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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.53 Belo Horizonte jan./jun. 2020

 

XXI FÓRUM INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE - ENCONTRO PSICANALÍTICO: CONFLITO E MUDANÇA

 

"A vovó assassina" e o menino dos olhos verdes: fragmentos de um caso clínico e as contribuições da psicanálise1

 

The "Murderous Grandma" and the greened eyed boy: fragments of a clinic case and the contributions of the psychoanalysis

 

 

Waleska Pessato Farenzena Fochesatto

I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
II Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em função da sua diversidade, o autismo, nos desafia a estudar, pesquisar e discutir constantemente seus sintomas, tratamento e vicissitudes. Neste texto, apresento um caso que me fez com transitar por esse universo. Valho-me de Melanie Klein e Marie Christine Laznik como referência da psicanálise para apoiar este estudo.

Palavras-chave: Psicanálise, Autismo, Análise de crianças.


ABSTRACT

Because of its diversity of signs, autism challenges us to constantly study and rethink its symptoms, treatments and unfoldings. Here I present a case that challenged me to transit through this universe. I used Melanie Klein and Marie Christine Laznik as Psychoanalysis reference authors to support this study.

Keywords: Psychoanalysis, Autism, Analysis of children.


 

A oportunidade de participar do XXI Forum of Psychoanalysis em Lisboa, em fevereiro de 2020, promovido pela IFPS, despertou em mim o desejo de partilhar a experiência clínica de um caso que chega até mim sem diagnóstico, mas aos poucos vai revelando indícios de autismo.

O autismo, em função da diversidade na forma pela qual se manifesta e a partir de suas nuances, por vezes sutis, nos desafia a estudar, pesquisar e discutir constantemente seus sintomas, seu tratamento e suas vicissitudes. Longe de querer esgotar este tema tão complexo, o que seria inviável em tão poucas linhas, pretendo contribuir com esse vasto campo de discussão, através dessa experiência.

A fim de entender o funcionamento do paciente, me utilizo de conceitos kleinianos como posição esquizoparanoide e posição depressiva, e transito pelos estudos de Marie Chistine Lasnik, grande estudiosa do autismo na atualidade.

Mateus é um menino de cinco anos e de grandes olhos verdes. Sua mãe fez contato telefônico comigo em setembro de 2018, bastante angustiada. Ele se encontrava em terapia cognitivo-comportamental havia três meses, mas desde então, segundo a mãe, havia piorado. De acordo com ela, durante esse período, ele passou a se agredir fisicamente e não só verbalmente como vinha ocorrendo quando buscou tratamento. Contou ainda que a psicóloga havia orientado a família a não deixar Mateus fazer brincadeiras agressivas, onde o bater, o matar e o morrer aparecessem simbolizados. Também foi vetado qualquer tipo de vídeo ou programa que envolvesse luta ou briga. Marcamos um horário e dei início ao processo avaliativo.

Na ocasião da entrevista de anamnese, os pais relataram que Mateus vivia obcecado pela história da vovó assassina, assunto proibido pela terapeuta anterior. A vovó assassina é personagem de um jogo virtual originalmente chamado Granny. Trata-se do espírito de uma mulher, cega, que morreu querendo se vingar do marido pelas suas traições. O jogo acontece dentro da casa da personagem, e o jogador precisa fugir dela ou matá-la. Mateus fala muito desse jogo, sempre com medo e excitação. Sua gestação foi planejada e desejada, mamou no peito até oito meses e, segundo a mãe, até um ano e meio dormiu muito mal, pois acordava a cada duas horas e só adormecia no colo dela. Desfraldou cedo e desde que começou a caminhar, o faz na ponta dos pés, o que acarretou um encurtamento dos tendões. Segundo relato dos pais, Mateus não tolera perdas e frustrações. Percebi os pais atrapalhados, não sabendo lidar com os acessos de agressividade e de instabilidade do filho, muitas vezes respondendo também de forma agressiva, o que agravava ainda mais o que eles chamam de "crises". Mas ambos se mostraram preocupados e muito interessado em ajudá-lo.

A primeira impressão que tive de Mateus é de que ele é uma criança diferente. Ficou surpreso ao perceber que podia falar comigo sobre a vovó assassina, já que em casa e com a antiga terapeuta este era um assunto proibido. Entendi que a vovó assassina se tornou receptáculo de toda a sua destrutividade.

Pedi que ele a desenhasse para que eu pudesse conhecê-la. Em um primeiro momento ele disse que não desenharia, pois "ela é muito assustadora". Só se propôs a desenhar quando eu disse que não tinha medo dela, o que significou comunicar a ele que eu não tinha medo dos impulsos agressivos dele próprio.

Nesse primeiro encontro, observei que, muitas vezes, não me olhava nos olhos, não escutava o que eu dizia como se, por alguns instantes, se ausentasse. Percebi uma criança bem regredida, com evidente dificuldade de simbolização e uma agressividade que não conseguia conter. Começamos a jogar.

Quando Mateus percebeu que eu estava ganhando, tentou de várias formas burlar as regras do jogo para se beneficiar, mas eu não permiti. Isso fez com que ele entrasse em profundo estado de angústia e começasse a se bater no peito e no rosto, repetindo que era "um menino ruim, bobo, idiota e que merecia morrer". Percebi um psiquismo muito primitivo e a construção de um superego tirano, o que me remeteu à teoria das relações objetais de Melanie Klein e seus mecanismos de introjeção e projeção.

A introjeção corresponde ao mecanismo primitivo do bebê de introjetar todos os objetos – começando pelo seio materno, seguido pelo polegar, por brinquedos, etc. A este seio é atribuído poderes sobrenaturais de onipotência tanto para o bem quanto para o mal, já que ele é capaz tanto de uma gratificação infinita, quanto de uma frustração imensa (quando não satisfaz a criança no momento em que ela deseja). Quando o seio é visto como gratificador, todos os sentimentos bons são associados a ele; da mesma forma, quando é visto como mau é o depositário de todos os sentimentos destrutivos. Aos posteriores objetos que também são sugados pela criança são atribuídos os mesmos poderes do seio, uma vez que, em suas fantasias imaginativas, estes objetos o substituem (OLIVEIRA, 2007, p. 87).

Mateus se vinculou a mim facilmente, me chama de mãe diversas vezes ao longo das sessões. Numa ocasião em que nos encontramos por acaso fora do consultório, Mateus me apresentou a um colega e se referiu a mim como "é ela que me cuida". Quando questionado na sessão do porquê me chamar tantas vezes de mãe, ele diz "eu queria que tu fosse minha mãe".

Entendi que esse desejo se deve ao fato de eu suportar seus impulsos agressivos sem entrar em desespero, como muitas vezes já ocorreu com sua mãe. Digo a ele, frequentemente, que pode sentir raiva de quem ama, que sua raiva não tem o poder de destruir e que não vou abandoná-lo se ele sentir raiva de mim. Em duas ocasiões, no início do tratamento, fez menção de me bater. Não tolerava quando a sessão acabava. Disse a ele que, se me batesse, ele me machucaria e depois se sentiria muito mal, então propus que 'brigássemos' utilizando os bonecos de brinquedo do consultório.

A partir daí tenho a impressão de que inauguramos um espaço no registro simbólico. Concomitantemente a isso, ao longo das sessões com Mateus e das sessões de supervisão, construímos uma metáfora que passei a utilizar com ele de forma exitosa. Quando via que a raiva estava prestes a ser atuada contra mim ou contra ele próprio, eu dizia que a raiva poderia sair pela boca em forma de palavras.

Assim, as brincadeiras de Mateus versavam em torno da vovó assassina representada por bonecos. Ele podia matá-la simbolicamente diversas vezes. Podíamos brigar e, mesmo assim, seríamos 'amigos'.

Melanie Klein descreve a posição esquizoparanoide caracterizada por uma ansiedade persecutória que, no caso de Mateus, aparece colocada na personagem da vovó assassina. Ou seja, há um medo de aniquilação a partir de dentro, que, devido ao temor da malignidade, é projetado para fora, em fantasia.

Spillius (2007) afirma que, segundo Klein, as sensações experimentadas pelo bebê são sentidas como se fossem 'causadas' por objetos malévolos ou benévolos.

Observo que Mateus, quando chegou até mim, funcionava predominantemente na posição esquizoparanoide, onde existem objetos parciais: bom e mau encontram-se cindidos.

Segundo Spillius (2007), a onipotência de pensamento é característica dessa posição, que ficava evidente quando Mateus sentia raiva e na sua fantasia a raiva destruiria tudo e todos a sua volta.

Três meses após iniciarmos os atendimentos, ocorreu uma situação que agravou seu estado emocional já primitivo. Ele e a mãe estavam saindo de casa e, acidentalmente, a mãe atropelou e matou o cachorro da vizinha. Mateus entrou em crise, passou a dizer que merecia morrer, pois havia matado o cachorro. Foi um período difícil, pois repetia esse discurso constantemente deixando professora, colegas e familiares muito assustados.

A partir disso, eu o encaminhei a um psiquiatra infantil, conduta que já estava sendo cogitada. Segundo ele, Mateus "tem um transtorno do neurodesenvolvimento não especificado" e, apesar de não fechar formalmente critérios para autismo, entra no extremo mais leve do espectro, prescrevendo fluoxetina e mais adiante, substituindo a fluoxetina pela risperidona.

Segundo Vasconcelos, o termo "autismo" significa "ausente" ou "perdido", caracterizando-se pelos déficits qualitativos na interação social e na comunicação, padrões de comportamento repetitivos e estereotipados e repertório restrito de interesses e atividades. Os sinais característicos aparecem antes dos três anos de idade.

Laznik (2004) aponta dois sinais clínicos que podem ser percebidos ainda no primeiro ano de vida da criança. O não olhar entre mãe e bebê seria o primeiro, o que permitiria pensar na hipótese de autismo logo nos primeiros meses de vida. O segundo e mais importante sinal, conforme a autora, consistiria na não instauração do circuito pulsional completo, quando o terceiro tempo não é alcançado. O terceiro tempo do circuito pulsional se refere à estruturação simbólica do aparelho psíquico, no registro do faz de conta, como quando o bebê oferece partes de seu corpo para que a mãe brinque, fingindo que vai comê-lo, por exemplo.

Segundo Laznik, independentemente da causa da não instauração do terceiro tempo do circuito pulsional, ele poderá se estabelecer se houver uma contribuição libidinal por parte do analista que saiba trabalhar a relação pais-bebê, principalmente se essa intervenção ocorrer antes dos três anos de idade, que é o período sensível no qual a criança entra com mais naturalidade no campo dos significantes do Outro e dele se apropria.

Segundo a percepção dos pais, Mateus foi um bebê que conseguia manter contato visual e participava ativamente de eventuais brincadeiras, não apresentando nenhum indício de autismo precocemente. O único comportamento que chamava mais a atenção era o sono agitado e as poucas horas que ele dormia.

Nas nossas sessões, gradativamente, a brincadeira da vovó assassina foi substituída pela do Titanic. Construía o navio de lego e o fazia afundar batendo em um iceberg e partindo ao meio. Me contou que assistia aos vídeos sobre o Titanic e que, em um deles, soube que a verdadeira causa de ele ter afundado seria a existência de fogo na casa de máquinas do navio, fato que acabou deixando o casco muito vulnerável. Seria o fogo uma referência à própria destrutividade que o consome? Digo a ele que o nosso trabalho é falar sobre o "fogo" que existe dentro dele, para que ele não o afunde, como fez com o Titanic. A partir disso ele passa a construir botes salva-vidas para os passageiros do Titanic durante nossa brincadeira.

Segundo Vasconcelos, o papel do psicanalista, de acordo com Lazmik, é intervir para que se instaurem as estruturas que suportam o funcionamento do inconsciente. A autora considera que a síndrome autística é consequência de uma falha no estabelecimento dos laços pais-criança. Então, há que intervir nesse laço.

Segundo Spillius (2007), Klein pensa que o fracasso na elaboração da ansiedade persecutória e a tendência à cisão da posição esquizoparanoide, são pré-condições básicas da paranoia e da esquizofrenia. A análise, no caso de Mateus, é fundamental para que ele possa ultrapassar a posição esquizoparanoide e experimentar a posição depressiva.

Na maneira de Klein ver a posição depressiva, a mãe boa e a má são vistas como a mesma pessoa; o bebê começa a sentir que a mãe boa, que ele ama, foi estragada pelos ataques que ele fez e continua a fazer contra a mãe má, pois a mãe é uma só. Essa percepção muito dolorosa faz surgir o que Klein chama de 'ansiedade depressiva'. [...] O indivíduo tem medo de perder o objeto e tem um grande anseio em reparar o dano. O estado real do objeto externo é muito importante. Se a mãe parecer estragada, a culpa e o desespero da criança aumentam (SPILLIUS, 2007, p. 112).

Segundo Klein, como nos coloca Spillius (2007), se a mãe estiver aparentemente bem ou, ao menos, for capaz de ter empatia com os problemas da criança a respeito de seu estado, o medo da destrutividade da criança diminui e a confiança nos desejos de reparação aumenta.

 

Considerações finais

Klein ([ 1946-1963] 2006, p. 43 nos diz que

[...] a luta entre as pulsões de vida e de morte e a resultante ameaça de aniquilamento do self e do objeto por impulsos destrutivos são fatores fundamentais na relação inicial do bebê com sua mãe.

Percebo que, através da relação transferencial na análise, Mateus vem reconstruindo as relações de objeto e segue rumo ao movimento de internalizar o objeto bom.

Segundo Spillius (2007), o resultado favorável da posição depressiva é a internalização segura do objeto bom, que, na visão de Klein, se torna o "núcleo do ego", a base da segurança e do autorrespeito. A futura saúde mental do indivíduo e a capacidade de amar dependem dessa internalização.

Depois que iniciamos a análise, os pais de Mateus vêm tendo um manejo muito parecido com o meu, no que se refere aos acessos de raiva dele, ou seja, conseguem ser continentes com a destrutividade de Mateus, o que vem fazendo com que ele avance em muitos aspectos.

Ele parou de se agredir, se desestrutura menos diante de imprevistos, tolera quando um brinquedo de lego se desmonta durante a brincadeira, distingue fantasia de realidade mais facilmente e seu desenho evoluiu a olhos vistos. Além disso, a experiência de poder falar dos medos e mostrar sua parte agressiva sem que ela 'matasse' alguém, se revelou fundamental e libertadora.

Dessa forma, à medida que fomos criando narrativas para seus "impulsos agressivos", antes manifestados por meio da passagem ao ato, Mateus tem conseguido se relacionar com o mundo de forma mais saudável, integrada e flexível. Parece transitar mais facilmente entre a posição esquizoparanoide e a posição depressiva, podendo desenvolver uma capacidade reparatória e um sentimento de gratidão.

Segundo Laznik (2004, p. 158), a tarefa do psicanalista é permitir que um Outro real consiga criar laço com a criança, para que ela possa advir como sujeito.

Seguimos construindo metáforas a fim de alimentar sua pulsão de vida e transformar seus impulsos agressivos em capacidade criativa. Seus grandes olhos verdes, parecem agora, menos amedrontados, mais próximos de mim e mais conectados com o mundo que se apresenta a sua volta.

A relação com Mateus me inspirou a escrever um livro infantil cujo nome é Ana Lise e o menino de olhos verdes. O livro narra a história de um menino de 5 anos que não sabe lidar com a raiva. Ao longo da história, a fada Ana Lise – cujo nome faz alusão ao processo de análise (Ana-Lise) – cria meios para que o personagem consiga nomear e simbolizar a raiva, em vez de atuá-la.

O livro trata da nossa parte mais obscura e sombria, que vem à tona por meio da atuação da raiva, quando da impossibilidade de encontramos outras saídas; e ao mesmo tempo, da capacidade do ser humano de se reinventar.

Como nos ensina Hanna Arendt, "toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história."

 

 

Referências

KLEIN, M. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Obras completas de Melanie Klein, 3).         [ Links ]

LAZNIK, M.-C. A voz da sereia: o autismo e os impasses na constituição do sujeito. Salvador: Ágalma, 2004.         [ Links ]

MINERBO, M. Diálogos sobre a clínica psicanalítica. São Paulo: Blucher, 2016.         [ Links ]

OLIVEIRA, M. P. Melanie Klein e as fantasias inconscientes. Winnicott e-prints, São Paulo, v. 2 n. 2, p. 80-98, 2007.         [ Links ]

SPILLIUS, E. Uma visão da evolução clínica Kleiniana: da antropologia à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2007.         [ Links ]

VASCONCELOS, R. M. A. R. L. Autismo infantil: a importância do tratamento precoce. Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Disponível em: http://www.abrapso.org.br. Acesso em: 20 jun. 2019.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: waleska.pessato@terra.com.br

Recebido em: 30/04/2020
Aprovado em: 20/05/2020

 

 

SOBRE A AUTORA

Waleska Pessato Farenzena Fochesatto
Psicóloga.
Psicanalista.
Membro do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).
Mestre em ciências da saúde pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Pesquisadora em epidemiologia e envelhecimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Autora do livro infantil Ana Lise e o menino de olhos verdes.

 

 

1 Trabalho apresentado no XXI INTERNATIONAL FORUM OF PSYCHOANALYSIS, PSYCHOANALYTIC ENCOUNTER - CONFLICT AND CHANGE - ISCTE, Instituto Universitário de Lisboa. Lisboa, 5-8 fev. 2020.

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