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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.52 Belo Horizonte jul./dez. 2019

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

O inconsciente é a política - ato/desato social

 

The unconscious is politics - social act /unact

 

 

Messias Eustáquio ChavesI

I Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

É a partir do significante que o autor aborda o tema deste trabalho. O significante se inscreve num corpo hominídeo mudo. Ao longo do tempo, faz dele um sapiens , um ser falante, humano inteligente, construído pelo processo de aculturação, desde a linguagem primitiva do par parental até uma linguagem bastante complexa. Exuberante em seus significantes fundamentais, inscritos através das dramáticas experiências do Édipo e da castração simbólica vividas no seio da família e nos laços sociais precoces.

Palavras-chave: Inconsciente, Política, Inscrição, Instância, Registro, Estrutura psíquica, Ato.


ABSTRACT

It is from the signifier that the author approaches the theme of this work. The signifier is inscribed in a mute hominid body. Over time, it makes him a sapiens, a talking, intelligent human being, built by the process of acculturation, from the primitive language of the parental parent to a very complex language. Exuberant in its fundamental signifiers, inscribed through the dramatic experiences of Oedipus and symbolic castration experienced within the family and in early social ties.

Keywords: Unconscious, Policy, Registration, Instance, Registration, Psychic Structure, Act.


 

– ai macai deinai eissin –
as batalhas são terríveis – diversidade.
A singularidade do sujeito do inconsciente e
o mal-estar na civilização
A moral dos costumes da aculturação e
a ética da psicanálise

 

Primeira questão

Lacan (1967) diz que “o inconsciente é a política”.

[...] se Freud escreveu em algum lugar que a ‘anatomia é o destino', haverá talvez um momento quando se revelará a uma sã percepção exatamente isso que Freud nos descobriu e que também se dirá que eu não disse exatamente que a política é o Inconsciente, mas tão simplesmente: ‘o Inconsciente é a política'. Eu quero dizer que o que liga os homens entre si, o que os opõe, é precisamente o que nos tem motivado a produzir os ensaios que nos levem ao instante de articular a lógica.

Do Isso, que certamente aí está, é possível inferir as seguintes questões:

• O que Lacan quis transmitir com esse enunciado?

• O que Lacan realmente quis dizer?

• O que liga os homens?

• O que os opõe?

• O que os leva ao gozo sexual e ao gozo da agressividade?

• O que os leva ao amor e ao ódio?

• O que os leva às disputas, ao enfrentamento, às lutas de todos os tipos, ao entrechoque das diversidades, aos mandamentos do supereu, seus imperativos de gozo?

• O que leva os humanos a falar e a calar, a rir e a chorar, a cantarolar e a vociferar?

• O que os leva à piedade, ao perdão, ao amor ao próximo, à propaganda de felicidade eterna, à solidariedade e ao sacrifício pelo semelhante?

• O que Lacan quer dizer com “instante de articular a lógica”?

• O que os paradoxos da matemática de conjunto, das contradições lógicas, influenciaram Lacan a enunciar que “o inconsciente é estruturado como ‘uma' linguagem”?

• E o que a psicanálise tem a ver com tudo Isso?

Pensemos nos matemas, nos grafos, nos objetos topológicos inventados por Lacan desde a fita de Möebius até a topologia dos nós.

 

Segunda questão

Por que é possível pensar que o inconsciente estruturado como ‘ uma' linguagem é lógico, matemático, paradoxal e que ele seja “a política”?

É porque a fala humana, a linguagem, é a única maneira de perceber e de dizer do Isso das pulsões, do real da vida e da morte, tanto quanto dos sonhos e das fantasias, assim como das escritas poéticas e literárias?

Linguagem é representação da fala e, ao mesmo tempo, dos pensamentos, dos sentimentos, dos desejos e dos contradesejos?

Ela é a transmissão das pulsões e suas defesas automáticas, das fantasias de desejos recalcados, desmentidos e até mesmo rejeitados, foracluídos?

É sempre no nível do significante que devemos procurar as respostas possíveis?

Lacan, em seus dois textos Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953) e A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957) deixa claro que um significante sozinho não tem sentido algum, ou seja, podemos dizer coloquialmente que um significante não pode significar a si mesmo, porque a sua significação é correlata ao deslizamento dos significantes na cadeia ou rede significante. E o mais importante se revela na lógica de que o significante só pode passar para o registro da significação porque há um sujeito trabalhando ali nesta rede. Em razão do que será elaborado na sequência deste artigo, é importante chamar a atenção do leitor para a palavra “sujeito”.

Sabe-se como Lacan ([1957] 1998) definiu o que é um signo e o que é um significante:

• Signo é o que representa alguma coisa para alguém;

• Significante é o que representa um sujeito para outro significante.

Então, pensemos: a palavra “social” sozinha, como um significante, não pode significar a si mesma. Ela sozinha não significa socialismo. A palavra “capital” sozinha não significa o sistema capitalista. É preciso uma rede de significantes para que eles possam produzir significação. Se uma palavra representar alguma coisa para alguém, ela é um signo. Se uma palavra representar um sujeito para outra palavra, ela é um significante.

 

Terceira questão

Quando Lacan, em seu seminário A lógica do fantasma (1967), associando livremente, subverte o dito “A política é o inconsciente” para “O inconsciente é a política”, o que ele quis nos dizer? Já que leitura e interpretação são atos de cada um na sua singularidade, é possível elaborá-los assujeitando-se a todos os riscos? Então, o termo “política” nos remete ao texto A direção do tratamento e os princípios de seu poder (LACAN, [1958] 1998, p. 596).

Lacan fala de “tática da interpretação”, de “estratégia da transferência” e de “política da falta-a-ser”, assim: “A política do analista se faz melhor colocando-se em sua falta-a-ser do que colocando-se em seu ser”.

Então, pergunta-se:

É possível pensar uma política para o ser humano em geral, que seria aquela fundada na consciência moral, na ilusão de completude, nos mandamentos da religião, na ética aristotélica do bem supremo, e pensar outra política também para o ser humano em geral, mas que seria aquela fundada no real do inconsciente, na castração simbólica, na incompletude do ser, na ética do desejo do sujeito dividido em sua falta-a-ser?

Então, é possível fazer as seguintes deduções:

• Se a ética da psicanálise é a ética do desejo, o inconsciente é a política do desejo do analista em sua falta-a-ser () dirigindo o tratamento desde a posição de objeto a no discurso analítico.

• O analisante, falando livremente tudo o que quiser, será conduzido pelas suas associações e pelos atos analíticos no encontro com a sua falta-a-ser no inconsciente (), encontro com o real do impossível da completude do ser.

• O analisante descobre a impossibilidade de dizer tudo, tanto quanto o analista de escutar tudo em cada sessão de análise, em cada transmissão da psicanálise, em cada escrita, em cada ação no campo do Outro, enfim, em cada encontro da vida com a morte.

• O inconsciente é que comanda tudo nas atividades humanas, pois ele é a política – do desejo e da defesa, da ética e da moral, da oratória e da escrita, da arte e do esporte, da polícia e da religião, do governar e do educar, do analisar e do transmitir a psicanálise – seja no consultório ou na cidade, seja no regime democrático ou no regime autocrático, pois o inconsciente comanda o ser falante e a humanidade.

 

Quarta questão

Qual o contexto no qual o autor deste trabalho é capturado por este dito de Lacan, “O inconsciente é a política”?

Pois bem, no ano 2018 vive-se intensa agitação política no Brasil, recolhimento do que já vinha acontecendo desde 2014 e acirrado até 2016 com o impedimento da presidente Dilma e a posse do seu vice Michel Temer. Campanhas eleitorais intensas e disputas acirradas durante dois anos até as eleições presidenciais de 2018.

Este autor escuta e presencia grandes preocupações e ansiedades tanto em seu consultório, quanto nas ruas e nas transmissões de mídia falada e escrita. Nunca antes havia presenciado tanta união entre membros de um determinado partido qualquer e, ao mesmo tempo, tanta discórdia e disputa entre membros de partidos diferentes.

Fica-se pasmo ao constatar que no Brasil há 35 partidos registrados na Justiça Eleitoral (ONU-Wikipédia) e pergunta-se: para que tantos? Surgem daí muitas outras perguntas e reflexões sobre a estrutura política neste País, suas criações desde o início da república, as características de cada um, seus slogans, seus objetivos, suas propagandas, o uso que fazem do dinheiro público, as leis feitas para preparar os caminhos das eleições e do ato de governar.

É possível dizer que ‘ o inconsciente de cada sujeito' em sua função no parlamento e no executivo de uma nação é o efeito de deliberações quase sempre perversas em benefício de suas próprias necessidades e desejos?

É assim desde o inicio da humanidade em todo o planeta Terra?

Desde o início da civilização com a descoberta do fogo, todos querendo poder, dinheiro e sucesso?

Faz parte da luta para domar a natureza, garantir alimentos e sobreviver, defender-se de animais selvagens, de outros humanos ladrões e assassinos?

Com a civilização, a aculturação, o progresso na educação e no trabalho, o que mudou?

Caminha-se para frente e para trás ao mesmo tempo?

Tudo volta sempre ao mesmo lugar?

O que a psicanálise tem a ver com Isso e pode fazer com Isso?

A experiência psicanalítica não é outra coisa senão estabelecer que o inconsciente não deixa fora de seu campo nenhuma de nossas ações (LACAN, [1957] 1998, p. 518).

 

O preço ético do amor: o comandante

Cabe uma pergunta:

Poderia o sujeito se eximir dessa intromissão?

Eros e Ananké estão na raiz de sua impossibilidade. Dependência e desamparo colocam o sujeito infantil à mercê do Outro e sobre esta base se assenta a ética sustentada no sistema da lei e da cultura. Somente dentro do sistema é possível a legislação do Bem e do Mal, a transgressão e o castigo. Freud os faz depender da “angústia social”: “bom” é aquilo que possibilita contar com o outro, “mau” o que afasta o outro. A “angústia social” é angústia pela perda do amor ou angústia indeterminada pela perda do objeto libidinal. Assim, a perda do amor e o resultante desamparo deixam o sujeito à mercê de perigos insuspeitos. O inesperado é que, instaurado o amor, se inicia também um novo perigo tão ameaçador quanto Ananké. Desamparo de sinais opostos, mas nenhum alheio ao perigo: desamparo por Ananké e desamparo por Amor (ameaça de perda de amor); lá o perigo é exterior, aqui é exterior-interior. A ameaça é gerada de dentro... como supereu (GEREZ-AMBERTÍN, 2009, p. 150).

Assim, afirma Freud ([1930] 1974, p. 81):

[...] os seres humanos desejam e buscam, constantemente, poder, dinheiro e sucesso.

 

Ponderações

Um bebê pode nascer em qualquer lugar deste nosso planeta Terra. Em abril de 2019, conforme dados da ONU, contabilizou-se 7,7 bilhões de habitantes, a maioria na China, Europa Central e Oriente Médio.

Geralmente, se tudo correr bem, o recém-nascido deixa o útero, grita-chora e vai para o colo da mãe. Emocionadas, as primeiras palavras que a maioria das mães diz ao bebê é “meu amor”. Assim, uma mãe dá início à lalangue, a fala materna ali enlaçada com das Ding [a Coisa] e faz a inscrição primeira do amor. Grito, choro, primeiras mamadas, enlaçadas às falas da mãe, dão início a estruturação da linguagem, ao campo do grande Outro, onde pulsões, sensações, percepções de ruídos, de sons, de palavras, criam o inconsciente de cada um ao longo dos cinco primeiros anos de crescimento da criança. O real das pulsões, o simbólico das palavras, o imaginário das fantasias, enlaçados topologicamente, Id-Ego-Superego, RSI em cada sujeito, singularmente, paradoxalmente.

É possível pensar que o inconsciente é um paradoxo de contradições lógicas estruturadas como uma linguagem, pois cada sujeito é único em seu inconsciente, em cada um dos 7,7 bilhões de habitantes da Terra, não importando a língua de cada povo, pois cada língua tem a sua estrutura de linguagem feita de significantes colhidos no campo do Outro – do par parental, da pequena família, da grande família e, depois, da Escola Infantil e da Cidade.

Cada ser, em qualquer lugar do planeta Terra, se faz sujeito de seu inconsciente estruturado pelas vivências do Édipo e da castração simbólica dos quais a própria linguagem dá testemunho, seja em português, seja em chinês, seja em qualquer outra língua.

Dessa linguagem estruturante do inconsciente de cada um poder-se-á delinear o Destino de cada sujeito em sua falta-a-ser, castrado simbolicamente, ninguém sendo capaz de dizer tudo, nem ser completamente perfeito e feliz, pois a foraclusão, o desmentido e o recalque são as defesas que estruturam e emolduram as psicoses, as perversões e as neuroses de cada um no espaço-tempo da construção da humanidade.

Se a linguagem é o canal que representa tudo o que habita no inconsciente do sujeito, sabemos com Freud e Lacan que é através dela que identificamos as manifestações pulsionais, egoicas e superegoicas de cada um em sua singularidade. O inconsciente é complexo, é contradição lógica, é marcado pelos significantes inscritos pelas vivências da infância e marcante desde lalangue, desde o significante primeiro, Um, S1 .

Destaca-se aqui a importância do significante na construção do laço social – em seus atos e desatos – mais do que no efeito simbólico e imaginário de todas as suas frustrações, disputas, agressões, verdadeiras guerras. Isso é do inconsciente de cada um. Não há inconsciente plural, coletivo, cultural. Cada sujeito leva para a cultura ou civilização os seus significantes particulares, inscrevendo-o nos laços sociais através de suas identificações com alguns outros na sociedade, outros que podem ser até mesmo uma grande família de parentesco, uma comunidade, uma instituição, uma organização empresarial, uma igreja, um partido político, um povo, uma nação.

Assim, Lacan pergunta e afirma: será que tudo se limita à gênese do supereu, cujo esboço se elabora, se aperfeiçoa, se aprofunda e se torna mais complexo à medida que a obra de Freud vai avançando?

Essa gênese do supereu não é apenas uma psicogênese e uma sociogênese. Na verdade, é impossível articulá-la mantendo-se simplesmente no registro das necessidades coletivas. Alguma coisa impõe-se aí, cuja instância distingue-se da pura e simples necessidade social.

Tento aqui permitir-lhes individualizar sua dimensão sob o ‘registro da relação com o significante e a lei do discurso', se quisermos situar de maneira rigorosa e correta a nossa experiência (LACAN, [1959-1960] 1988, p. 15).

Para referendar o que foi dito, vejam o que diz Marta Gerez-Ambertín (2009, p. 162):

Há mais uma advertência referida a um suposto supereu cultural quando Freud reflete sobre o risco de arrancar os conceitos “supereuoicos da “esfera em que nasceram e se desenvolveram”. Entendamos que, embora do supereu só se possa esperar efeitos dissolventes e catabólicos, não é possível pensar um supereu cultural coletivo . Os efeitos aos quais aludimos são incidências do Ideal, dos Mandatos e da própria estrutura cultural em cada um de seus membros, caso a caso e um a um, em uma singularidade que não admite coletivização. A cultura tenta “normalizar” os porcos-espinhos, se é verdade que aproximá-los demais os fere (pelos ferrões do mandato), dissolvê-los e separá-los os mata (na medida em que anula os Ideais entrelaçados ao Amor).

Para entender a ética da psicanálise, precisamos distinguir moral e ética como tão bem nos precisou Lacan, se referindo em Kant, Heidegger, Hegel. Essa distinção – necessária – entre moral e ética, encontramo-la desde os gregos antigos, principalmente em Sócrates, Platão e Aristóteles, o que nos indica que essas questões fazem parte da reflexão humana desde o século IV a.C.

Ao longo do tempo, essa distinção sofreu transformações e ganhou, com Lacan, uma formalização que coloca a moral na dimensão da obrigação e a ética na dimensão do desejo. A ética em Lacan é a ética do sujeito como morada do desejo. Na última parte do seu seminário da ética, pergunta Lacan ([1959-1960], 1988, p. 373 : “Agiste em conformidade com o teu desejo?”.

Essa é uma questão que estimula muitas das nossas reflexões, pois se trata do desejo inconsciente, efeito da castração simbólica, convivendo no inconsciente lógico, paradoxal, com inscrições multifacetadas colhidas no campo do Outro e teorizadas como pulsionais, superegoicas, egóicas e, assim, atitudes tanto morais quanto éticas desse sujeito de seu inconsciente. É na análise pessoal que se é capaz de localizar tais efeitos inconscientes paradoxais, identificá-los e tratá-los.

Para perceber como o inconsciente é paradoxal, basta observar a questão que Lacan coloca ao iniciar Os paradoxos da Ética ou Agiste em conformidade com teu desejo? , a última sessão do Seminário 7: A ética da psicanálise, e enlaçá-la com o que ele havia dito na introdução desse mesmo seminário, tal como está a seguir:

[...] a análise é a experiência que voltou a favorecer, no mais alto grau, a função fecunda do desejo como tal. [...] na articulação teórica de Freud, a gênese da dimensão moral não se enraíza em outro lugar senão no próprio desejo. É da energia do desejo que se depreende a instância do que se apresentará no término de sua elaboração como censura (LACAN, [1959-1960], 1988, p. 12, grifo nosso).

Mas de que desejo Lacan está falando?

É do desejo nas psicoses, nas perversões ou nas neuroses?

Como esse desejo está estruturado borromeanamente?

É do desejo do analista em sua prática clínica, cuja formação passou pela experiência da análise pessoal, pela castração simbólica, pela retificação subjetiva, pela elaboração de sua falta-a-ser inserida no contexto da ética de uma psicanálise levada até as últimas consequências?

Os efeitos de uma boa análise garantem ao sujeito mais sabedoria e sorte em seus laços familiares e sociais?

As evidências indicam que sim, é possível, mas não há garantia absoluta. Contudo, o que parece plausível é que os analistas em geral conseguem construir um saber como lidar com o real da vida e da morte, de lidar com os seus desejos e suas censuras, de fazer as melhores escolhas para si mesmo, de estabelecer uma reflexão ética e um juízo crítico sobre a moral dos costumes numa comunidade, numa instituição, numa cidade, numa nação.

Assim, afirma Lacan ([1959-1960], p. 373-374):

A ética consiste essencialmente – é sempre preciso tornar a partir das definições – num juízo sobre a nossa ação, exceto que ela só tem importância na medida em que a ação nela implicada comporta também ou é reputada comportar um ´juízo´, mesmo que implícito. A presença do juízo dos dois lados é essencial à estrutura. Se há uma ética da psicanálise – a questão se coloca –, é na medida em que, de alguma maneira por menos que seja, a análise fornece algo que se coloca como medida de nossa ação – ou simplesmente pretende isso.

Alguns leitores talvez queiram me perguntar – você abordou somente o aspecto da singularidade do sujeito. E o social, a presença do cidadão na sociedade, na polis? E este autor responde da seguinte maneira: o significante, ao representar o “sujeito” para outro significante, estrutura o inconsciente como “uma” linguagem e emoldura o campo do Outro.

No âmbito desse Outro da linguagem, inscrevem-se as instâncias do Isso, do Eu, do Supereu e os registros do Real, do Simbólico, do Imaginário. O inconsciente é tudo isso junto na essência da estrutura do seu território. Tudo na vida e na morte do ser falante é causado, dirigido, comandado pelo inconsciente de cada um em sua singularidade lógica, seja na prática clínica, seja na vida social, comunitária, institucional, empresarial.

Na medida em que o sujeito do seu inconsciente faz laço social, suas características singulares se encontram com as do outro por identificações imaginárias e simbólicas. Assim, são construídas relações de compartilhamento de ideias, de atitudes, de comportamentos, de movimentos sociais. É possível perceber a força determinante do inconsciente na direção e comando do sujeito. É ele que faz a política na direção do tratamento analítico. É ele que faz a política na direção de instituições, de cidades e de povos.

Momento lógico, segundo Freud e Lacan, que atesta com evidências o fato de que a estrutura psíquica de cada ser humano já está consolidada em seu eixo básico, uma espécie de espinha dorsal do que virá pela frente. O inconsciente comanda e determina as escolhas do sujeito: imaginárias e simbólicas.

Tais identificações inconscientes tiveram início em seus enlaçamentos e amarrações topológicas desde a experiência do “estádio do espelho” ( Lacan , [1949] 1998), passando por pontos de fixação e apresentando-se na idade adulta através das escolhas pessoais que cada sujeito faz movido pelo seu desejo.

Desejos e identificações levam o sujeito a escolhas inconscientes no âmbito das diversidades pulsionais, fantasmáticas e simbólicas. Os efeitos desse enlaçamento acontecem e se fazem notar na experiência da análise pessoal e na vida social.

Assim, escolhe-se fazer determinado curso superior e não outro, determinada formação artística e não outra, trabalhar como empregado e não como empreendedor autônomo, gostar dessa pessoa e não daquela, simpatizar pelas ideias e propostas deste partido político e não de outro partido qualquer, havendo tantos a ser escolhidos e assim por diante.

O que determina a escolha subjetiva de um partido dentre 35 partidos diferentes no Brasil é o inconsciente que se estrutura na infância de cada um e, depois, se implica na vida social, fazendo escolhas movidas por desejos e identificações.

Não há um “dentro” ou “mundo interno” separado de um “fora” ou “mundo externo”, pois ambos se interligam de uma maneira lógica, isto é, topológica, representada pela fita de Möebius. O dentro e o fora do sujeito estarão sempre interligados no amor e no ódio até que a morte os separe.

É possível lembrar-se de outro objeto topológico, a garrafa de Klein, que, semelhante à fita de Möebius, demonstra o mesmo efeito estrutural do inconsciente em seu laço social. Vale a pena pensar sobre os paradoxos políticos desde Moisés e o monoteísmo, desde os filósofos e os políticos gregos, desde o império romano, desde Jesus Cristo e a Igreja Católica, desde todas as religiões e todos os governantes de Estado até o muno atual.

Assim, para finalizar, é possível dizer que todo psicanalista sabe que não há um saber clínico sem uma teoria, nem uma teoria sem a experiência clínica. Ambos fazem parte do funcionamento dialético da falta e do desejo.

É impossível pensar o registro da falta sem a dimensão do desejo – desejo este indestrutível, segundo escreve Freud no finalzinho de A interpretação dos sonhos. Desejo e falta são efeitos, são significações produzidas pelo significante fálico, ou seja, pelo ‘falo' como o significante ao mesmo tempo da castração e do desejo.

O que é a verdade? Um verdadeiro paradoxo, pois, na estrutura do inconsciente, a verdade é topológica, uma contradição lógica, uma meia verdade.

É nessa dupla dimensão que ele estrutura a dialética edipiana e o complexo de castração simbólica. Sem a castração simbólica não há acesso ao campo do desejo, ao campo da falta-a-ser, restando ao sujeito ficar aprisionado no registro do supereu arcaico herdeiro do assassinato do pai primevo e do gozo incestuoso com a mãe. Poder ‘bem-dizer' o saber e a verdade do real da clínica é ato constitutivo da ética da psicanálise. Ela é filiada e sustentada pelo estatuto do “inconsciente estruturado como uma linguagem”.

Assim, a ética da psicanálise implica que o analista, pelo menos na perspectiva analítica, não ceda de seu desejo, como nos recomenda Lacan ([1959-1960] 1988, p. 385 :

A única coisa da qual se possa ser culpado é de ter cedido de seu desejo.

 

Referências

FREUD, S. O futuro de uma ilusão (1927[1974]). Direção geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 17. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).         [ Links ]

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930 [1929]). Direção geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 75-81. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).         [ Links ]

GEREZ-AMBERTÍN, M. As vozes do supereu: na clínica psicanalítica e no mal-estar na civilização. Tradução de Stella Chebi. Rio de Janeiro: Cia. de Freud, 2009.         [ Links ]

LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958). In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Preparação de texto de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 591-652. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

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LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu (1949). In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 96-103. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 14: a lógica do fantasma (1966-1967). Sessão de 10 maio 1967. Inédito.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: mesquioves@gmail.com

Recebido em: 12/11/2019
Aprovado em: 08/12/2019

 

 

SOBRE O AUTOR

Messias Eustáquio Chaves
Psicanalista.
Psicólogo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
Especializado em Psicologia Clínica - Conselho Regional de Psicologia, 4ª Região-MG.

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