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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.53 Belo Horizonte jan./jun. 2020

 

XXI FÓRUM INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE - ENCONTRO PSICANALÍTICO: CONFLITO E MUDANÇA

 

Navegando pelo rio da contratransferência: Encontros e desencontros com a identificação projetiva e com a contraidentificação projetiva1

 

Navigating the Countertransference River: Encounters and Mismatches with Projective Identification and Projective Counteridentification

 

 

Cristina Nunes

I Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Apesar da grande expansão do conceito de contratransferência, que acompanhou o alargamento da intervenção psicanalítica a crianças e a pacientes de difícil acesso e o crescimento da importância da relação terapêutica na prática psicanalítica, esta temática tem trazido consigo, ao longo dos anos uma certa falta de clareza, que ainda hoje se mantém, por alguma imprecisão e pouca consensualidade entre alguns autores. A ideia de contratransferência confunde-se muitas vezes com outros conceitos com que se cruza como sejam a atenção flutuante, a empatia, a identificação projetiva ou a contra identificação projetiva. Na tentativa de clarificar e distinguir os conceitos de contratransferência, identificação projetiva e contraidentificação projetiva, irá recorrer a três textos de autores que considera fundamentais para a compreensão e reflexão sobre a temática. A partir da leitura reflexiva dos textos Estudos sobre Técnica Psicanalítica de Heinrich Racker, Teoria da Identificação de León Grinberg e Modelos de Interpretação em Psicanálise de Carlos Amaral Dias, proporá um modelo de inter-relação entre a dinâmica dos conceitos de contratransferência, identificação projetiva, contraidentificação projetiva e enactment, que acredita facilitar a distinção entre os mesmos, esperando poder contribuir para uma melhor compreensão e integração dos fenómenos contratransferenciais na prática psicanalítica.

Palavras-chave: Contratransferência, Identificação projetiva, Contraidentificação projectiva, Enactment.


ABSTRACT

Despite the great expansion of the concept of countertransference, which accompanied the expansion of psychoanalytic intervention to children and patients with severe pathologies, as well as the growing importance of the therapeutic relationship in psychoanalytic practice, this theme has brought a certain lack of clarity, which still remains today. The idea of countertransference is often confused with other concepts, such as floating attention, empathy, projective identification or projective counteridentification. In an attempt to clarify and distinguish the concepts of countertransference, projective identification and projective counteridentification, the author will use three texts by authors that she considers fundamental to understand and to reflect about the subject. From the reflective reading of the texts Studies on Psychoanalytic Technique by Heinrich Racker's, Identification Theory by León Grinberg and Models of Psychoanalysis Interpretation by Carlos Amaral Dias, she will propose a model of interrelationship between the dynamics of the concepts of countertransference, projective identification, projective counteridentification and enactment, which she believes will facilitate the distinction between them, hoping to contribute to a better understanding and integration of countertransference phenomena into psychoanalytic practice.

Keywords: Countertransference, Projective identification, Projective counteridentification, Enactment.


 

1. Introdução

Entre o sono e o sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.

(PESSOA, 1942, p. 173)

 

Fernando Pessoa apresenta-nos aqui, no seu poema de 1933, a essência do encontro psicanalítico e suas dinâmicas.

As margens são sem dúvida (d)o analista, mas e o que corre no seu leito

Que confusão, troncos, calhaus, despojos industriais e humanos, água da nascente, água da chuva, tempestades, ventos, erosão, lixo… mais água, peixes, plantas marinhas; em constante transformação, com a dinâmica própria dos fenómenos naturais e dos menos naturais, ou até mesmo patológicos! Dentro do leito do rio são arrastados todos estes corpos e elementos que lá caiem, uns visíveis à superfície, outros ocultos na profundidade, transformando, na sua passagem, mais ou menos desenfreada, o leito e as margens do rio. Por vezes, raramente por felicidade, há inundações nos invernos rigorosos, escuros e chuvosos, em que os deuses parecem estar zangados, mas o rio continua lá na sua função contentora.

Assim se sente o analista muitas vezes; e é por já nos termos sentido assim e por termos também já sentido muitas vezes alguns dos nossos supervisandos aflitos nesta luta para compreender e integrar os fenómenos contratransferenciais, que vos queremos falar deste tema, designadamente na relação do conceito de contratransferência com os de identificação projetiva e de contraidentiicação projetiva.

Esta temática tem trazido consigo, ao longo dos anos uma certa falta de clareza, precisão e consensualidade entre os autores.

Tentaremos clarificar e distinguir os conceitos de contratransferência, identificação projetiva e contraidentificação projetiva, a partir da leitura reflexiva dos textos Estudos sobre Técnica Psicanalítica de Heinrich Racker, Teoria da Identificação de León Grinberg e Modelos de Interpretação em Psicanálise de Carlos Amaral Dias.

Concluiremos com uma proposta integrativa dos conceitos de contratransferência, identificação projetiva, contraidentificação projetiva e enactment, esperando poder enriquecer a prática psicanalítica no uso deste poderoso instrumento facilitado pelo fenómeno contratransferencial.

 

2. Os primórdios da Contratransferência

Na sua extensa obra, Freud apenas empregou a palavra contratransferência três vezes, uma no artigo "As perspetivas futuras da terapia psicanalítica" de 1910 e as outras duas em "Observações sobre o amor transferencial", em 1915, apesar desse assunto aparecer muitas mais vezes abordado nas cartas trocadas com os seus colegas ou na própria obra, sem o nomear.

Em todas as referências considera que o que surge no psicanalista por influência do paciente sobre os seus sentimentos inconscientes (FREUD, 1910) deve ser considerado um obstáculo ao tratamento, necessitando o psicanalista de reconhecer e ultrapassar a sua contratransferência para trabalhar eficazmente (Carta a Ludwig Binswanger de 1913, in ROUDINESCO & PLON,1998).

Apesar disso, não deixa de reconhecer que essa comunicação inconsciente a inconsciente é essencial para o progresso do processo psicanalítico, tal como no sonho, pois permitirá ao psicanalista reconstruir o inconsciente do paciente a partir dos derivados inconscientes transmitidos através da elaboração da associação livre daquele (FREUD, 1912).

Há razões para acreditar que Freud e seus colegas refletiram mais sobre a contratransferência do que o que foi publicado, como se poderá inferir por exemplo duma carta de Freud para Jung de 1911, onde é dito que o artigo que julga necessário sobre a contratransferência não deveria ser impresso nem circular como cópia (MANFREDI, 1998).

Parece-nos assim que Freud já teria essa perspetiva da contratransferência como um fenómeno total que abarcaria tudo o que surge no inconsciente do psicanalista, útil para aceder ao inconsciente do paciente (instrumento psicanalítico), mas perigoso, optando por sublinhar este vértice de obstáculo face às circunstâncias da época. Não nos parece muito diferente da perspetiva mais defendida atualmente, salvaguardadas as circunstâncias da época e da evolução do conhecimento. A genialidade de Freud confirma-se aqui mais uma vez.

Nos quarenta anos seguintes a tónica continuou a acentuar o vértice de obstáculo deste conceito.

Apesar disso, vários autores foram desenvolvendo a abordagem do fenómeno através da teoria da intuição, como Ferenczi em 1919, Stern em 1924 ou Deutsch em 1926 (ETCHEGOYEN, 1987; ZIMERMAN, 1999). Também Winnicott em «Ódio na contratransferência» sublinha a importância da evocação da contratransferência negativa na análise de pacientes muito perturbados (ETCHEGOYEN, 1987; JACOBS, 1999).

Com o alargamento do tratamento psicanalítico àqueles pacientes mais regredidos assim como à população infantil, tornava-se imperativo encontrar uma forma mais eficaz de comunicar com o mundo interno destes pacientes, tendo sido necessário ressuscitar as tímidas ideias que tinham de algum modo reconhecido a qualidade de instrumento psicanalítico na contratransferência.

Na impossibilidade de falar dos desenvolvimentos de todos os autores da comunidade psicanalítica que se têm debruçado sobre o tema, focar-nos-emos naqueles que mais contribuíram para clarificar esta tríade concetual no nosso olhar sobre o rio contratransferencial: Heinrich Racker, León Grinberg e Carlos Amaral Dias.

São os trabalhos apresentados por Heinrich Racker (1986) em 1948 em Buenos Aires e por Paula Heimann (1995) em Zurique em 1949 que, vêm trazer para um lugar de grande destaque o conceito de contratransferência, passando o psicanalista de observador a participante ativo no campo relacional.

Em 1949, Paula Heimann (1995) lê pela primeira vez o artigo On Counter-transference, posteriormente publicado, em 1950, no qual apresenta a contratransferência como um importante instrumento de compreensão do inconsciente do analisando e já não como um obstáculo ao progresso do tratamento, considerando-a uma "criação do paciente", por identificação projetiva.

Sublinha ainda que a contratransferência representa a totalidade dos sentimentos do analista enquanto resposta emocional ao paciente.

 

3. Heinrich Racker e o conceito de "Contratransferência Total"

Por sua vez Heinrich Racker, o autor que mais consistentemente estudou e divulgou o conceito de contratransferência, vem reforçar definitivamente o papel daquele fenómeno como instrumento para a compreensão do inconsciente do analisando.

Afirma que, do mesmo modo que existe no paciente um disposição para a transferência, por um lado, e por outro as vivências atuais e analíticas, também existe no analista uma disposição contratransferencial, assim como as vivências atuais e analíticas, acrescentando que é justamente essa fusão entre o passado e o presente, num contínuo enlace entre a realidade e a fantasia, o interno e o externo, o consciente e o inconsciente, que torna necessário um conceito que inclua a resposta psicológica global do analista, que propõe denominar contratransferência total, embora se possam separar dentro desse conceito ou aspetos mais específicos (RACKER, 1986).

Racker(1986) distinguiu a contratransferência concordante ou homóloga em que existe uma identidade aproximada entre partes do sujeito e partes do objeto e a contratransferência complementar em que o analista se pode identificar a objetos internos do paciente, associando a concordante à empatia através da contratransferência positiva sublimada e a complementar à reativação de modos primitivos recíprocos.

No entanto, o uso da contratransferência dependerá da capacidade do analista para se identificar e consciencializar quer as tendências e defesas quer os objetos internos do analisando, podendo interpretar em vez de agir, o que permitirá a mudança (RACKER, 1986).

A contratransferência terá, nas palavras de Racker(1986)., uma tripla leitura como obstáculo, instrumento de compreensão do paciente e campo onde o analisando pode adquirir uma experiência viva e diferente da que teve originalmente.

Na perspetiva deste autor são os conteúdos projetados transferencialmente pelo analisando, através de identificação projetiva, que permitem o acesso ao seu mundo interno.

Neste ponto do rio da contratransferência qual será então o papel deste encontro com a identificação projetiva e com a contraidentificação projetiva?

 

4. León Grinberg e o encontro com a identificação projetiva e a contraidentificação projetiva

León Grinberg (2001) considera que no processo de identificação intervirão distintos fenómenos, agrupados em duas categorias: a das internalizações e a das externalizações, onde inclui a identificação projetiva.

Grinberg (2001) destaca na teoria de Bion, o papel da identificação projetiva como percursor da atividade de pensar e a sua intervenção na formação do "aparelho para pensar os pensamentos", através da interação de dois mecanismos, por um lado a relação dinâmica entre conteúdo e continente e, por outro lado, a relação dinâmica entre as posições esquizoparanóide e depressiva.

Este autor considera que a identificação projetiva se carateriza pela dissociação e projeção posterior de partes dissociadas do self (partes concretas do eu e dos objetos internos que contém as emoções) no interior dos objetos externos.

Propõe também uma classificação das identificações projetivas quanto às suas qualidades, com diferentes tonalidades e intensidades, desde o mais saudável até ao mais patológico, conforme figura 1, abaixo

Figura 1 – Classificação das identificações projetivas segundo León Grinberg

 

 

Grinberg destaca que durante o processo psicanalítico se desenvolve um contínuo interjogo de projeções e introjeções, por parte de ambos os participantes, distinguindo dois processos coexistentes, um em que o analista é sujeito ativo desses movimentos enquanto noutro é objeto passivo das introjeções e projeções do paciente.

Quando objeto ativo, se são convocados os seus conflitos internos ou fantasmas, resultará uma perturbação da interpretação, a não ser que o analista o consciencialize oportunamente e consiga evitá-lo. Se pelo contrário a contratransferência estiver convenientemente sublimada será o melhor instrumento para detetar, reestruturar e formular o interpretável.

Por outro lado, continua Grinberg, quando é objeto passivo, é o analisando que projeta de forma ativa, ainda que inconsciente, as suas vivências internas no analista, que funciona como um recetor passivo, podendo a sua reação ser devida aos seus próprios conflitos ou ansiedades, reativados pelo material do paciente, ou, doutro modo, independentemente das suas próprias emoções, ser uma resposta exclusiva ao que o analisando projetou nele.

Grinberg afirma que, neste caso, é como se o analista deixasse de ser ele próprio, para se transformar, sem o poder evitar, no que o paciente, inconscientemente quis que ele se convertesse. É a esta resposta que Grinberg propõe chamar contraidentificação projetiva, como resposta específica à identificação projetiva do paciente, vendo-se o analista obrigado a desempenhar um papel que, de forma ativa, ainda que inconsciente, o analisado forçou dentro de si.

Retomando a contratransferência complementar proposta por Racker, considera que esta se baseia numa atitude emocional devida a remanescentes neuróticos do analista, reativados pelos conflitos colocados pelo paciente.

Defende que, ao contrário, na contraidentificação projetiva a reação do analista é independente dos seus próprios conflitos e corresponde à intensidade e qualidade da identificação projetiva do analisando, tomando o analista a seu cargo um mecanismo que pertence ao paciente, enquanto na contratransferência complementar a reação corresponde ao próprio analista.

Grinberg considera que, tal como as outras formas de contratransferência, a contraidentificação projetiva pode ser o ponto de partida da possibilidade de vivenciar um espetro de emoções que, bem compreendidas e sublimadas, se podem converter em instrumentos técnicos eficazes para entrar em contacto com os níveis mais profundos do material dos analisandos.

Por esse motivo, Grinberg inclui na "função psicanalítica" do analista poder regressar, deixar-se invadir por e "colocar-se" dentro das produções do paciente, convivendo com ele e com os afetos contidos nessas trocas, podendo depois voltar à realidade externa, do mesmo modo que o poeta faz uma incursão no mundo da fantasia, mas encontra o caminho de regresso à atualidade, como assinalava Freud.

 

5. Carlos Amaral Dias e a sua proposta do Campo Hipotético de Construção

A partir da teoria de Bion sobre a atividade de pensar, no livro "Modelos de interpretação em psicanálise", Amaral Dias afirma que todo o ser humano pensa em dois lados, dentro de si próprio (o que se consegue usando a capacidade de pensar, a função simbólica e a linguagem) e dentro dos outros (esperando que o outro pense por si, em tudo aquilo que escapa ao nível do campo de significação). Esta última situação seria representada pelo modelo metafórico materno em que é a mãe que pensa pelo seu bebé enquanto este não tem capacidade para pensar as suas experiências emocionais. Diz que é a parte de nós que não tem condição de suportar o sofrimento emocional ligado à continuação do percurso de pensar, que se "faz pensar" dentro do outro, por identificação projetiva.

Mais à frente, a propósito da génese da interpretação, diz que esta se fundamenta no encontro entre a teoria e a anedota, podendo a anedota ser proveniente da contratransferência, da relação analítica ou do material produzido/trazido pelo paciente.

Defende que a contratransferência pode vir por dois níveis, o da quimera psicológica (que o analista vai construindo na escuta) e o da contraidentificação projetiva, mecanismo utilizado por alguns pacientes para fazer com que o analista viva aspetos da sua mente, com os quais, de outra forma não poderia entrar em contacto.

Para integrar todos estes aspetos Amaral Dias propõe um campo global onde tudo é sujeito ao campo do sentido e onde o destinatário final é o analisando, mas onde o crescimento da pessoa do analista como analista também é suportado por esse campo simbólico gerado quando dois se juntam para criar um terceiro para benefício dos três.

A contratransferência passa assim a ter o novo sentido de se constituir como "… aquilo que eu observo dentro de mim na relação analítica, que, quando formalizado faz parte da mente do analisando" (DIAS, 2003).

Para melhor compreender a sua proposta, apresenta um modelo, adaptado e modificado a partir de Kusnetzoff (1980), onde pretende esquematizar a interpretação como transformação.

Figura 2 – Modelo proposto por Amaral dias para esquematizar a interpretação como transformação

 

 

Amaral Dias concetualiza assim um espaço potencial na mente do analista, que aproxima do conceito Winnicottiano, a que chama Campo Hipotético de Construção, que é constituído em primeiro lugar pela análise do analista, em segundo pelos modelos e teorias que o analista tem sobre o que é a psicanálise (contratransferência a priori) e em terceiro pela própria ideologia do que é a psicanálise. Este campo é hipotético no sentido em que gera as hipóteses de trabalho que vão surgir durante todo o processo analítico. Na sua visão a identificação projetiva, porque desvela o material oculto e a rêverie, porque o revela, são os meios de que o analista se serve para criar este Campo Hipotético de Construção.

Para além do campo do analista, considera naturalmente o campo do analisando, assim como o campo que se instala entre os dois, o campo da relação ou o campo analítico ( dos Baranger ou o terceiro analítico de Ogden), cuja dinâmica se daria pelas vias da transferência e da transmissão. As linhas que dividem os espaços do analisando, da relação analítica e do analista são deliberadamente a tracejado para dar nota da inter-relação entre essas áreas.

Na figura a transformação aparece no topo como resultado da dinâmica do encontro analítico.

Do lado esquerdo aparece a abstração de Bion da relação continente conteúdo.

O acontecimento histórico-narrativo faz parte do campo do analisando, a transferência e a transmissão fazem parte do campo da relação analítica e o campo hipotético da construção, operado pelas vias da identificação projetiva e da rêverie fazem parte do espaço do analista.

As setas mostram a interação e o sentido da mesma. Os acontecimentos histórico-narrativos estão ligados à significação e à transferência (canal por onde passa a emoção), sendo, por sua vez a transmissão (canal por onde passa o significado) que viabiliza a passagem à significação. Depois de rompida a narrativa elucidada na transferência pelo sujeito, é substituída por uma nova versão que é ressignificada na transmissão, afirmando Amaral Dias que elucida e desintoxica a emoção na transferência e ressignifica na transmissão, fora da transferência, através da nova relação, completaríamos nós.

Por outro lado, o espaço hipotético da construção, campo do analista, gera-se pela identificação projetiva e pela rêverie. Pela identificação projetiva o analista desvela o material oculto e pela rêverie o revela, podendo o analista ter acesso aos três campos como fonte para a sua interpretação.

Amaral Dias considera neste seu texto inovador que o trabalho do psicanalista é desfazer o grande equívoco que considera ser a transferência, através da interpretação, podendo esta derivar de três campos: do que se passa no analisando, do que se passa no analista e do que se passa na relação, representados pelos movimentos transferenciais e contratransferenciais de interação entre aqueles campos.

Nesse sentido, relembrando o texto de Freud de 1905 "Psicoterapia" e sua evocação da visão de Leonardo da Vinci sobre a arte, poderemos concluir que a transferência e a contratransferência, ao contrário da pintura que se faz pela via di porre , operam pela via di levare, na medida em que o desfazer do equívoco não introduz nada de novo, mas antes desvela e revela, retirando, como a escultura, tudo o que encobre a "estátua" escondida no interior da "bloco de pedra" inicial.

 

6. Conclusão: Encontros e Desencontros entre a trilogia contratransferencial

Depois desta curta viagem, navegando pelo rio da contratransferência, num navio observatório e reflexivo, em que pudemos observar através de observatórios diferentes, as mudanças dinamizadas pela interação entre as margens continentes e os seus variados conteúdos sempre em transformação, pensamos ter conseguido encontrar um modelo representativo desta dinâmica contratransferencial, capaz de integrar e clarificar a inter-relação entre os conceitos de contratransferência, identificação projetiva e contraidentificação projetiva, relacionando-os ainda com os de enactment e rêverie.

Acreditamos ter desvelado e poder revelar-vos agora o sentido por nós encontrado neste percurso, que será válido, para nós, enquanto outros encontros com o desconhecido não voltarem a inquietar-nos, criando novos conflitos e mudanças.

A partir de toda esta dispersão conceptual e do seu processamento pela nossa "rêverie" pudemos conceber um modelo que nos ajuda a interrelacionar todos estes conceitos incluídos e relacionados com a contratransferência, ilustrados na figura 3 a seguir.

Figura 3 - Modelo de integração de conceitos associados à contratransferência

 

 

Começaremos por sublinhar os aspetos mais relevantes desta viagem.

Consideramos que a forma como Racker conceptualiza a resposta psicológica global do analista, incluindo, por um lado, uma predisposição contratransferencial e, por outro, as vivências atuais e analíticas, num fenómeno que denomina contratransferência total, vem definitivamente clarificar e confirmar a tripla função de obstáculo, instrumento analítico de compreensão e campo analítico em que florescerá a nova relação.

A distinção entre contratransferência concordante, onde o analista se identifica ativa e empaticamente numa contratransferência positiva sublimada, e contratransferência complementar, em que o analista é objeto passivo das projeções dos objetos internos do analisando, mas reage igualmente com uma atitude emocional colorida pelos seus próprios conflitos internos, constituiu passo importante para separarmos as águas.

Foi esse passo que levou Gringberg a criar o novo conceito de contraidentificação projetiva, reação específica à forma como o analisando "forçou" no analista a sua identificação projetiva, independentemente dos seus próprios conflitos, reagindo com um mecanismo que pertence ao paciente, ao contrário do que acontece na contratransferência complementar em que a reação corresponde ao próprio analista.

Quer a contratransferência concordante, quer a contratransferência complementar, conjunto que consideramos corresponder ao que Amaral Dias denomina a quimera psicológica, quer ainda a contraidentificação projetiva fazem parte da contratransferência total.

Da leitura do modelo proposto por Amaral Dias, acreditamos que no campo da relação analítica, a contratransferência correrá implicitamente pelos canais por onde passam as emoções, em conjunto com a transferência.

A partir desse modelo consideramos ainda que a rêverie, tal como a propõe enquanto o mecanismo que revela, seria a forma mais saudável do analista transformar o que a contraidentificação lhe faz sentir, mas não encenar, na nossa opinião, podendo revelá-la quer na atitude emocional contratransferencial quer na transmissão interpretativa.

Propomos diferenciar o conceito de contraidentificação projetiva, enquanto compulsão a repetir "forçada" pelo paciente mas não agida, quando atempadamente travada pela rêverie, compreensão e sublimação, com um resultado de desenvolvimento para o processo analítico.

Quando não acontece esse processo sanígeno e essa compulsão é agida, propomos que se enquadre no conceito de enactment, em que o analista é arrastado a encenar uma fantasia que (não lhe pertencendo inicialmente) se torna interpessoal (OGDEN, 1992).

Como Racker, Grinberg e Amaral Dias estamos de acordo que todas estas modalidades de contratransferência permitem ao analista experimentar um espetro de emoções, que bem compreendidas e sublimadas/transformadas, constituem verdadeiros instrumentos técnicos de acesso aos níveis mais profundos do material analítico, que, doutro modo, seriam inacessíveis, tal como, na escultura, o desvelar da estátua pela via di levare.

As margens são o analista/continente e os conteúdos, partilhados entre analista e analisando, sempre em transformação, serão o campo da relação analítica; este rio contratransferencial, como todos os outros rios, diz o ditado popular, irá dar ao mar e assim o crescimento será mútuo porque, como diz o poeta "Nenhum rio separa, antes costura os destinos dos viventes." (COUTO, 1992, p.89).

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: cristinanunes@psicris.pt

Recebido em: 20/05/2020
Aprovado em: 10/06/2020

 

 

SOBRE A AUTORA

Cristina Nunes
Licenciatura em Psicologia pela Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa.
Pós-graduação em Psicoterapia do Casal e Aconselhamento Familiar.
Especialização em Psicoterapia Psicodinâmica pela Sociedade Portuguesa de Psicologia Clínica (SPPC).
Especialização em Psicanálise pela Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP).
Psicanalista, Membro Didata, Formadora e Supervisora da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica (AP), fazendo parte dos órgãos diretivos desde a sua fundação, exercendo atualmente a função de Presidente.
Presidente do Comite Organizador do XXI International Forum of Psychoanalysis – Psychoanalytic Encounter: Conflict and Change. Lisboa 5 a 8 de fevereiro de 2020.

 

 

1 Trabalho apresentado painel central 6, XXI INTERNATIONAL FORUM OF PSYCHOANALYSIS, PSYCHOANALYTIC ENCOUNTER - CONFLICT AND CHANGE, ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa 5-8 de fevereiro de 2020.

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