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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.53 Belo Horizonte Jan./June 2020

 

XXI FÓRUM INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE - ENCONTRO PSICANALÍTICO: CONFLITO E MUDANÇA

 

O encobrimento da Cobra Norato: do indizível à Bejahung primitiva e à negativa freudiana1

 

The concealment of Norato Snake: from the unspeakable to the primitive bejahung and the Freudian negative

 

 

Audrey Gonçalves de Castro

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata o presente estudo do caso clínico de Maria, que procurou tratamento a partir de sintomas de gravidez. Nas entrevistas preliminares, fez relatos da comunidade de onde vinha, próxima ao Rio Xingu. Trouxe a lenda da Cobra Norato, um sonho e uma cena traumática de sua infância. A partir de palavras que negavam seus sentimentos em relação a seu pai, o estudo faz referência ao texto A negativa, de Freud. Trabalha-se, nesse mesmo contexto, as palavras Bejahung, como simbolização primitiva, e Verneinung, como negação, constitutiva do sujeito, abordadas posteriormente por Lacan. O recalque primário é tratado como uma fixação de gozo, através de escritas, no corpo do bebê. O recalque secundário e o retorno do recalcado também são elucidados no texto, na condição do direito e do avesso de uma mesma coisa, conforme a teoria lacaniana. Pontua-se, para concluir o trabalho, que há um núcleo real do inconsciente, não recalcado, onde não há significação, em que os significantes (S1s) não estão encadeados, bem como que o significante S2, que aparece posteriormente, é que faz com que o S1 exista, a partir de sua retroação.

Palavras-chave: Negativa, Bejahung, Verneinung, Pragung, Significante, Fixação, Inconsciente, Real, Recalque.


ABSTRACT

This study is about Maria's clinical case, who looked for treatment based on pregnancy symptoms. In her preliminary interviews, she made reports of the community she came from, near the Xingu River . She brought the legend of Cobra Norato, a dream and a traumatic scene from her childhood. From a sentence that denies her feelings and fears about her father, it is possible to refer to the text The Negative, by Freud. In the same context, the words Bejahung are used, as a primitive symbolization, and Verneinung , as the constitutive negation of the subject, later worked on by Lacan. Primary repression is approached as a fixation on the child's body. The secondary repression and the return of the repression are also elucidated, in the condition of the right and the reverse of the same thing, according to the Lacanian theory. It is pointed out, to conclude the work, that there is a real, unrepressed nucleus of the unconscious, where the signifiers (S1s) are not linked, as well as that the signifier S2 is what makes S1 exist, starting from its retroaction.

Keywords: Negative, Bejahung, Verneinung, Pragung, Significant, Fixation, Unconscious, Real, Repression.


 

Introdução

Maria chegou para sua primeira entrevista preliminar com o seguinte tema central: sintomas sucessivos no corpo, sugestivos de gravidez, sem, no entanto, ter relações sexuais. Ela se sentia deprimida, atormentada. Naquele mês, desenvolveu mastite (inflamação dos seios). No mês anterior, não menstruou. Queixou-se de náuseas e abdômen estufado por meses seguidos.

Relatou ter tido contatos íntimos com meninos que conhecia nas festas de sua comunidade, há muitos anos. Porém, nunca chegou ao ato sexual em si, com nenhum homem, inclusive, na capital mineira, onde morava há seis anos.

Maria disse:

Eu adoro dançar e geralmente escolho meus acompanhantes na pista de dança. Às vezes tenho mais intimidade com alguns, mas não tenho relações sexuais com eles. Não entendo o que vem acontecendo com meu corpo e estou preocupada.

Intervim: "Do que você tem medo?".

E Maria respondeu: "Tenho medo de engravidar. Penso nisso o tempo todo."

Na entrevista subsequente, relatou que, desde os dezessete anos, residia com uma tia em Belo Horizonte. Até então, ela havia morado às margens do rio Xingu, no Estado do Pará. Acabava de se formar em Direito e tinha a intenção de se mudar para Portugal. Por isso, estava providenciando os documentos necessários para acompanhar seu irmão, que havia acabado de conseguir um emprego em Lisboa.

Durante os próximos dois meses de entrevistas semanais, ela se lembrou de uma série de hábitos e rituais de sua comunidade, dos quais ela fazia parte. Sempre descrevia seu pai como um caboclo ribeirinho temente a Deus, um pescador, que criou sua família com muita simplicidade.

Maria trouxe um sonho: "Eu seguia a luz de um velho lampião, que me conduziu a uma cobra gorda" . Disse que a cobra se arrastou em sua direção e ela correu, apavorada.

Intervim: "A cobra era gorda?".

Ela respondeu: "Acho que ela estava grávida, barriguda...".

E continuou: "Tinham muitas cobras onde eu nasci" .

Relatou que, às vezes, elas entravam nas casas. Seu pai não tinha medo de cobras, disse, e ela era como ele, "destemida". E continuou: " Também não tenho medo do meu pai. E não me importo se ele tiver deixado de gostar de mim depois que vim morar com minha tia."

Finalizei a sessão.

 

A negativa (Verneinung)

No texto A negativa, Freud ([1925] 2011, p. 276) apresenta o conhecido diálogo em que o paciente diz a respeito de um sonho: "Você pergunta quem pode ser esta pessoa no sonho... minha mãe não é". Esse "não", diz Freud, pode ser desprezado, pois é exatamente da mãe que se trata.

Nessa linha de raciocínio, o que, à primeira vista, parece se referir a duas "negativas" na fala de Maria, são, de fato, duas afirmações. Corrigindo-se, então, teríamos os seguintes dizeres: tenho medo de meu pai e me importo se ele tiver deixado de gostar de mim.

Trata-se da Verneinung, um operador típico da neurose.

Freud ([1925] 2011, p. 277) escreveu:

A negação é uma forma de tomar conhecimento do que foi reprimido, é um levantamento da repressão (do recalque), mas não, certamente, uma aceitação do reprimido.

Para Freud, o juízo negativo é o substituto intelectual do recalque, e é assim que a negação marca a sua operação, e também a do seu correlato, o retorno do recalcado.

Com outras palavras, posteriormente, no seminário As psicoses , Lacan ([1955-1956] 2010, p. 21-22) vai explicar que

[...] o que cai sob o golpe do recalque retorna, pois o recalque e o retorno do recalcado são apenas o direito e o avesso de uma mesma coisa. O recalcado está sempre aí, e ele se exprime de maneira perfeitamente articulada nos sintomas e numa multidão de outros fenômenos.

Na entrevista subsequente, Maria trouxe uma história da mitologia brasileira, que escutou à beira do rio, durante toda a infância. Sentou-se e logo indagou se eu conhecia a referida história: a lenda da Cobra Norato. Pedi que falasse sobre o que sabia dessa lenda. Então, contou Maria o que diz a lenda.

 

A Cobra Norato

Uma mulher deu à luz duas cobras. Uma delas era o Norato, uma criatura muito amigável, porém, em uma forma de cobra monstruosa. A irmã de Norato era má e fazia atrocidades com as pessoas da aldeia. Então, ele acabou matando-a, para evitar o mal. Sob a luz da lua, Norato era capaz de deixar sua forma de cobra e se transformar em um humano, deixando sua enorme carcaça para trás, perto do rio. Naquelas noites, ele virava um homem bonito, vestia um terno branco, e se dirigia às festas à beira do rio, para dançar com as meninas. No final da noite, ao fim do luar, ele precisava voltar ao rio, colocar sua carcaça e ser cobra novamente. Era uma maldição.

Então, Maria se lembrou de uma cena primária. Uma experiência traumática de sua infância. Acordou à noite com gritos e testemunhou o nascimento do filho de sua irmã. Disse que não sabia, à época, que aquele evento era um parto.

Seu pai nunca dirigiu uma palavra sequer à irmã, pois ela havia engravidado de um pescador que passou pela comunidade, que ela conheceu dançando em uma festa. Tal pescador, o pai da criança, foi embora logo ao amanhecer, mal deixando seu nome para trás. Maria fez as contas da idade atual de seu sobrinho e descobriu que ela tinha cerca de dois anos no dia do evento. Houve uma implicação subjetiva logo a seguir, com a seguinte pergunta de Maria: "Por que estou me torturando assim? Parece que estou me amaldiçoando".

Tudo isso permitiu a localização de significantes mestres na vida de Maria: gravidez, dança, maldição. Além disso, havia duas circunstâncias cruciais nessa história familiar: uma cena traumática de uma criança de dois anos, que viu o nascimento de seu sobrinho, quando ainda não podia dar nenhum significado à cena, e um pai que nunca falou com sua filha mais velha, depois que ela engravidou e teve um filho.

Há eventos no corpo de um bebê, onde os significantes ali inscritos não se comunicam. São letras (S1s) que não formam uma cadeia, pois ainda não há simbolização. Aí se encontra o real do inconsciente, onde as "inscrições" ocorrem no corpo de um sujeito a advir.

Essas letras só terão valor no futuro, quando houver uma realização simbólica, tratando-se de um sujeito neurótico.

 

A Bejahung

Lacan ([1955-1956] 2010) diz que, o que define a simbolização primitiva é a chamada Bejahung . A Bejahung é uma afirmação. Trata-se da entrada no universo simbólico. Ainda no Seminário 3: As psicoses, ele ensina que é preciso admitir que, atrás do processo de verbalização, há uma Bejahung primordial, uma admissão no sentido simbólico.

Lacan lembra que Freud, inicialmente, explica o recalque primário como uma fixação. Mas a questão é que, no momento da fixação, não há nada sobre esse recalque. Então, como explicar o retorno do recalcado?

Lacan ([1953-1954] 2009, p. 185) responde no Seminário 1:

Por mais paradoxal que seja, só há uma maneira de fazer isso: não vem do passado, mas do futuro.

O núcleo real da história de Maria não foi revelado em sua história. Lacan ([1953-1954] 2009, p. 56) esclarece que esse núcleo não é apenas algo que não é revelado, mas também não é formulado: "é literalmente como se não existisse" , diz ele.

E, no entanto, em certo sentido, esse núcleo está em algum lugar. É um centro de atração, que atrai para si todos os recalques posteriores. Esse é o recalque primário. Quando Maria tinha dois anos, uma cena traumática foi vivenciada e recalcada. Tratava-se de um recalque secundário, atraído pelo núcleo do recalque primário.

Seguindo essa linha, para se falar em Bejahung, é importante apontar para uma estrutura neurótica, uma vez que, para haver um recalque secundário e a possibilidade de simbolização de uma vivência, é necessário ter havido um recalque primário, uma inscrição, que ocorreu no organismo do bebê, no campo do real. Foi possível perceber Maria tentando dar um significado a uma cena traumática em sua história de vida, que ela viveu na infância.

Ainda no Seminário 1, Lacan ([1953-1954] 2009, p. 22) questiona:

Qual é o valor do que se reconstrói a partir do passado do sujeito?

Ele explica que o fato de o sujeito reviver e lembrar os eventos formativos de sua existência não é em si tão importante.

E diz:

O que conta é o que ele reconstrói a partir dele (LACAN, [1953-1954] 2009, p. 22).

É mais sobre reescrever a história do que lembrá-la.

Quando Maria tentou significar a cena do nascimento de seu sobrinho a partir de uma formação do inconsciente (um sonho), pude ver um sujeito de desejo, que se constituiu se defendendo do núcleo traumático do real, trazendo a mitologia da Cobra Norato como um véu imaginário, protetor desse real.

Nos Escritos, em especial na Resposta ao comentário de Jean Hyppolite, Lacan diz da Bejahung, como aquilo

[...] que Freud enuncia como o processo primário em que o juízo atributivo se enraíza, e que não é outra coisa senão a condição primordial para que, do real, alguma coisa venha se oferecer à revelação do ser... (LACAN, [1954] 1998, p. 389).

Por isso, pude constatar que o trauma, que não havia adquirido nenhum sentido no momento de sua experiência no real, estava ali, como um traço apagado, como diz Lacan, que retroagia na história que Maria contou, no futuro

É possível afirmar que o recalque primário existia ali, não porque Maria falava dele (uma vez que é impossível falar-se dele, enquanto uma experiência no real), mas pelos seus efeitos, que estavam não apenas nos sintomas dela, mas também na sua tentativa, naquele momento, de significar a cena traumática do nascimento de seu sobrinho.

Nesse evento, o trauma não tinha sentido, ainda, mas a inscrição, o traço desta "escrita" estava lá, no corpo de Maria.

 

Conclusão

Percebemos que, em um núcleo não recalcado do inconsciente, os significantes, as marcas, que vão reger a singularidade do sujeito, os S 1 s, não estão encadeados. Eles são apenas eventos corporais. Também passamos a compreender que, nesse momento, há uma fixação de gozo, uma "inscrição" desse gozo, no corpo do bebê, que é banhado por uma chuva de significantes (S1s). No futuro, com a simbolização, com a formação da cadeia de significantes (S1, S2, S3, Sn...), o S2 retornará sobre o significante S1, produzindo um sentido.

É por isso que o sintoma, em si, não tem sentido. Ele não é nada mais, nada menos do que um prazer autoerótico. Somente com a retroação de S2 sobre S1 há uma produção de sentido. O sintoma se apresenta, inicialmente, como um traço, que nunca será mais que um traço e sempre será mal compreendido, até que a análise tenha ido longe o suficiente. E então, só então, teremos capturado seu significado.

Essa é a Pragung de Lacan. O "fora do sentido", o "fora da linguagem". Esse traço "nunca será mais do que aquilo que num dado momento de realização terá sido", como ele disse (Lacan, ([1953-1954] 2009 , p. 186). Depois disso, na neurose, há a entrada de uma afirmação primitiva (Austossung) no campo simbólico, que é o campo da Bejahung.

Nesse campo, onde foi possível a simbolização do vivenciado por Maria no parto de seu sobrinho (na condição de recalque secundário).

Quanto ao seu sonho, Maria apresentou uma Verneinung (negativa), na condição de uma das possibilidades a partir da entrada na Bejahung: "não tenho medo do meu pai. E não me importo se ele tiver deixado de gostar de mim". Maria negou, porque é somente negando que o sujeito se afirma como um ser, deixando a condição de um vivente, de um falasser.

Logo depois, Maria mudou-se para Portugal. Hoje em dia, a bonita índia brasileira está em algum lugar, em Lisboa, provavelmente bailando nas pistas de dança portuguesas. Sua análise não foi longe o suficiente, e a pergunta que restou viva é:

"Maria, ainda tens medo de perder o amor de teu pai?"

 

Referências

FREUD, S. A negação. In: ______. O eu e o id, "autobiografia e outros textos (1923-1925). Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 275-282. (Obras completas, v. 16).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Betty Milan. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 3: As psicoses (1955-1956). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Aluísio Menezes. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LACAN, J. Resposta ao comentário de Jean Hippolite sobre a "Verneinung" de Freud (1954). In: ______. Escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 383-401. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: audreydecastro@icloud.com

Recebido em: 30/04/2020
Aprovado em: 20/05/2020

 

 

SOBRE A AUTORA

Audrey Gonçalves de Castro
Psicanalista em formação pelo Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).
Mestre e doutora em Direito Internacional Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).

 

 

1 Trabalho apresentado no XXI INTERNATIONAL FORUM OF PSYCHOANALYSIS, PSYCHOANALYTIC ENCOUNTER - CONFLICT AND CHANGE - ISCTE, Instituto Universitário de Lisboa. Lisboa, 5-8 fev. 2020.

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