica ( FIGUEIREDO , 2018), que nos dê acesso às diversas dimensões inconscientes do paciente, de nós mesmos, do campo analisante e dessa entidade que se forma pelo entrecruzamento dos inconscientes que nesse campo habitam. Uma entidade tão estranha que já foi denominada de ‘quimera' e de ‘monstro', pelo que tem de enigmático, confuso e monstruoso (DE M'UZAN, [1978] 1987; REIS, 2016).

As operações da escuta polifônica, por mais complexas e desafiadoras que sejam, nem de longe se parecem com o que se espera do apanhador no campo de centeio, salvando milhares de criancinhas na borda do abismo. O fundamental, ao contrário, é sustentar essa disposição peculiar de mente de ‘esperar o inesperado', deixar vir o novo, deixar-se afetar pelas comunicações inconscientes do paciente, deixar-se submeter ao adoecimento da quimera (de que somos parte) nas transferências e contratransferência neuróticas, narcísicas e psicóticas. Em todas, aliás, podemos experimentar alguma dose de loucura, e “ madness”, efetivamente, consta do título do artigo de Bruce Reis (2016) acima mencionado, dedicado às obras de Michel De M'Uzan, Thomas Ogden e Christopher Bollas.

É claro, enfim, que há riscos aí sempre presentes, seja o risco de loucura, seja o de adoecimentos psicossomáticos, ambos associados a momentos de perda de ‘identidade', estados passageiros de alguma despersonalização, muito bem descritos por De M'Uzan. Mas não é ainda o risco da loucura onipotente e persistente de se julgar o único adulto na borda do penhasco, responsável por centenas de criancinhas descontroladas e em perigo.

Ao contrário, sabemos perfeitamente que de um perfeito adulto – vigilante e consciente – não temos muito e que, na verdade, só podemos exercer nossa atividade analítica dando uma função importante ao que também temos de infantil, imaturo e inconsciente.

É da combinação paradoxal de nossa condição híbrida – infantil e adulto; consciência e inconsciente – que precisamos para instalar e sustentar a situação analisante, deixando a ela a responsabilidade de propiciar e potencializar nossas capacidades de trabalho psíquico: trabalhos do sonho, trabalhos do luto, trabalhos do humor e da criação, trabalhos do morrer.

A ‘cura', e não a salvação, será o produto dessas operações de trabalho psíquico consciente e inconsciente e poderia ser concebida muito singelamente como a elaboração permanente e continuada – ainda que sujeita a algumas interrupções – de nossas experiências emocionais, em particular, as mais perturbadoras, na forma de agonias e angústias.

Desses trabalhos psíquicos esperamos a expansão da nossa capacidade de lidar com os afetos, as ideias e a ampliação de nossa competência para tolerar adversidades e incertezas. Vale dizer, concebemos a ‘cura' na forma de nos tornarmos mais humanos e mais reconciliados com nossa humana condição, finita e imperfeita.

Como se vê, estamos muito longe das fantasias de Holden Caulfield, embora haja também aqui uma certa proximidade com a loucura e com os adoecimentos psicossomáticos, como disse acima. Querer ser psicanalista assim e só fazer isso o tempo todo, nós também sabemos que é perigoso e doido, embora não tão doido quanto pensava e sabia ser o personagem de Salinger.

 

Mas a psicanálise também é isso; de vez em quando, muito isso... e, no fundo, um pouco disso, o tempo todo

 

Preliminares: o analista implicado e superimplicado

Estamos falando de presença implicada e em graus de implicação. Embora sempre necessária na formação das “quimeras”, monstruosas e muito loucas, da situação analisante, e na sua transformação, na psicanálise, a maior parte do tempo, e na maioria dos casos, a implicação pode e precisa ser conservada dentro de limites. Eles se expandem, quando não se rompem, quando se impõe a tarefa de apanhar as crianças na borda do penhasco.

É disso que se trata no livro de Bollas (2013) e me surpreendeu não haver nele nenhuma alusão ao romance de Salinger, que Bollas seguramente conhece e aprecia. Nesse pequeno volume Catch them before they fall verificamos a necessidade de os psicanalistas reconhecerem que, mesmo que a psicanálise não seja fundamental, isso também deva ser isso em certas situações.

Mais claramente, precisa ser isso de vez em quando, como nos casos relatados pelo analista em que se avolumam os sinais de um colapso se aproximando. Era, aliás, o caso do próprio Holden Caulfield, mais do que o das criancinhas que ele queria salvar e que estavam, afinal de contas, brincando e correndo no campo de centeio, enquanto ele errava de encontro em encontro, de encrenca em encrenca, desorientado e às voltas com o tédio e a depressão. Tudo sugere que a fantasia onipotente e hiper-reparadora do garoto era uma projeção sobre as crianças do perigo que ele corria e do colapso que dele se aproximava, reservando-se o papel seguro do grande salvador.

Não obstante, há efetivamente indivíduos que se aproximam sem saber do abismo – mas não correndo e brincando, é claro – e que precisam ser apanhados antes que caiam. A tradição ferencziana na psicanálise, que comparece no livro de Bollas, por intermédio de Balint e Winnicott, inaugurou essa corrente que tanto se abre para pacientes colapsados ou em marcha para o colapso, como se dispõe a grandes alterações de enquadre para responder às suas necessidades de sustentação.

Embora Bollas enfatize a raridade dessas condições que o levam a fazer profundas alterações no enquadre, penso que no fundo, o tempo todo nosso ofício na psicanálise está atravessado por uma fantasia desse tipo, ainda que ela precise ser parcialmente reprimida e elaborada – e não apenas disciplinada por um ‘superego técnico'.

São evidentes os riscos de quando a psicanálise é excessivamente ou exclusivamente isso. Tanto há os riscos para o paciente que, supostamente, ‘precisando ser salvo', é infantilizado e alienado na fantasia do analista salvador, tiranicamente salvador. Como há os riscos para o analista em sua onipotência reparatória à la Holden Caulfield , uma forma mansa, mas nem tão mansa assim, de doideira.

Os riscos do excesso de implicação podem ocorrer também na matriz freudo-kleiniana, em que a onipotência do analista também pode operar para o bem e para o mal. Contudo, tanto em Freud como em Melanie Klein e Wilfred Bion encontramos elementos da teoria e da clínica que nos impõem modéstia em nossas ambições terapêuticas. Já os riscos do excesso na matriz ferencziana parecem muito maiores, justamente porque nela são minimizados os obstáculos, as resistências, as ‘reações terapêuticas negativas' e outras decorrências das pulsões de morte, de destruição e de regressão ao inanimado. A implicação excessiva pode levar o analista para o fundo do penhasco, onde ele manterá o paciente encarcerado.

 

O analista em reserva

Mas eis que podemos aprender também a reserva com o mesmo Holden Caulfield: poucas páginas depois de contar sua fantasia à irmã querida, ele já não se imagina mais como o único adulto na borda do penhasco; agora é um adolescente que, sentado em um banco, vê efetivamente a irmã brincar no carrossel do Central Park.

É quando diz:

As crianças todas ficavam tentando agarrar a argola dourada, e a nossa amiga Phoebe também, e eu estava meio com medo que ela caísse da desgraça do cavalo, mas não abri a boca e não mexi um dedo. O negócio com as crianças é que elas querem agarrar a argola dourada, você tem de deixar e não abrir a boca. Se elas caírem, caíram, mas é ruim se você disser alguma coisa (SALINGER, [1951] 2019, p. 251).

Que transformação! Numa avaliação justa, cair do cavalinho pode arranhar o joelho ou mesmo quebrar um braço, mas nada de espetacular. É possível ficar quieto e, se cair... caiu. Comparando com a fantasia claramente defensiva em que Holden transfere para as criancinhas sua própria impotência e falta de sustentação, reservando-se o lugar idealizado do salvador – o apanhador no campo de centeio – o que se apresenta agora é um sujeito preocupado e atento, mas sem veleidades salvadoras.

Cabe, assim, ressignificar toda a fantasia do apanhador no campo de centeio. As crianças estão felizes e brincando. Quem estava na borda do penhasco era Holden: era ele que corria o risco de despencar; aliás, já estava despencando (ao menos, até sentar-se no banco do parque para acompanhar Phoebe no carrossel). Mas aquela fantasia hiper-reparadora e onipotente reaparece agora elaborada nessa nova posição do adolescente, preocupado, mas contido. É preciso confiar nas habilidades de Phoebe (e ela não caiu) e lhe dar o direito de fazer suas próprias experiências.

 

Virando analista

Acredito que uma fantasia onipotente como a que transcrevi como epígrafe dificilmente esteve ausente na escolha do ofício de psicanalista. No melhor dos casos, pode ir sendo em parte reprimida e em grande parte elaborada para dar lugar à sua presença reservada em nossa mente, mas sem deixar de existir em nossa reserva psíquica. Aliás, nossa reserva no plano intersubjetivo depende de conservarmos essa fantasia em reserva no plano intrapsíquico.

Algo da nossa condição de apanhadores no campo de centeio se preserva, posto que profundamente transformada, mas a postos para voltar à atividade em muitas situações clínicas em que é preciso reclamar nossos pacientes amortecidos e mortificados, apanhá-los antes que caiam ou que se reestruturem como broken selves ( BOLLAS , 2013, p. 13-19), pacientes da falha básica, como dizia Balint. Mas a maior parte do tempo, podemos nos manter à escuta, sentados em nossas poltronas, como Holden no banco do Central Park.

 

Um tal psicanalista de lá e sua indisponibilidade para a loucura terapêutica

Mas o adolescente rico de Nova York não teve a sorte do encontro com essa psicanálise, nem antes do colapso, nem depois.

Na última página do livro, internado em uma clínica psiquiátrica, ainda narra:

Um monte de gente, principalmente um tal psicanalista daqui fica me perguntando se eu vou me esforçar quando voltar para a escola em setembro. É uma pergunta tão idiota, na minha opinião. Quer dizer, e tem como você saber o que vai fazer até chegar a hora de você fazer? A resposta é, não tem como. Eu acho que vou, mas como é que eu posso saber. Juro que é uma pergunta idiota (SALINGER, [1951] 2019, p. 253).

Podemos imaginar que se trate da psicanálise novaiorquina da Ego Psychology, hegemônica na época e na região, mais que tudo interessada na reconstituição das competências egoicas desse adolescente inteligente, informado, perdido e destrambelhado. A hipótese não é descabida; Salinger acreditava que quase todos os psicanalistas da cidade se dedicavam a adaptar para a normalidade.

No livro Franny & Zooey (1955), encontramos o diálogo:

Se você não consegue, ou não quer pensar no Seymour, então vai lá de uma vez e chama algum psicanalista ignorante. Pode ir mesmo. Você vai lá e chama algum analista com experiência em ajustar as pessoas aos prazeres da televisão e da revista Life toda quarta-feira, e viagens pela Europa, e a bomba H, e as eleições pra presidente, e a primeira página do Times... e sabe mais o que de gloriosamente normal [...] Eu acho que deve ter um psicanalista em algum canto da cidade que ia ser bom pra Franny [...] Mas acontece que eu não conheço nenhum (SALINGER, [1955] 2019, p. 95-96).

O que Zooey imagina para sua irmã à beira do colapso (Seymour, o irmão mais velho, já havia sucumbido e se suicidado) não poderia dar certo se o analista fosse ‘terrivelmente freudiano ou terrivelmente eclético, ou só terrivelmente normal'; aí ela ia sair pior do que Seymour saiu. Faltaria a esse analista um grãozinho de doidice... Uma doidice pela qual o analista seria grato:

Ele ia ter que acreditar que foi pela graça de Deus que ele foi inspirado a estudar psicanálise, pra começo de conversa... Ia ter que acreditar que é pela graça de Deus que ele tem a inteligência nata até pra conseguir ajudar seus pacientes. Eu não conheço nenhum analista bom que pense desse jeito. Não dava para ser alguém que nem tivesse uma gratidão louca e misteriosa por sua inteligência e perspicácia (SALINGER, [1955] 2019, p. 97).

Aquela psicanálise dominante na cidade de New York era indisponível para o mergulho na loucura – algo de fato muito doido – que nos leva, agradecidos, para territórios sombrios, convulsionados ou inertes, que têm o poder de nos deprimir e de nos transtornar, de nos adoecer, mas de onde podemos sair renovados e mais integrados, nós e nossos pacientes. Faltava a ao psicanalista de lá, quem sabe, a fantasia louca em reserva, e a Holden, com o perdão pelo trocadilho, ficou faltando holding no sentido preciso de sustentar o ser e o durar ao longo do tempo.

 

Catch them before they fall! uma outra psicanálise

Em um dos capítulos de seu livro de 2013, Bollas (2013, p. 75) nos diz: “Mais que tudo, o paciente que está entrando em colapso precisa de tempo”. Tempo para o colapso e mais tempo ainda para uma lenta recomposição integradora.

Tempo era justamente o que o analista de Holden Caulfield não queria lhe dar e lhe fazia a pergunta idiota: vai se esforçar na escola quando voltar em setembro? Não sabemos exatamente, mas o relato deve estar sendo feito pouco depois do Natal, pois os dias cruciais do colapso de Holden antecedem o 25 de dezembro. O tal psicanalista de lá tem pressa na recuperação do garoto, o que, se acontecesse, deixaria cronificada uma condição de ‘self quebrado', e não se aproveitaria o colapso para um trabalho analítico de integração da personalidade.

 

Um ofício meio doido

Mas isso não nos autoriza a conceber toda a psicanálise à luz dessa fantasia infantil. Nem, ao reverso, rir dela e dela nos desfazer de forma definitiva. O que sugiro, é que viemos a ser o que somos parcialmente reprimindo e parcialmente elaborando uma fantasia louca e onipotente de reparação, e mantendo-a como uma reserva psíquica, não apenas porque a ela precisamos recorrer em determinadas circunstâncias clínicas, mas porque dela continuamos a extrair uma porção de esperança todos os dias de nossa existência, principalmente os chuvosos.

O quanto devemos a essa doidice reprimida e bem guardada é algo difícil de avaliar. Sabemos que em alguns de nós ela retorna com maior facilidade, o que torna, aliás, esses psicanalistas mais afeitos e aptos para tratar casos muito cabeludos. Um exemplo eloquente, para não falar novamente em Ferenczi, era o grande analista americano (da região de Washington) Harold Searles, com seu apreço pelos pacientes psicóticos e borderline. O risco é ser doido demais.

Em outros analistas, a fantasia desmiolada está mais bem reprimida. Receio pertencer a essa turma. O risco é ser doido de menos.

Em todos os agrupamentos de analistas encontramos essas diferenças quanto à evidência da fantasia infantil onipotente. É difícil, contudo, imaginar algum analista em atividade – inclusive os mais sóbrios – que não conserve uma boa dose dela. (Ao menos, falo por mim e, acredito, pelos meus amigos mais próximos e queridos).

Nesse caso, isso deve significar que todos levamos pela vida afora, dentro de nós, algum traço do adolescente Holden Caulfield e, se nossa interpretação tiver sido justa, alguma coisa das criancinhas que ele imaginava em grande perigo e queria apanhar antes de caírem. Pelo que agradecemos.

 

Referências

ALVAREZ, A. Live company. New York: Routledge, 1992.         [ Links ]

BOLLAS, Chr. Catch them before they fall. New York: Routledge, 2013.         [ Links ]

DE M'UZAN, M. La bouche de l'inconscient (1978). La bouche de l'inconscient. Paris: Gallimard, 1994.         [ Links ]

DE M'UZAN, M. Pendant la séance (1987). La bouche de l'inconscient. Paris: Gallimard, 1994.         [ Links ]

FIGUEIREDO, L. C. Escutas em análise. Escutas poéticas. Psicanálise: caminhos em um mundo em transformação. São Paulo: Escuta, 2018.         [ Links ]

REIS, B. Monsters, dreams and madness: Explorations in the Freudian Intersubjective. The International journal of psycho-analysis, 97(2), p. 479-488, 2016 (DOI 10.1111/1745-8315.12416).         [ Links ]

SALINGER, J. D. O apanhador no campo de centeio (1951). Tradução de Caetano W. Galindo. São Paulo: Todavia, 2019.         [ Links ]

SALINGER, J. D. Franny & Zooey (1955). Tradução de Caetano W. Galindo. São Paulo: Todavia, 2019.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: lclaudio.tablet@gmail.com

Recebido em: 12/11/2019
Aprovado em: 08/12/2019

 

 

SOBRE O AUTOR

Luís Claudio Figueiredo
Psicanalista.
Membro Efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro.
Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e e Livre Docência em Psicologia pela USP.
Professor doutor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor Associado da Universidade de São Paulo (PUC-SP).

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