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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.53 Belo Horizonte jan./jun. 2020

 

XXIII CONGRESSO DO CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE - PSICANÁLISE E DIVERSIDADES: INCONSCIENTE, CULTURA E CAMINHOS PULSIONAIS

 

Um estudo psicanalítico sobre perdas mitológicas e etnocídio a partir do documentário "Ex-pajé"

 

A psychoanalytic study on mythological losses and ethnocide from the documentary "Ex-Shaman"

 

 

Dorivaldo Pantoja Borges JuniorI; II; Paulo Roberto CeccarelliIII, IV

I Universidade da Amazônia
II Liga Acadêmica Paraense de Saúde Mental
III Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
IV Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo foi investigar as consequências psíquicas das perdas mitológicas vivenciadas pela tribo Pater-Suruí, sobretudo por Perpera, o pajé. Para isso, nos apoiamos na análise do documentário Ex-pajé (2018), dirigido por Luiz Bolognesi. As contribuições antropológicas sobre o fenômeno do etnocídio ampliaram nossa investigação. A partir das análises, observamos que, com a chegada do "não indígena", as manifestações espirituais da tribo foram reprimidas, desvalorizadas e substituídas por outros valores. Os novos ideais suscitaram o desamparo coletivo e individual da tribo, devido à perda das referências identitárias, o que sinalizou a necessidade de retorno às antigas práticas constitutivas do grupo. Concluímos que se, de um lado, o "choque mitológico" tem um efeito desorganizador, por outro, o resgate das referências identificatórias restabelece a circulação pulsional original.

Palavras-chave: Perdas mitológicas, Etnocídio, Psicanálise, Amazônia.


ABSTRACT

The aim of this study was to investigate the psychic consequences of the mythological losses experienced by the Pater-Suruí tribe, especially by Perpera, the shaman. For this, we rely on the analysis of the documentary " Ex-Shaman" (2018), directed by Luiz Bolognesi. Anthropological contributions on the phenomenon of ethnocide, we broaden our investigation. From the analysis, it was observed that, with the arrival of the "non-Indian", the spiritual manifestations of the tribe were repressed, devalued, and replaced by other values. The new values, however, aroused collective and individual helplessness due to the loss of identity references, which led to the return of the group's old constitutive practices. It was concluded that if, on the one hand, the "mythological shock" has a disorganizing effect, on the other hand, the retrieval of the identifying references of the origins restores the original drive circulation.

Keywords: Mythological Losses, Ethnocide, Psychoanalysis, Amazon.


 

Introdução

O cultural e o individual não se dissociam (FREUD, [1922] 2011). E é sob essa prerrogativa que nos apoiamos ao refletir sobre os mitos de origem: os mitos culturais influenciam os individuais.

Por mito, de maneira geral, entende-se a ligação entre o sujeito e suas histórias originárias, assim como ligação com a cultura à qual pertence: o mito é entendido como a "palavra fundadora de identidade" (CECCARELLI, 2012, p. 32). A compreensão sobre mitos de uma cultura é peça-chave para se tomar conhecimento de seus aspectos estruturais.

O Brasil, um país de grande diversidade cultural e influenciado por diversas matrizes étnicas, é um exemplo de variedade de tipos de produção econômica, religiosa, musical, entre outras manifestações culturais (DAMATTA, 1986). Os modos de produção, a religião e os aspectos culturais de uma determinada comunidade estruturam o desenvolvimento psíquico de seus componentes.

Embora seja um conceito caro à antropologia, não existe uma discussão fechada a respeito da cultura. Apesar disso, há autores que a compreendem a partir de seu olhar: cultura é um sistema simbólico necessário à sobrevivência, é dinâmico e condiciona os modos de vida dos sujeitos inseridos nela (LARAIA, 2008).

Entre as pesquisas antropológicas, interessa-nos um tema contemporâneo, introduzido pelo etnólogo Robert Jaulin: o etnocídio. Comparado ao genocídio, um crime de lesa-humanidade, mediante o qual se extermina um determinado grupo humano, o etnocídio amplia essa noção ao patamar de cultura, religião e língua. Não à toa, anteriormente fora chamado de genocídio cultural.

Segundo Correia (2011), o fundo que embasa essa noção são as relações de poder, que desde a colonização dos territórios, vêm gerando repressão cultural e imposição de determinados valores sobre outros. O etnocídio corresponde, então, à incorporação forçada de determinada cultura, levando à extinção da comunidade que é vítima desse fenômeno.

Frente a esses pontos, o presente trabalho fundamenta-se no estudo dos processos de perdas mitológicas. Travassos (2014) argumenta que as suas consequências podem ser avassaladoras no que diz respeito à organização psíquica. Quando os mitos são confrontados ou perdidos, os sujeitos são lançados a um estado de desamparo proveniente do mal-estar produzido pelas perdas das referências identitárias constitutivas o eu.

Para estudar o fenômeno, lançamos mão do documentário Ex-pajé, dirigido por Luiz Bolognesi e lançado em 2018. Para isso, utilizamos da pesquisa teórica em psicanálise, cujas premissas são as manifestações do inconsciente e a realidade psíquica (CECCARELLI, 2009). Pretendeu-se traçar uma compreensão sobre perdas mitológicas e relacioná-las à vivência da etnia Paiter-Suruí, especialmente de Perpera, o pajé da tribo. De acordo com os resultados obtidos, objetivamos colaborar para a expansão do arcabouço teórico psicanalítico a respeito da diversidade cultural e os diversos processos que as circundam. A presente pesquisa parte do interesse em investigar fenômenos culturais amazônicos, com base no viés psicanalítico.

 

"Sabe como os Paiter-Suruí vivemos?": o documentário

O documentário retrata o cotidiano de uma comunidade indígena denominada Paiter-Suruí. O objetivo do material é reproduzir os impactos que a chegada do não indígena exerceu sobre essa etnia.

De início, é mostrada uma breve definição, dada por Pierre Clastres (1980, p. 83), a respeito do etnocídio:

O etnocídio não é a destruição física dos homens, mas a destruição sistemática dos seus modos de vida e pensamento. Enquanto o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito.

As primeiras imagens do documentário mostram o antigo pajé recebendo a publicação da pesquisa da qual fizera parte. Nesse momento, surge a primeira fala a respeito do encargo de ser um pajé, que dá continuidade ao restante do enredo: " Antigamente, se consultava o pajé para tudo. Hoje, só tomam aspirina".

O audiovisual retrata o dia a dia de Perpera, suas idas à cidade, à igreja, seu relacionamento com os espíritos antigos, bem como os acontecimentos que o rodeiam (extração ilegal de madeira, adoecimento de membros da comunidade, entre outros).

Nas conversas que tinha com seu sobrinho, o ex-pajé, então responsável pelo zelo da igreja e pela recepção dos demais membros da igreja, falava sobre a relação de consideração que os antigos espíritos tinham pelo pajé a ponto de estabelecer contato somente com ele. "Ser pajé era sinal de prestígio", já que era a figura que os demais procuravam quando precisavam de ajuda.

Contudo, com a chegada dos não indígenas, o cenário mudou: ser pajé se tornou algo errado, do "demônio", resultando numa mudança de dinâmica na tribo: os que outrora procuravam pelo pajé em busca de orientação passaram a rejeitá-lo enquanto Perpera não integrasse as atividades cristãs.

São mostradas no vídeo as mudanças ocorridas na tribo: a inserção de medicamentos e alimentos industrializados, aparelhos eletrônicos e novas formas de crença, embora alguns aspectos culturais originários ainda fossem mantidos (pinturas corporais, construção de utensílios artesanais, caça, pesca e plantio).

O ápice do documentário é quando, em uma das colheitas de batata, uma Paiter é picada por uma jararaca e acometida por graves sintomas que os médicos e os medicamentos não combateram efetivamente.

 

"O pastor não vai gostar": sobre o processo de perdas mitológicas e suas relações com o etnocídio

Como já mencionado, o mito exerce uma função organizadora no aparelho psíquico, sua formação individual está estritamente relacionada ao mito social, já que a construção do Eu é feita a partir da relação com o outro (FREUD, [1922] 2011). A psique é fruto da cultura, que é modificada pelas ações dos sujeitos. Através do mito, o sujeito pode representar sua história e a dos que lhe precederam.

Todavia, quando o sujeito tem o seu mito individual confrontado, seu psiquismo é abalado/desorganizado, o que pode vir a ser traumático. Tal perda identitária abre caminho para outras saídas subjetivas, assim como os estados depressivos (CECCARELLI, 2007, p. 184).

Durante o documentário, foi perceptível o incômodo vivenciado pelo protagonista, seja dentro, seja fora dos cultos cristãos. Há um momento em que a lâmpada do quarto onde o pajé dormia não liga, deixando-o inquieto, pois estava com medo de que, durante a noite, "[...] os espíritos da floresta batessem nele por raiva da igreja".

Ademais, durante as cerimônias na igreja, o olhar de Perpera era voltado para a floresta e para os animais. Sua expressão demonstrava abatimento, o que pode ser relacionado com o conteúdo enunciado também por Ceccarelli (2007) sobre um dos efeitos da perda de referências: o sentimento de desamparo, resultado do estado de desproteção estrutural do humano.

É interessante observar a mudança de paradigma: antes, ao se conectar ao espírito Goãh Ney (o espírito das águas), o pajé recebia dos espíritos o alimento de acordo com a necessidade da comunidade. Entretanto, o contexto muda com a chegada da igreja e as mensagens sobre o arrependimento dos pecados e seus prejuízos à vida de alguém. Isso pôde ser identificado na cena em que uma das participantes da igreja falou que estivera afastada e, por isso, teve problemas em sua vida.

Outro aspecto a ser mencionado é a repressão dos conhecimentos da comunidade. Antes de acontecer o acidente na plantação de batata (o ataque da jararaca), Perpera estava falando sobre as cobras: elas eram enviadas pelos espíritos inimigos e, naquele momento, a tribo não estava mais sob a proteção dos espíritos, e isso foi o estopim para o resgate das antigas práticas. Já que os medicamentos não estavam resultando na melhora da moça atacada pela cobra, a única solução era pedir ao Pajé que se comunicasse com os espíritos visando a melhora da mãe de seu sobrinho.

O pajé pediu que fosse construída uma flauta cujo toque seria capaz de chamar os espíritos e, assim, curar a moça que estava hospitalizada. "Sobrinho, já que você me chamou, precisam seguir nossa tradição [...]. Melhor não consumir nada dos brancos agora", foram as palavras do pajé antes de iniciar os rituais.

Ao analisar esse discurso, indagou-se a respeito de como essas palavras sugerem uma religação com os componentes identitários perdidos. As palavras pronunciadas por Perpera diante da mulher hospitalizada reiteram essa hipótese: o pajé convoca os espíritos a curar a moça. Depois desse momento, o sujeito adoentado finalmente começa a melhorar.

 

"Eu sou um guerreiro Paiter!": encantamentos finais

O objetivo do documentário foi retratar o etnocídio, considerado como a imposição de uma cultura sobre outra, a ponto de extingui-la (CORREIA, 2011) . Tomando isso como base/Com base nisso, articulamos, a partir de um viés psicanalítico, o processo de perdas mitológicas.

Ao analisar o documentário, identificamos que a comunidade Paiter-Suruí possui, assim como toda cultura, seus modos de funcionamento, acometendo diretamente a singularidade das formas de vida de cada sujeito.

Antes de encerrarmos nossas reflexões, duas cenas podem ser comparadas a fim de reiterar o que fora dito: frente a um cupinzeiro, ou como chamado no documentário: "Wasahpôga", um inimigo cujo enfrentamento só pode ser por um guerreiro Paiter-Suruí protegido pelos espíritos, Perpera orientou uma criança a não tocar naquilo com seu arco e flecha, já que a comunidade não estava sob a proteção dos espíritos.

Depois do episódio de cura do veneno da jararaca e antes de o documentário chegar ao seu final, o cupinzeiro é destruído por um dos Paiter dizendo "Eu não tenho medo. Sou um guerreiro Paiter. É o seu fim, inimigo", apontando para uma possível recuperação das referências mitológicas, assim como o restabelecimento da circulação pulsional anterior, já que os componentes ideativos também foram reorganizados.

Entretanto, percebemos que, durante o processo, a comunidade perdera suas referências (a proteção dos espíritos), sendo destituída da posição de guerreiros que eliminam inimigos e que, quando necessitam, recebem o alimento diretamente dos espíritos.

Concluímos que, de um lado, o "choque mitológico" tem um efeito desorganizador e, de outro, o resgate das referências identificatórias dos mitos de origens restabelece a circulação pulsional original: os Paiter restituíram seu lugar de guerreiros e não vivem mais com medo.

 

Referências

CECCARELLI, P. R. Considerações sobre pesquisa em psicanálise. 2012. Disponível em: http://www.ceccarelli.psc.br/texts/consideracoes-sobre-pesquisa-em-psicanalise.pdf. Acesso: 12 out. 2019.         [ Links ]

CECCARELLI, P. R. Mitologia e processos identificatórios. Tempo psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 39, p. 179-199, maio 2007. Disponível em: http://www.ceccarelli.psc.br/texts/mitologias-processos-identitarios.pdf. Acesso em: 13 out. 2019.         [ Links ]

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DA MATTA, R. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1984.         [ Links ]

EX-PAJÉ. Direção: Luiz Bolognesi. São Paulo: Buriti Filmes e Gullane, 2018. (1h 21 min).         [ Links ]

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TRAVASSOS, M. R. C. Mitos de origem e processos identificatórios na Amazônia: uma visão psicanalítica.2014. Dissertação (Mestrado em psicologia clínica e cultura) - Faculdade de Psicologia, Universidade Federal do Pará, Belém, 2014.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Dorivaldo Pantoja Borges Junior
E-mail: dorivaldopsi@outlook.com

Paulo Roberto Ceccarelli
E-mail: paulorcbh@mac.com
Homepage: www.ceccarelli.psc.br

Recebido em: 10/11/2019
Aprovado em: 28/11/2019

 

 

SOBRE OS AUTORES

Dorivaldo Pantoja Borges Junior
Graduando em Psicologia pela Universidade da Amazônia (UNAMA).
Bolsista PIBIC/CNPq do Programa de Pós-graduação em Comunicação, Linguagens e Cultura (PPGCLC/UNAMA).
Diretor Científico da Liga Acadêmica Paraense de Saúde Mental (LAPASME).

Paulo Roberto Ceccarelli
Psicólogo.
Psicanalista.
Doutor em psicopatologia fundamental e psicanálise pela Universidade de Paris 7 - Diderot.
Pós-doutor pela Universidade de Paris 7.
Coordenador do Instituto Mineiro de Sexualidade (IMSEX <www.imsex.com.br>).
Diretor científico do Centro de Atenção à Saúde Mental (CESAME <www.cesamebh.com.br>).
Membro da Société de Psychanalyse Freudienne - Paris, França.
Membro da Associação Universitária de Pesquisa em psicopatologia fundamental.
Pesquisador do CNPq.
Professor Adjunto IV da PUC Minas.
Professor e orientador de pesquisas do mestrado de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência/MP, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Professor e orientador de pesquisas na pós-graduação em psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).
Sócio fundador do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA).

 

 

1 Trabalho apresentado no XXIII CONGRESSO DO CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE, III JORNADA DO CÍRCULO PSICANALÍTICO DO PARÁ, Psicanálise e diversidades: inconsciente, cultura e caminhos pulsionais. Belém (PA), 7-11 nov. 2019.

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