SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número53Navegando pelo rio da contratransferência: Encontros e desencontros com a identificação projetiva e com a contraidentificação projetivaO encobrimento da Cobra Norato: do indizível à Bejahung primitiva e à negativa freudiana índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.53 Belo Horizonte jan./jun. 2020

 

XXI FÓRUM INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE - ENCONTRO PSICANALÍTICO: CONFLITO E MUDANÇA

 

Psicanálise e narcisismo: supervisões coletivas em clínica social psicanalítica1

 

Psychoanalysis and narcissism: collective supervisions in a psychoanalytic social clinic

 

 

Anchyses Jobim Lopes

I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
II Universidade Estácio de Sá

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Origem do CBP e do CBP-RJ. Surgimento em 2000 da Articulação como movimento contrário a regulamentações espúrias da psicanálise. Concordância dos participantes da Articulação sobre pontos comuns entre sociedades com diferentes leituras freudianas: tripé análise pessoal/curso teórico/supervisão, transmissão artesanal e laica. Obliteração e redescoberta das clínicas sociais de psicanálise dos anos vinte. Tripé na formação do CBP-RJ. A criação da clínica social do CBP-RJ, o Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP) e o Núcleo de Estudos Psicanalíticos da Infância e Adolescência (NEPsi). Exclusividade dos candidatos para atendimento dos pacientes da clínica social. Supervisão como análise quarta. Dinâmica das supervisões em grupo no CAP. Narcisismo do supervisor e dos candidatos mais tolhidos pela supervisão grupal. Características da demanda de pacientes. Clínicas da migração e da violência. Tolhimento do narcisismo diante dessas clínicas. Apresentação em Fórum da IFPS de trabalho e de caso clínico.

Palavras-chave: Tripé, Laicidade, Clínica social, Análise quarta, Supervisão coletiva, Narcisismo, Feridas narcísicas.


ABSTRACT

Origin of CBP and CBP-RJ. Emergence in 2000 of Articulation as a movement contrary to spurious regulations of psychoanalysis. Concordance of Articulation participants on common points between societies with different Freudian readings: tripod personal analysis / theoretical course / supervision, craftsmanship and laicity. Obliteration and rediscovery of social psychoanalysis clinics of the twenties. Tripod and training at CBP-RJ. The creation of the CBP-RJ social clinic, the Psychoanalytic Service Center (CAP) and the Child and Adolescent Psychoanalytical Studies Center (NEPsi). Exclusivity of candidates for the care of social clinic patients. Supervision as fourth analysis. Dynamics of group supervision at CAP. Narcissism of supervisors and candidates best reduced by group supervisions. Characteristics of patient demand. Migration and violence clinics. Shrinking narcissism in front of these clinics. Presentation in IFPS forums of work and social case.

Keywords: Tripod, Secularism, Social clinic, Fourth analysis, Collective supervision, Narcissism, Wounds to the primary narcissism.


 

Pode-se prever que
em algum momento
a consciência da sociedade despertará,
advertindo-a de que o pobre
tem tanto direito a auxílio psíquico
quanto hoje em dia já tem a cirurgias vitais.

SIGMUND FREUD, 1918.

 

Início: o CBP e o movimento articulação das entidades psicanalíticas brasileiras

O Círculo Brasileiro de Psicanálise foi fundado em 1956, a partir do Círculo de Viena, criado em 1947, uma das sociedades fundadoras do IFPS. Atualmente, há seis círculos filiados a ele em todo o País. O Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ) – tema do presente artigo – foi criado em 1981, resultante de uma divisão do primeiro círculo na cidade do Rio de Janeiro, fundado em 1969.

No ano 2000, várias sociedades psicanalíticas brasileiras foram apresentadas ao material sobre instituições que se diziam psicanalíticas e reconheceram a necessidade de se unirem contra a ameaça dos mecanismos regulatórios espúrios à prática psicanalítica. Mecanismos que estavam sendo propostos no Congresso Nacional. Essas tentativas vinham de partidos políticos ligados a grupos religiosos. Assim, no ano 2000, foi criado o Movimento de Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras. Atualmente reúne mais de 20 instituições psicanalíticas de todos os tipos, desde a IPA a sociedades lacanianas que excluem qualquer outra leitura da obra freudiana.

A Articulação não é uma entidade formal, mas um movimento em defesa do secularismo e da liberdade contra uma regulamentação governamental. E mantém seu status de não oficial para evitar se tornar, ela mesma, uma instituição suprema que regule toda a psicanálise no Brasil. Não possui registro em cartório, não tem conta em banco nem uma sede. Existe enquanto se reúne e, muitas vezes, dessas reuniões surgem ações políticas.

Além de seu trabalho ininterrupto nos últimos 20 anos, várias vezes diretamente no legislativo federal, e das diferentes leituras da obra freudiana, a Articulação chegou a alguns consensos sobre as premissas básicas para a transmissão da psicanálise. Um deles é o tripé indissolúvel – análise pessoal / teoria / prática clínica. Tripé que se consolidou nos anos vinte do século passado com a criação na Europa de clínicas públicas de psicanálise. Outro consenso é que a formação psicanalítica é artesanal. No sentido de que as sociedades psicanalíticas são pequenas instituições, nas quais o conhecimento teórico e a técnica terapêutica são transmitidos por meio de seminários, debates e colaboração por pares. E são esses pares os donos das sociedades psicanalíticas. E, independentemente da linha teórica, a transmissão da psicanálise desse artesanato leva de quatro a seis anos para completar seus requisitos mínimos.

Assim, as duas diretrizes básicas que Freud deixou são reafirmadas. Em primeiro lugar, a obrigação do candidato a psicanalista passar por um longo período de análise pessoal. É o requisito mais difícil de cumprir. Já escrevera Freud sobre os admiradores da psicanálise nas  Conferências introdutórias a psicanálise – terceira parte (teoria geral das neuroses), naquela designada Resistência e recalque: "Todo mundo está rapidamente disposto a tornar-se adepto da psicanálise – com a condição de que a análise pessoalmente o poupe" (FREUD, [1917] 1978, p. 289, tradução do autor).

A segunda diretriz de Freud foi escrita em uma carta para seu grande amigo Oskar Pfister:

Eu não sei se você notou a ligação secreta entre "Análise leiga" e "Ilusão". No primeiro eu queria proteger a análise dos médicos e no segundo dos sacerdotes [...] uma profissão que ainda não existe, a profissão de curandeiros leigos, que não precisam ser médicos e não devem ser padres (FREUD; PFISTER, 1963, p. 126).

Além do tripé, outros consensos foram obtidos ou redescobertos durante os primeiros anos da Articulação: o que é a psicanálise não se define por uma frase ou por um chavão jurídico e sua transmissão é artesanal e laica.

 

Breve histórico de algumas clínicas sociais

No V Congresso Psicanalítico Internacional, realizado em Budapest em setembro de 1918, pouco mais de mês antes do término da Primeira Guerra Mundial, Freud leu o artigo Caminhos da terapia psicanalítica, publicado um ano mais tarde (FREUD, [1918] 2010), onde afirmou que:

[...] o pobre tem tanto direito a auxílio psíquico quanto hoje em dia já tem a cirurgias vitais. E que as neuroses não afetam menos a saúde do povo do que a tuberculose [...]. Esses tratamentos serão gratuitos. Talvez demore muito até que o Estado sinta como urgentes esses deveres. As circunstâncias presentes podem adiar mais ainda esse momento. Talvez a beneficência privada venha a criar institutos assim; mas um dia isso terá de ocorrer (FREUD, [1919] 2010), p. 217).

O breve, mas potente comunicado de Freud serviu de lema para a criação de várias clínicas públicas de psicanálise, das quais as mais conhecidas foram as de Berlin (1920), Viena (1922), Londres (1926) e Budapest (1931). A partir de sua criação, estruturou-se o tripé: sociedade psicanalítica (membros efetivos), instituto (candidatos-teoria) e clínica (efetivos e candidatos-prática) (DANTO, 2019).

A destruição das instituições e das clínicas psicanalíticas na Alemanha, na Áustria e na Hungria pelo nazismo e fascismo, bem como o exílio de Freud em Londres, deixaram nas mãos de Ernest Jones o destino da IPA. Na qualidade de primeiro grande biógrafo de Freud, Jones também ficou conhecido por suas tendências políticas conservadoras e pouco liberais quanto à sexualidade. Foram apagadas a lembrança de um Freud associado ao partido Social Democrata em Viena e a criação de clínicas sociais. E cristalizou-se situação contra a qual Freud se rebelara no comunicado de 1918:

Na abundância de miséria neurótica que há no mundo, e que talvez não precise haver, o que logramos abolir é qualitativamente insignificante. Além disso, as condições de nossa existência nos limitam às camadas superiores da sociedade, que escolhem à vontade seus próprios médicos, e nessa escolha são afastadas da psicanálise por todo gênero de preconceitos. Para as amplas camadas populares, que tanto sofrem com as neuroses, nada podemos fazer atualmente (FREUD, [1919] 2010), p. 217).

Os debates da Articulação ajudaram muitos a refletir sobre como a psicanálise no Brasil se transformara em um discurso elitista e acadêmico, frequentemente desprovido de uma prática clínica sólida e inalcançável aos economicamente menos favorecidos.

Ocorreram algumas notáveis tentativas no sentido oposto, como a primeira clínica psicanalítica social no Rio de Janeiro em 1973, a Clínica Social de Psicanálise por Anna Kattrin Kemper, uma das fundadoras dos círculos cariocas, embora fosse instituição independente destes. Kemper faleceu em 1978 e seu continuador foi Hélio Pellegrino. Na gestão de Pellegrino, num dos simpósios promovidos na PUC-Rio pela Clínica Social de Psicanálise em fins de 1980, novamente vem à tona o caso Amílcar Lobo, médico-assistente de torturas durante a ditadura que realizava formação psicanalítica em sociedade filiada a IPA. O que desencadeia uma grande crise na psicanálise do Rio de Janeiro. Apesar da renovação do meio psicanalítico trazida por este episódio, a Clínica Social não teria atingido seu propósito original.

Em realidade o atendimento que se faz a populações marginalizadas é ínfimo e a grande demanda de sua clientela provém de estudantes e intelectuais da Zona Sul do Rio de Janeiro (COIMBRA, 1995, p.112 ).

Após o falecimento de Pellegrino em 1988 - talvez antes - a Clínica Social foi definhando, até acabar em 1991. Ao final do século XX e início do XXI, era fácil constatar que a principal prática e ensino dos psicanalistas continuava privilegiando clientes das classes média e alta. As tentativas por grupos religiosos de se apossarem do nome da psicanálise por meio de uma regulamentação, escancarava o enorme vazio não ocupado pelos psicanalistas 'sérios' e preocupava muitos dos participantes da Articulação.

 

O CBP-RJ

Apesar de atualizações e modificações menores desde que o CBP-RJ foi criado, seu modelo de formação psicanalítica inclui: 23 seminários teóricos, a apresentação de um trabalho no final de cada semestre discutindo pelo menos um dos temas que foram introduzidos no período, e dois conjuntos de 50 sessões de supervisão individual com dois supervisores diferentes em seus consultórios particulares, complementados por atividades extracurriculares como cursos curtos, grupos de trabalho, atendimento a conferências, etc. Devo salientar que, desde o início do nosso círculo, geralmente se leva de 4 a 6 anos para completar a formação.

Um ano após a fundação do CBP-RJ surgiu sua clínica social: o Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP). No entanto, para aumentar a prática clínica na formação dos candidatos, e suprir a crescente demanda da clínica social, o círculo adicionou outra exigência em 2005: sessões quinzenais de supervisão coletivas do CAP, que em alguns anos tornaram-se duas supervisões semanais para pacientes adultos, e mais uma para crianças e adolescentes. Mudanças de base que foram realizadas pela coordenadora do CAP, Maria Leda Jucá Sobreira de Sampaio.

Anos depois surgiu uma terceira supervisão grupal, com a criação do Núcleo de Estudos Psicanalíticos da Infância e Adolescência (NEPsi), por iniciativa de Anna Lucia Leão López, para atendimento de crianças e adolescentes. A partir de 2005 as consultas de encaminhamento preliminar – triagens – e muitos dos atendimentos durante os primeiros cinco anos seguintes, passaram a ser realizados na sede do CBP-RJ. Além das duas supervisões individuais obrigatórias, foram acrescentadas duas a três supervisões coletivas, sem estender o tempo da formação, que geral oscila entre 4 e 6 anos, o tempo total de supervisão dobrou para mais de 200 horas.

Apesar de a maior parte da procura ainda ser de pessoas de classe média, o número de clientes de baixa renda aumentou bastante. O resultado foi o aumento exponencial da demanda de pacientes. Desde 2005, foram realizadas mais de 1.200 consultas de encaminhamento preliminar. A expansão do trabalho clínico levou a reflexões teóricas relevantes, que foram apresentadas em um extenso artigo publicado em 2015 (LOPES, 2015). Resumiremos algumas delas.

 

Supervisão e análise quarta

Os grupos surgiram a partir da boa lembrança desse modo de supervisão no internato e na residência médica, realizadas no Instituto de Psiquiatria da UFRJ. À época, muitos dos supervisores eram também psicanalistas, e os supervisionandos, de origem multidisciplinar.

Essas reflexões também evocaram nossa primeira experiência de supervisão, também grupal, para clínica particular. Ministrada por uma psicanalista da I.P.A. que alertou que a supervisão na psicanálise não é como na medicina. Na verdade, é uma análise de ego. Não posso deixar de discordar parcialmente. A supervisão não é apenas uma análise do ego, mas, na verdade, é uma forma de análise.

É por isso que Valabrega (apud STEIN, 1992) usa a expressão "quarta análise". A primeira análise é a entre paciente e candidato; a segunda é a do candidato com seu analista; e a terceira, o deste analista em sua própria análise pessoal. A supervisão constitui a quarta análise. Com todas as quatro análises derramando transferência e resistência, amor e ódio. As sobras da própria análise do candidato configuram que a rede cria o desejo de outras análises que, transbordando, resultam na formação psicanalítica. E essas quatro análises são as criadoras do desejo – sobras, restos inanalizáveis – que movem a prática clínica necessária à conclusão do treinamento psicanalítico. Além disso, é a razão de ser de uma sociedade psicanalítica, enquanto necessária para a transmissão da psicanálise.

No entanto, a supervisão do grupo, como grupo como todos os outros, também invoca que todos os fenômenos grupais descritos por Freud, do Totem e tabu a Moisés e o monoteísmo. A quarta análise nunca é completamente desimpedida da situação institucional porque o supervisor (membro da sociedade) nunca se desvinculou do papel de uma figura paterna, incorporando a lei. Por mais liberal e supostamente mantido apenas pelo desejo de análise, trata-se de discurso oficial da instituição, na verdade ela sempre atua um terceiro na relação entre o supervisor (analista) e o candidato supervisionado (paciente).

Stein (1992) fala da função de supervisão do supervisor – ainda com visível desconforto e uma dose de crítica. Inevitavelmente, o supervisor tem poder sobre o candidato. A supervisão institucional sempre tem alguns remanescentes dos antigos problemas da I.P.A. E o mais famoso é o da análise didática, necessária para todo candidato a analista, mas jamais explicada por Freud de que seria composto esse "didática". Porque em realidade nada mais deveria ser do que uma análise como qualquer outra. As análises didáticas ou de controle são muito criticadas. Era o analista quem tinha o poder de decidir quando o candidato poderia participar de seminários e quando ele era capaz de ter seus próprios pacientes. Relatórios obtidos na análise do candidato podiam ser levados a um comitê, que tinha o poder de desligá-lo da formação. A ameaça de poder concretamente incorporada pelo analista didático evidentemente inibia sua livre associação. O analista didático faz o candidato perder a liberdade de discordar e conscientemente suprimir suas opiniões. Um eu mais saudável se defende com repressão inconsciente, mas um eu mais cindido ou perverso com a criação ou o crescimento de um falso self.

Os mesmos problemas da antiga análise didática se repetem na relação de supervisor de candidatos, E sendo uma quarta análise, podem ser amplificados na supervisão do grupo. Opiniões e interpretações do supervisor e de outros colegas candidatos do grupo podem ser vividos como perseguidoras e competitivas. Uma luta pelo amor e a eleição como primogênito pelo pai primevo, ou de desafio a ele. Mais ainda: em uma clínica social, onde o bem-estar do paciente deve estar acima da necessidade de formação do candidato. Em casos extremos, o candidato pode até ser solicitado a passar mais tempo em sua análise pessoal antes de atender mais pacientes. Assim como nas antigas análises didáticas, o supervisor realmente possui poder sobre o candidato.

Em nossa sociedade, cada supervisão de grupo dura cerca de 90 minutos, duas vezes mais do que as sessões individuais de supervisão. O que torna mais fácil – e perigoso – para o supervisor narcisisticamente colocar-se no papel de um professor acadêmico. Uma armadilha perigosa evocada pelo mesmo sujeito suposto saber, agora de conhecimento do supervisor em relação a qualquer paciente do candidato. E por masoquismo e medo do supervisor, que tem poder de fato sobre ele, o candidato psicanalítico pode se entregar a essa submissão.

As supervisões em grupo, por outro lado, podem cortar grande parte desse narcisismo tanto do supervisor quanto do candidato. Permitir que colegas do grupo ofereçam informações sobre o caso clínico também reduz consideravelmente o tempo de fala do supervisor. O que parece fácil para um trabalho onde a tarefa principal é ouvir. Exceto pelo fato de que a cadeira do analista na sala de consultório é um assento muito bom para ir de suposto saber ao papel daquele que acha que ele realmente possui o saber da verdade e o que é melhor para o outro.

Na supervisão de grupo, a fala deve ser compartilhada. O pai totêmico tem que oferecer a maior parte de seu poder – a fala – para os filhos da horda, sofrer feridas narcísicas e castração. Assim como para desempenhar um papel feminino na distribuição do tempo de fala, o mais uniforme possível entre seus filhos, os irmãos candidatos. Como também, à medida que as contribuições dos candidatos fluem, para se entregar à atenção flutuante. O grupo está livremente associando. Cabe ao supervisor, a partir do material em si evocado, apenas traçar os vínculos.

É frequente que a indicação do Círculo para encaminhamento de novos pacientes seja feita por outros pacientes ou ex-pacientes. Muitas vezes por cônjuges, namorados, pais, filhos, amigos próximos. Por razões éticas e para evitar interferências entre os casos clínicos, quando ambos os terapeutas estão presentes no mesmo grupo, é comum o terapeuta cujo caso não esteja em discussão se retire da sala durante a apresentação e a discussão do caso.

Um número variável, mas significativo de candidatos participa rotineiramente de mais de uma das supervisões do grupo. Aparentemente, pelo mesmo princípio da não contaminação, durante os primeiros anos da prática da supervisão do grupo, era também norma que cada caso deveria ser restrito a um dos supervisores de grupo ou a um dos supervisores individuais. Essa regra acabou sendo quebrada por alguns dos candidatos. Por motivos práticos, não era possível saber quais casos eram apresentados em quais supervisões de grupo, nem saber se aqueles levados às individuais, estavam sendo apresentados nos grupos. Vários casos começaram a ser apresentados em ambas as supervisões de grupo para pacientes adultos.

Finalmente, um candidato, logo após a discussão de um caso com o supervisor individual em seu consultório, levou o caso ao debate de supervisão do grupo com o mesmo supervisor, sem ter discutido antes com o supervisor que faria isso. As conclusões do grupo foram bem diferentes das da supervisão individual.

Eventualmente, concluímos que a apresentação do mesmo caso em diferentes supervisões não implicava a regras de confidencialidade e não contaminação. Era também outra das questões do narcisismo do supervisor. Na verdade, tratava-se apenas de uma defesa para garantir que aos candidatos não fossem mostradas as diferenças entre supervisores ou as contradições do próprio supervisor.

Até agora falamos de narcisismo quase na forma como é usado no senso comum: vaidade. Podemos refletir sobre um sentido psicanalítico mais profundo. Uma unidade investida apenas na identidade ou nos objetos internos, incapazes de alcançar os externos. Em toda relação amorosa há investimento do objeto e investimento narcísico. Freud ressalta que o amor de transferência é amor como qualquer outro. No entanto, para que uma relação amorosa dure, um equilíbrio deve ser atingido entre narcisismo e objeto. Se a supervisão for uma quarta análise, a libido do objeto é necessária para a verdadeira escuta, associação livre e atenção flutuante. Ainda mais para ouvir várias pessoas em grupo. Que nem o adulto que ao mesmo tempo brinca com várias crianças.

A partir das discussões sobre a possibilidade de a análise do grupo ser a verdadeira análise, surge a questão de como seria a transferência de grupo e a contratransferência do supervisor. Mencionamos os trabalhos de Freud em grupos, onde ele descobriu que os grupos criam fenômenos além da psicologia individual. Os irmãos da horda primeva podem se unir para derrubar e devorar o pai. Pais candidatos à totem podem retaliar, ou até mais cedo passarem à violência, por suas supostas feridas narcísicas, para tentar castrar seus filhos. O jogo cessou e deu lugar à atuação.

Klein nos mostrou que, quando uma criança na terapia não pode brincar ou para de brincar, é por causa da ansiedade. Uma das muitas razões pelas quais a análise pessoal é o item mais importante em um treinamento. Para candidatos e supervisores.

 

A clínica pública do CBP-RJ

O CAP exige pagamento pelos pacientes. Por esse motivo, o próprio Círculo é registrado como instituição sem fins lucrativos, não como filantrópica. A maioria dos pacientes que buscam o CAP é constituída por pessoas de classe média ou média baixa. Com frequência não poderiam pagar os honorários usuais em consultório particular e há também um número razoável de pessoas com renda abaixo do que se convenciona rotular como classe média. A coordenação do CAP estipula um mínimo e um máximo que pode ser cobrado. Para além do limite superior, há de ter concordância da coordenação.

Ao longo dos últimos quinze anos, tivemos vários relatos e contatos muitas das clínicas de sociedades psicanalíticas do Rio de Janeiro. Tanto quanto saibamos, o CAP é a única em que os pacientes são direcionados exclusivamente para os candidatos. Salvo alguns pacientes considerado casos com riscos para iniciantes. Por exemplo, o relato de tentativas sérias de suicídio. Ou triagens em que há relato do desejo de fazer formação psicanalítica. Mas são exceções que ao longo de um ano podem ser contadas em menos dedos que os de uma única mão.

Ao longo dos anos tornaram-se frequentes nas triagens e supervisões os relatos de migração interna, usualmente do Nordeste do Brasil para o Rio de Janeiro. Muitas vezes pelo(a) próprio(a) paciente. Outras vezes de serem os filhos de migrantes. Nesse caso associado com a ascensão em termos de educação e ideais de vida. Nessas histórias sempre se notam estressores. São frequentes relatos como o luto incompleto do lugar de origem, a dificuldade em aceitar que terem sido bem-sucedidos economicamente resultou na dificuldade em elos comuns com os filhos, e desses filhos (quando pacientes) na culpa inconsciente por terem triunfado sobre os pais.

Outra série de relatos frequentes é sobre violência. Seja contra crianças, seja associada ou não com abuso sexual infantil. Ou mais genérica: consequências em todas as idades da criminalidade e violência urbanas. Uma escuta dos candidatos muitas vezes facilitada por ações sociais que ultrapassam os muros da sociedade psicanalítica.

A escrita e a apresentação destes temas, resultou na outorga duas vezes do prêmio Benedetti Conci para candidatos de sociedades filiadas IFPS. Primeiro para a candidata Fernanda Ribeiro de Freitas no XIX Fórum Internacional de Psicanálise - Violência, terror e terrorismo hoje: perspectivas psicanalíticas, ocorrido em Nova Iorque, entre 12 e 15 de maio de 2016, pelo trabalho: Consequências traumáticas da violência em crianças e adolescentes de favelas do Rio de Janeiro: alguma diferença de atos terroristas em outras partes do mundo? (FREITAS, 2016).

E a segunda vez, a outorga do prêmio para o candidato Michell Alves de Mello, durante o XX Fórum Internacional de Psicanálise – Novas faces do medo, transformações em curso em nossa sociedade e na prática psicanalítica, realizado em Florença, de 17 a 20 de outubro de 2018, com o trabalho: A mulher dos bolos: reflexões clínicas sobre psicopatologia e migração.

 

Conclusão

Além da dinâmica de um grupo e da posição do supervisor nesse grupo, o narcisismo deve ser levado em conta em uma clínica social também na disparidade socioeconômica entre terapeutas e pacientes. A superioridade monetária do candidato pode descambar para ambos os extremos: triunfar maniacamente por se sentir acima do paciente ou por sentimento de culpa de tolher a necessária posição de neutralidade e manutenção de um eu observador. Deve ser lembrado que em 1924 Freud reservou o termo neurose narcísica para a melancolia (FREUD, 1924, p. 169-170).

Sem jamais questionar a importância de sua obra, ao incentivar a criação de clínicas sociais e o direito da psicanálise de ser benéfica a pessoas economicamente menos favorecidas, Freud estava aplicando a seus discípulos e a si mesmo o fato de que, assim como a mudança da visão de mundo de Copérnico e a revolução sobre a origem e parentesco de todos seres vivos realizada por Darwin, a psicanálise constitui a terceira ferida narcísica infligida ao narcisismo primário, à vaidade humana.

 

Referências

COIMBRA, C. M. B. Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do "milagre". Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995.         [ Links ]

DANTO, E. A. As clínicas públicas de Freud - psicanálise e justiça social 1918-1938. Tradução Margarida Goldstejn. São Paulo: Perspectiva, 2019.         [ Links ]

FREITAS, F. R. Consequências traumáticas da violência em crianças e adolescentes de favelas do Rio de Janeiro: alguma diferença atos terroristas em outras partes do mundo? Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 45, p. 55–64, jul. 2016. Publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise.         [ Links ]

FREUD, S. Neurose e psicose (1924 [1923]). In: ______. O ego e o id e outros trabalhos (1923-1925). Direção geral da tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 163-171. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19).

FREUD, S. Caminhos da terapia psicanalítica (1918). In: ______. História de uma neurose infantil ("O homem dos lobos"), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Tradução: Paulo César de Sousa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 209-219. (Obras completas, 14).         [ Links ]

FREUD, S. Introductory lectures on psycho-analysis (1917 [1916-1917]). In: The Standard the Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, v. XVI. London: The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, 1978.

FREUD, S.; PFISTER, O. Psicanálise e fé: as cartas de Sigmund Freud & Oscar Pfister. Londres: A Hogarth Press e o Instituto de Psicanálise, 1963.         [ Links ]

LOPES, A. J. Sobre o Centro de Atendimento Psicanalítico do CBP-RJ - clínica social, formação e supervisão em psicanálise. Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 43, p. 15-34, jul. 2015. Publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise.         [ Links ]

MENDES, E. R. P. Sobre a supervisão. Reverso, Belo Horizonte, n. 34, p. 49-55, dez. 2012. Publicação semestral do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.         [ Links ]

STEIN, C. Em que lugar, em que enquadre, para que fins falar de seus pacientes. In: STEIN, C. et al. A supervisão em psicanálise. 1. ed. São Paulo: Escuta, 1992. p. 15-35.         [ Links ]

STEIN, C. O psicanalista e seu ofício. São Paulo: Escuta, 1988.         [ Links ]

VALABREGA, J.-P. A análise quarta. In: STEIN, C. et al. A supervisão em psicanálise. 1. ed. São Paulo: Escuta, 1992. p. 41-53.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: anchyses@terra.com.br

Recebido em: 30/04/2020
Aprovado em: 20/05/2020

 

 

SOBRE O AUTOR

Anchyses Jobim Lopes
Médico e bacharel em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Mestre em medicina (psiquiatria) e em filosofia pela UFRJ.
Doutor em filosofia pela UFRJ.
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Professor do curso de formação psicanalítica do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do CBP-RJ.
Supervisor clínico do Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP) do CBP-RJ.
Coordenador do Grupo de Trabalho Sobre Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ.
Ex-professor assistente do quadro principal do Departamento de Psicologia da PUC-RJ.
Ex-professor adjunto da Faculdade de Educação da UCP.
Professor titular III dos cursos de graduação em psicologia e de especialização em teoria e clínica psicanalítica da UNESA.
Um dos editores da revista Estudos de Psicanálise, publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP).
Presidente do CBP-RJ 2000-2004, 2008-2012 e 2014-2018. Presidente do CBP 2004-2006 e 2017-2021.
Delegado do CBP para a International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS).
Um dos editores regionais para a América do Sul da revista International Forum of Psychoanalysis (IFP).

 

 

1 Trabalho apresentado no XXI International Forum of Psychoanalysis, Psychoanalytic Encounter - Conflict and Change, ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa. Lisboa, 5-8 fev. 2020.

Creative Commons License