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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.53 Belo Horizonte jan./jun. 2020

 

XXI FÓRUM INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE - ENCONTRO PSICANALÍTICO: CONFLITO E MUDANÇA

 

O sujeito do inconsciente e suas arquiteturas

 

The subject of the unconscious and its architectures

 

 

Patrícia Ferraz de Carvalho Miranda

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O desejo define o que somos e, para acessar esse desejo, pode-se pensar o sujeito do inconsciente como uma peça a ser conectada por um arqueólogo ou um pedaço de bloco de pedra a ser esculpida, onde não se acrescenta nada. Somente se retira. Outra forma de enxergar o sujeito do inconsciente é perceber que a verdadeira escultura escondida é a arquitetura da linguagem. Essa matriz da cadeia dos significantes é conduzida pelo nosso desejo, que é linguagem, intenção da linguagem e ato de linguagem.

Palavras-chave: Sujeito do inconsciente, Cadeia de significantes, Arquitetura da linguagem, Desejo.


ABSTRACT

Desire defines who we are and, to access this desire, one can think of the subject of the unconscious as a piece to be connected by an archaeologist or a piece of a stone block to be sculpted, where nothing is added, only removed. Another way to see the subject of the unconscious is to realize that the real hidden sculpture is the architecture of language. This matrix of the chain of signifiers is driven by our desire, desire that is language, intention of language, and act of language.

Keywords: Subject of the unconscious, Chain of signifiers, Language architecture, Desire.


 

No texto Construções em análise, Freud ([1937] 2018, p. 330) propõe que o objetivo do trabalho analítico é suscitar o analisando a aproximar-se das zonas vizinhas do recalque e substituí-las por outras representações. Para isso, o paciente traz recortes, recordações, afetos e vivências que estão recalcados e provocam sintomas e inibições que, na verdade, são substitutivos para o que está esquecido.

Essas lembranças podem aparecer por meio de sonhos, pensamentos, vivências recalcadas, derivados de afetos reprimidos e repetições.

Freud ([1937] 2018, p. 330) destaca que o trabalho do setting analítico contempla mais do que recordar. Busca "construir o que foi esquecido, com base nos indícios deixados" com a participação do analista e do analisando.

As construções freudianas estão presentes nas análises de importantes casos como O homem dos ratos (1909), O homem dos lobos (1918) e A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920).

Freud ([1937] 2018, p. 330) recorre aos termos "construção" e "reconstrução" para indicar a ideia de trabalho sobre "o que foi esquecido, com base nos indícios deixados".

No texto Construções em análise, Freud ([1937] 2018, p. 330) apresenta a analogia do trabalho do analista ao trabalho do arqueólogo:

Seu trabalho de construção – ou, se preferirem, de reconstrução – mostra uma ampla coincidência com o do arqueólogo, que faz a escavação de uma localidade destruída e enterrada ou de uma edificação antiga. Eles seriam mesmo idênticos, não fosse o fato de o analista trabalha em condições melhores e dispor de um material auxiliar mais extenso, porque se ocupa de algo ainda vivo.

Nessa metáfora, o arqueólogo trabalha com objetos fragmentados e com partes perdidas. Muitas vezes esses objetos estão soterrados, e o trabalhador da arqueologia pacientemente escava, peneira cada local para achar os fragmentos e com eles montar uma possível peça, jamais completa, pois certamente irão lhe faltar pedaços.

O analista trabalha com o material de memórias que foram esquecidas ou recalcadas, mas que está vivo no funcionamento do inconsciente. Tais memórias são a matéria-prima das elaborações.

Outra metáfora que Freud recorre é a do escultor. No texto Psicoterapia ([1905] 2016, p. 336-337), ele cita Leonardo da Vinci e alerta:

Na verdade, entre a técnica da sugestão e a analítica há o maior contraste possível, aquela oposição que o grande Leonardo da Vinci, em relação às artes, resumiu nas expressões per via de porre e per via di levare. A pintura, diz Leonardo, trabalha per via di porre [pondo]; ela aplica pequeninos montes de cores onde não os havia, na tela em branco; já a escultura procede per via di levare [tirando], ela retira da pedra tudo o que cobre a superfície da estátua nela contida. De modo bem semelhante, meus senhores, a técnica sugestiva procura atuar per via di porre, não se interessa por origem, força e significado dos sintomas patológicos, e sim acrescenta algo, a sugestão, da qual espera que seja forte o bastante para impedir que a ideia patogênica adquira expressão. Já a terapia analítica não deseja acrescentar ou introduzir algo novo, mas sim retirar, extrair, e para isso cuida da gênese dos sintomas doentios e do contexto psíquico da ideia patogênica, cuja remoção é seu objetivo.

Essa metáfora apresenta a diferença entre os trabalhos da psicoterapia e da psicanálise. A psicoterapia é fundamentada na sugestão. A cor, o acréscimo considerando o sujeito como uma tela a ser preenchida ou colorida. A escultura é uma obra de arte presa a um bloco de pedra ou madeira se descortinando aos poucos, criando uma forma. O analista, em sua função, como o escultor, de somente retirar, dar voz àquilo que se encontra abafado, afônico. O ato de esculpir busca a verdade da escultura.

Freud ([1937] 2018, p. 342) afirma:

Esse trabalho [terapêutico] consistiria em liberar o que de verdade histórica de suas deformações e seus apoios na realidade presente e ajustá-lo ao lugar do passado a que pertence. Transpor material da pré-história esquecida para o presente.

Se em uma primeira vertente Freud nos traz a analogia da escultura escondida, outra maneira de perceber o sujeito do inconsciente é apresenta por Costa (1994). A primeira vertente seria deixar vir à tona as lembranças da infância e/ou realizar construções em análise. A segunda vertente dá um passo a mais no saber inconsciente que difere muitas vezes da verdade histórica, que se trata das narrações.

No texto Parábolas freudianas: as narcísicas feridas e o arqueólogo, Ana Maria Loffredo (2006, p. 298, grifo da autora) evidencia:

Há, claro, o inconsciente, mas a verdade não é histórica, se entendermos com esse termo as histórias que podemos contar sobre nós mesmos. Para essa leitura, a verdadeira escultura escondida é a arquitetura da linguagem . É esta uma matriz ou estrutura, um a priori, anterior à condição social e inerente ao humano. Inatingível, embora geradora das regras de constituição que se fazem a partir dela. Essa matriz permite, portanto, a passagem do acontecimento sem sentido para um acontecimento com significação. É ela que delimita o que, do vivido, poderá se transformar em narrativas possíveis ou dizíveis conscientemente.

As duas vertentes têm como foco o sujeito do inconsciente: uma escultura escondida ou fragmentos de peças de um arqueólogo em busca de seu verdadeiro sentido histórico. Se tomarmos a hipótese do sujeito do desejo estruturado na linguagem, faz conexão com o que Lacan esclarece sobre o tema do desejo. O desejo em seu estado nascente, relacionando com a Coisa. A entrada do Nebenmensch se conecta com a primeira experiência de satisfação, atravessado pela linguagem, guia do desejo nascente.

Podemos pensar a arquitetura da linguagem com o que Pascal Quignard ([1993] 2018) nos mostra. Ele aborda que a verdadeira linguagem se apresenta muitas vezes como uma falha, quando ela é indizível, quando a lembrança some na edição da memória e esses esquecimentos na verdade são uma recusa àquilo que é insuportável.

Nós somos falhos. A linguagem nos ajuda a nos recompor. Porém, há palavras que não querem sair dos nossos lábios e exercem poder sobre nós. O que não é dito nos fixa. O sujeito conquista seu segredo ao relatar suas andanças e se tornando sujeito da sua história.

Quignard ([1993] 2018) ainda nos diz que o que recebemos ao nascer é apenas a vida, a avidez da vida, que nada deve confiscar. Não devemos renunciar ao desejo e todo objeto em que esse desejo se fixa é se agarrar ao vento.

Podemos ver uma interseção entre a arquitetura da linguagem do dito ou do silêncio do sujeito do inconsciente apresentado no Seminário 7: A ética da psicanálise.

No capítulo Os paradoxos da ética ou agiste em conformidade com teu desejo? Lacan ([1959-1960] 1986) apresenta a relação da ação com o desejo suportado pelo significante. Ele diz que o desejo não está a serviço dos bens e não se trata de atingir o triunfo. Muitas vezes há uma oposição do centro desejante com o serviço dos bens.

À medida que aumenta o investimento no serviço dos bens, Lacan ([1959-1960] 1986, p. 372) propõe:" Continuemos trabalhando, e quanto ao desejo, vocês podem ficar esperando sentados".

O desejo está em relação com o significante, Lacan ([1959-1960] 1986, p. 371) diz:

É na medida em que o sujeito se situa e se constitui em relação ao significante, que nele se produz essa ruptura, essa divisão, essa ambivalência em cujo nível se situa a tensão do desejo.

Lacan ([ 1959-1960] 1986, p. 373) propõe ainda que

[...] a única coisa da qual se possa ser culpado, pelo menos na perspectiva analítica, é de ter cedido de seu desejo.

E quando o sujeito se propõe a "fazer as coisas em nome do bem" isso traz muitas confusões interiores, inclusive de ordem neurótica. Não se trata de desacreditar no campo dos bens, mas de compreender que o desejo é o que define o que somos.

Lacan ([ 1959-1960] 1986, p. 376) afirma:

Não há outro bem senão o que pode servir para pagar o preço ao acesso ao desejo – na medida em que esse desejo, nós o definimos alhures como a metonímia de nosso ser. O arroio onde se situa o desejo não é apenas a modulação da cadeia significante, mas o que corre por baixo, que é, propriamente falando, o que somos, e também o que não somos, nosso ser e nosso não-ser – o que no ato é significado, passa de um significante ao outro da cadeia, sob todas as significações.

Concluindo, Freud trouxe duas ricas metáforas do sujeito do inconsciente: a primeira que as lembranças esquecidas seriam como peças de um arqueólogo para serem reconectadas e remontadas em construções ou reconstruções, e a segunda, como a metáfora do escultor que pensa o sujeito do inconsciente como uma escultura escondida no bloco na qual não se acrescenta nada, somente retiram-se os excessos.

Seguindo os passos de Freud, o autor francês abriu a possibilidade de pensar o sujeito do inconsciente presente na expressão linguageira "cadeias de significantes". Pode-se pensar que a "escultura escondida" é a arquitetura da linguagem, que terá acesso a novas narrativas mais belas para o sujeito.

A tessitura matriz da cadeia dos significantes, que é a arquitetura de cada um, caminho de articulação do desejo. Pois para Lacan o desejo é que nos define, o desejo inscrito na linguagem, no ato de linguagem. A tessitura matriz é dinâmica em constante processo de reconstrução.

Neste momento a pergunta de Lacan ([ 1959-1960] 1986, p. 364) se impõe: "Agiste em conformidade com o teu desejo?"

Essa é uma pergunta que apresenta um norte de sujeito.

 

Referências

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COSTA, J. F. Pragmática e processo analítico: Freud, Wittgenstein, Davidson, Rorty. In: COSTA, J. F. (Org.). Redescrições da psicanálise: ensaios pragmáticos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 9-60.         [ Links ]

FREUD, S. Construções em análise (1937). In: ______. Moisés e o monoteísmo, compêndio de psicanálise e outros textos (1937-1939). Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 327-344. (Obras completas, 19).         [ Links ]

FREUD, S. Psicoterapia (1905). In: ______. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria ("O caso Dora") e outros textos (1901- 1905). Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 331-347 (Obras completas, 6).         [ Links ]

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LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.         [ Links ]

LOFFREDO, A. M. Parábolas freudianas: as narcísicas feridas e o arqueólogo. Jornal de Psicanálise, São Paulo, v. 39, n. 70, 2006, p. 289-308, jun. 2006. Publicação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.         [ Links ]

QUIGNARD, P. O nome na ponta da língua  (1993). Tradução: Yolanda Vilela e Ruth Silviano Brandão. Belo Horizonte: Chão de Feira, 2018.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: patriciaferrazcm@gmail.com

Recebido em: 20/04/2020
Aprovado em: 12/05/2020

 

 

SOBRE A AUTORA

Patrícia Ferraz de Carvalho Miranda
Graduada em Engenharia Civil.
Candidata em formação (2º Tempo) no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG). Realizando o estudo da teoria da clínica e o estudo dos casos clínicos de Freud e de Lacan. Participante do Grupo de Estudos e Produção no CPMG, coordenado pelo psicanalista Messias Eustáquio Chaves no período de fev. 2017 a nov. 2019, como parte da formação em psicanálise.

 

 

1 Trabalho apresentado no XXI INTERNATIONAL FORUM OF PSYCHOANALYSIS, PSYCHOANALYTIC ENCOUNTER - CONFLICT AND CHANGE - ISCTE, Instituto Universitário de Lisboa. Lisboa, 5-8 fev. 2020.

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