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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.53 Belo Horizonte Jan./June 2020

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA, TEORIA E CULTURA

 

O discurso da rede e seus efeitos no laço social

 

The network's discourse and its effects on the social bond

 

 

Eduardo Henrique Ferreira Dias

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo apresenta como proposta de formalização um novo matema que represente o modus operandi pós-contemporâneo do liame social. Não mais um discurso capitalista, mas um discurso ultracapitalista, o discurso da rede. O novo mestre do laço social subjetivo tem outro imperativo: "Use!". Apoiado em uma nova verdade, o sujeito se enlaça à cultura, interpolado por uma rede de significantes, portanto existe neste contexto uma relação do ser falante com seu objeto causa de desejo? É o que se pretende aqui discutir.

Palavras-chave: Discursos, Gozo do corpo, Psicanálise.


ABSTRACT

This article presents as a proposal to formalize a new mathema that represents the post-contemporary modus operandi of the social link. No longer a capitalist discourse, but an ultra-capitalist discourse, the network discourse. The new master of the subjective social bond has another imperative: use. Supported by a new truth, the subject ties himself to culture, interpolated, by a network of signifiers, so is there in this context a relation of the speaking being with his object cause of desire? This is what we intend to discuss here.

Keywords: Discourses, Enjoyment body, Psychoanalysis.


 

Os discursos lacanianos e seu modus operandi

Os analistas frequentemente questionam as formas em que se encapsulam os sintomas e vão além, se interrogam como essas manifestações têm se apresentado em seus consultórios. Não seria estranho, uma vez que é a partir de observações clínicas, que Freud e Lacan constroem um corpo teórico robusto da psicanálise.

Pois bem, é nesse contexto que segue a seguinte hipótese de trabalho: Qual a dominância do discurso do liame laço social em que estamos engendrados?

O ponto de partida se dá via O seminário 17: O avesso da psicanálise, de Lacan (1969-1970). Para o autor, todo laço social está fundamentado em uma forma discursiva e, nessa dinâmica, há estruturas mínimas de funcionamento.

Portanto, apoiado nessas leis de funcionamento psíquico, o sujeito se enlaça à cultura e em determinadas posições, que ditam o modus operandi da relação subjetiva do sujeito com o mundo em que vive.

Seguindo o fio condutor, essas estruturas mínimas (S1, S2, e objeto a) doam as regras a tais discursos. Sendo assim, quando esses elementos mudam de posição (verdade, agente, outro e produto), a dominância do discurso também o faz.

Para Lacan, a palavra "dominância" não tem o mesmo sentido de dominação, como um mestre domina seu escravo, mas de "preponderância", substância que há em cada uma das formas discursivas.

Pois bem, o laço social se mantém por diferentes imperativos subjetivos. Mas há uma forma dominante contingente em cada construção social limitada pelo tempo em que se manifesta.

Assim, o sujeito se articula à cultura (de acordo com a dominância discursiva) e tal fato, não exclui a posição subjetiva singular do ser falante de se enlaçar ao outro, mas se torna claro que há formas discursivas em diferentes épocas e contextos socioculturais.

O discurso do mestre, o discurso da histérica, o discurso universitário e o discurso do analista servem para guiar o analista nas seguintes questões:

Como o sujeito se enlaça à cultura?

De qual posição ele está falando?

Qual a posição da psicanálise frente à dominância discursiva da cultura?

O discurso do mestre está fundamentado na relação do senhor e do escravo, discutido por Lacan, na criação hegeliana. Aqui o agente é o S1(significante mestre) apoiado na verdade (sujeito dividido). O mestre demanda do outro/escravo (S2 - rede de significantes) um produto, que seria o objeto a, algo há de gozar. Por sua vez o escravo o faz por essa posição de subserviência que está em relação ao seu mestre. Sendo assim, a dominância do discurso do mestre se refere ao imperativo "Faça!". Vale ressaltar que o objeto de desejo do mestre é a produção do escravo.

Em outra dinâmica, o discurso da histérica se efetua mantendo no lugar do agente um , que demanda do outro S1 (seu mestre) uma produção que seria um saber sobre sua divisão/falta, a verdade em que se apoia esse agente no discursivo e seu próprio objeto a. Ou seja, a dominância neste discurso se dá através do questionamento. Sendo assim, a histérica questiona o Outro para que saiba dela, da falta que a constitui.

A terceira via em que o sujeito se articula à cultura é o discurso universitário, já bem nos diz Lacan "o saber é meio de gozo" (LACAN, [1969-1970], p. 40). Aqui o agente é guiado por uma cadeia de significantes S2, demandando do outro (objeto a) a produção de um saber que é dividido , algo que nunca acaba. Sob a metáfora do professor e do aluno, agora o mestre, de forma imperativa, determina "Saiba!", mas esse saber é para o gozo do próprio professor. Para isso, ele se apoia na verdade um significante mestre S1 – o saber .

Em posição inversa à do mestre, no discurso do analista, o agente é tomado pelo semblante do objeto a. Ele não demanda nada ao outro, ele está em outra posição, na intenção que esse sujeito dividido produza seu próprio saber, seu próprio significante mestre S1, A verdade em que o analista está pautado é uma cadeia de significantes S2, que é tomado pelo outro – analisante – como um enigma.

Anos após essa publicação, Lacan (1974) traz à luz um novo discurso, nomeado como mestre contemporâneo: o discurso capitalista. Nesse modus operandi, munido do conceito apropriado de Karl Marx (mais-valia) e transformando-o em mais-de-gozar, Lacan aproxima a ideia de um pseudolaço social. Aqui o agente , dividido/barrado, demanda do outro S2 uma produção de seu objeto a. E aqui está o ponto de furo, pois no lugar do outro existe uma cadeia de significantes, produtos, bens de consumo. Sendo assim, não há relação do sujeito com um objeto causa de seu desejo e sim de consumo.

Para tal, o sujeito se apoia na verdade imperativa do "Tenha!". Nesse tipo de relação não existe o laço social. Há uma inibição à sociabilidade, um autismo cultural (enquanto estrutura), uma realidade de gadget – consumo curto, rápido e efêmero. Assim, torna-se clara a forma discursiva que cada sujeito elege para manter sua relação com a cultura.

Lacan cria os discursos buscando referências nos fenômenos socioculturais, tendo como base a filosofia entre outros meios de saber, pois eles fornecem um conteúdo manifesto, que seria a porta de entrada para o conteúdo latente, como em nossas análises, agora partindo do coletivo.

Estaríamos evidenciando o mesmo conteúdo manifesto (fenômeno) em que Lacan, em sua temporalidade publicou o discurso capitalista?

 

"Alguma coisa está fora da ordem mundial"

Quando ligamos nossos rádios e televisores, perdoem-me a displicência, quando acessamos nossos celulares e tábletes... Essa é a nova baliza, não acham?

Com uma velocidade sem precedentes na história, as relações com o mundo têm sofrido mudanças e não temos um segundo sequer para ponderar sobre qualquer assunto. Temos que nos adaptar?

Frases como "Meu Uber está chegando", "Vou pedir um Ifood", "Você acredita que ele curtiu meu story" têm invadido a fala em nossos consultórios e partem de indivíduos de quase todas as idades. Já não existe mais resistência em massa às novas tecnologias.

E-mail, post, zap, facetime, playlist, canal do Youtube, ferramentas e apps [aplicativos] fazem a percepção humana desconhecer a barreira da distância. O mundo está conectado, e por mais incrível que pareça, ainda falam de um delay [demora], que na verdade são segundos ou fração de segundo. O mundo está acelerado.

As fronteiras parecem existir somente no papel. Blogs ditam verdades. A ciência está xeque-mate. Alugamos apartamentos, carros, e acreditem serviços personalizados num clique. Viagens longas são planejadas, compradas e decididas num piscar de olhos.

Há uma ordem nisso tudo? O que podemos concordar é que o mundo está bem diferente. Aplicativos substituem boates, bares e festas. Análises online. Posso até contratar um serviço para comprar minha roupa da festa neste fim de semana, enquanto fico conectado na rede.

E se me aperta o tempo, o que é de praxe, contrato alguém para passear e cuidar do meu pet. Acreditem, hoje podemos fazer tudo isso em menos de uma hora e ainda sem sair de casa, além de não precisar tocar em dinheiro. A moeda corrente agora é outra.

Esses são os fenômenos que observamos no mundo pós-contemporâneo e não se trata de algo especifico ou regional. Estamos globalizados e conectados neste 'iMundo'.

 

Uma filosofia para o século XXI

Em uma publicação no mínimo curiosa – Do Amor, uma filosofia para o século XXI – Claude Capeller (2017, p. 11) apresenta o filósofo Luc Ferry em um prefácio de apenas sete páginas que se inicia com seguinte colocação:

A crise mundial na qual estamos mergulhados acentuou o sentimento de que o curso do mundo nos escapa, de que os remédios políticos, de esquerda bem como de direita, não conseguem mais atuar sobre a realidade, de que os valores que defendemos adequam-se cada vez menos à nossa maneira de viver.

Forbes (2011) nos alerta: estamos "desbussolados", perdemos a referência. Pois bem, de que tratam tais citações? De um novo paradigma.

Luc Ferry, por meio de sua filosofia da espiritualidade laica e trazendo o sentido de fé sem perpassar pela religião, demonstra que através dos anos estamos imersos em um novo paradigma, um novo princípio. Que princípio seria esse? Para entender, devemos antes retomar os princípios nos quais estávamos imersos até a pós-contemporaneidade.

Os gregos se guiavam por sua filosofia, que em grande parte compartilhava do mesmo fio ideológico: o princípio cósmico. Através das aventuras de Ulisses, se torna claro que a boa vida se resumia em estar em harmonia com cosmo, com a ordem natural das coisas, que se encontrava na natureza e sua ordenada relação com mundo. Havia um amor ao presente, uma relação idealizada com o natural cosmológico. A salvação estava no aqui e agora.

Com o advento das mudanças estruturais da cultura, surge o segundo princípio, muito familiar: as civilizações monoteístas (ocidentais), que fazem a transposição do cosmo para um Outro (Deus). Agora o que rege o engajamento do sujeito com a cultura são os mandamentos divinos. A fé é deslocada da natureza, do cosmológico para um salvador, e seus mandos se tornam a baliza para uma boa vida.

Pois bem, acredita-se que boa parte dos leitores já conhece os pormenores que nossa cultura vivenciou e, assim, há uma nova cisão, um novo deslocamento do princípio regente do modus operandi e surge a queda do teocentrismo.

Não mais Deus, o único, mas o homem, ele renasce e em outra perspectiva. Cogito, ergo sum[penso, logo existo], nos diz Descartes, colocando o homem no centro da fé. Somente o homem, da razão, poderia escolher seu próprio destino, diferentemente dos demais seres vivos. Somente o homem com seu valor insubstituível do pensar poderia se subtrair das determinações da natureza e de Deus. E isso se dá através da inserção simbólica de uma pedra no edifício do progresso humano.

Vale ressaltar que a ideia da religião não se perdeu, mas mudou de base. O sacrifício agora é em prol do conhecimento, da nação, da liberdade democrática em sua busca idealizada e racionalizada de felicidade. Há, então, um homem que poderia superar seu próprio destino, cravando sua contribuição para o social, para a política, a ciência e a arte.

Com uma nova quebra de paradigma, entra em cena uma antítese frente a esse homem pleno da consciência. Os desconstrutores, utilizando as ferramentas racionais (para desconstruir o homem da razão), defendem outra concepção de ser. Esse homem racional e consciente não passa de mera ilusão.

Agora Deus e o natural, que andavam paralelos à escolha de um ideal, são declarados mortos. Sim, Deus está morto e junto à finitude desse homem puro da razão. O novo homem agora tem uma dimensão muito mais complexa regida por pulsões inconscientes, por processos econômicos, libidinosos, sociais e culturais que o envolvem e o atravessam. Mas há fé na intensidade e na emancipação. Somente conhecendo seus percalços, o homem poderá se emancipar e intensificar sua existência no mais alto grau.

Hoje o princípio central da cultura está fundamentado na mesma concepção de ser humano criado pelos desconstrutores? Existem indícios de que o princípio que está circulando na cultura já não tem mais a mesma fundamentação anterior.

Luc Ferry (2017) defende a ideia de que há um quinto princípio – o princípio do amor. Sim, esse sentimento que sempre foi questão para humanidade. Por vezes aparenta estar um tanto equivocado, uma vez que vemos tantas manifestações hostis, porém para nós, analistas, faz bastante sentido assim como para Lacan, que chama esse fenômeno psíquico de "amódio" .

Como isso se deu? À medida que o homem da razão passa a estruturar sua vida a partir da liberdade, da igualdade e da fraternidade, as famílias passam a se construir por outro motivo.

Antes o casamento era para manter a propriedade, o gene, para o bem religioso e para manter o nome. Era um negócio, uma tradição, que perdurou por muito tempo. Com a inserção do capitalismo, as mulheres passaram a trabalhar e a ter escolha com quem se casar. Então, o casamento por sentimento passa a reger tal escolha.

Casamentos por amor mudam a perspectiva de toda a estruturação social. As famílias agora estão em outro eixo de fundamentação. Casamentos baseados na escolha sentimental geram filhos muito amados, não que antes fossem, mas agora superamados, um amor phatos [paixão], onde é constituída a luz da ideia que vai além de sua majestade, o bebê.

Tal fio condutor parece bem elucidativo e faz jus ao que vivemos. Sujeitos muito amados entendem que tudo podem e, assim, como constituídos em seu leito familiar, o outro nada pode "contra você, meu amor". Para que esses filhos, mais que amados, possam desfrutar de uma vida de deleite, investe-se no desempenho. A regra agora é seja o melhor. "Meu amor, papai e mamãe fazem tudo para que isso aconteça".

A partir dessa transformação de sentido, criam-se novas regras sociais. Portanto, há outro parâmetro para a política. Não estamos mais dispostos a sacrificar nada pela nação ou pela revolução, principalmente os jovens, que têm clamado por outro referencial político.

Só há sacrifício por um mundo melhor. As ideologias sempre estarão ai, mas elas só fazem sentido se forem engajadas em um discurso de otimização, de melhoria e sempre respondendo a seguinte questão: Que mundo deixaremos para nossos filhos?

Ou seja, a política só e viável se for possível sacralizar o homem em sua complexidade, bem como sua relação com seus recursos para a manutenção da espécie. Pensamentos esses que vemos aí em debandada com as questões provenientes das vertentes ecológicas.

Na economia, com intuito estrutural de tornar melhor o desempenho dos filhos superamados, entende-se que não devemos mais acumular, como no antigo modus operandi capitalista. Agora devemos usar. É um ultracapitalismo. Não é mais um 'falta-a-ter', agora é 'falta-usar'.

Com o advento da tecnologia, podemos gozar de tudo: Uber, Airbnb, Ifood, Happn, que são uma pequena prova concreta do novo discurso econômico. Sendo assim, a antiga modalidade de emprego formal perde espaço para uma produção informal. Os antigos cargos assalariados com alta responsabilidade são substituídos por atividades em que a renda é capaz de proporcionar o uso de qualquer objeto que o sujeito demande. Jovens fazem opção por uma carreira que gere menos transtornos e capital necessário para desfrutar dos elementos que desejem, sem muita dor de cabeça.

As manifestações sociais agora estão em outro âmbito. Protestos e arte estão na rede. Museus e salas de cinema são substituídos por um espaço virtual. Programas televisivos terão que se adaptar à demanda do público, ou seja, o conteúdo está ao alcance de todos em aplicativos e todas as redes sociais, onde poderão ser acessados no espaço de tempo conveniente. Como a vida é pautada em alto desempenho, o tempo é escasso.

Há um declínio da ciência. A verdade agora está nas mãos dos blogueiros e digitals influencers. A OMS (2019) tem advertido sobre a volta de doenças erradicadas, como poliomielite, uma vez que existe uma corrente que dissemina informações sobre os malefícios das vacinas.

Agora a ciência médica e natural não se preocupa não mais estritamente com a cura ou com o desvelamento de fenômenos naturais, mas com a melhoria do homem pelo próprio homem.

Transumanistas, uns radicais, outros nem tanto, defendem a legitimidade da ideia de vencer a morte e a senescência. Pautados em pesquisas com elevado recursos tecnológicos, criam cirurgias genéticas, impressão de tecidos e órgãos em impressoras 3D e por aí vai.

No vale do Silício, a Universidade da Singularidade investe valores compatíveis ao PIB de diversas nações com o único intuito – superar a morte e melhorar a vida. A medicina vive outro paradigma: como iremos aperfeiçoar a vida do ser humano em sua complexidade? A dermatologia, por exemplo, além de se preocupar com as morbidades da pele, investe de forma maciça em procedimentos estéticos, uma forma de enganar tanto o Imaginário do corpo que envelhece.

A religião está adequando sua filosofia. Missas longas e rituais dogmáticos agora se veem à espreita do desafio de se tornarem populares antes de tudo. Não mais cabem os simples argumentos de que Deus está vendo, Deus mandou, Deus sabe de tudo. Deus agora aceita tudo em nome do amor.

Pastores, padres e líderes religiosos não têm mais fieis ou discípulos e sim seguidores. Se não adequarem às demandas da cultura estão fadados à morte social. Nesse novo modelo, a religião revê princípios relativos à reprodução, à homossexualidade, ao feminino e à mulher, à escolha subjetiva e à salvação, bem como às diferenças ao princípio da vida na Terra.

A sexualidade nunca esteve tão em foco. Diante desse paradigma de que somos muito amados e valorizados, o que vale é ser feliz. Para isso, podemos ser heterossexuais, homossexuais, bissexuais, pansexuais, sem falar da infinidade de classificações possíveis.

Na educação, o fenômeno de filhos amados em demasia nos trouxe outra vertente. Em primeira instância, no nível familiar, a educação de princípios que eram transmitidos pelas famílias, agora também é função do professor e da instituição de ensino. E o elemento central é sempre construir um mundo melhor. Escolas e professores se veem perdidos frente à perda de autoridade. Os jovens não podem mais tirar notas baixas. A culpa é do professor, da instituição que não soube ensinar aos nossos filhos.

A informação se desloca em uma velocidade antes desconhecida e, como já era de se esperar, esses jovens alunos devem chegar ao patamar de excelência quanto a seu desempenho. Agora o bom professor é aquele que de forma lúdica faz com que a educação seja algo prazeroso e vai além: o aluno terá que se sair o melhor possível.

Pois bem, poderia ficar escrevendo laudas sobre os indícios do novo paradigma da cultura. Está bem aí aos olhos do leitor. Basta em nossa vida acelerada parar um minuto e pensar se podemos viver sem usar algo, se temos o direito de não ser bem-sucedidos, sem ter alto desempenho e, por fim, se nas relações na rede alguém pode discordar, ou seja, "tudo posso, o outro nada pode".

 

O discurso da rede e seu imperativo de uso

Se há um novo mestre há uma nova forma discursiva no laço social subjetivo. Esse mestre em sua posição imperativa ordena: Use! Para tal, o sujeito se coloca na rede (S2 – rede de significantes) com advento imaginário de ser objeto causa de desejo (objeto a). Apoiando-se na verdade (S1 – significante mestre) em que "tudo posso, o outro nada pode". Nessa dinâmica, crê encontrar, na rede, o outro, Uno e completo. Como já assinalado, todo esse evento não passa de uma manobra imaginária.

 

 

Pois bem, esse outro da rede que está encapsulado por um objeto que aparentemente seria inteiro, mas na realidade é dividido, faltoso e verdadeiramente ausente. Nesse artifício imaginário do outro da rede falta corpo, que em tese traria consistência para a dinâmica do laço social. E aqui reside o ponto crucial, em que o sujeito encontra uma saída viciante. Como a angústia está pulverizada, diluída nessa falsa percepção de unidade que a rede proporciona, a via preferencial é de gozo do corpo, que é efêmero e nele está implícito o ato de Usar.

Quando o sujeito se depara com o Real da ausência de unidade e de corpo, que é deturpada pela rede, criam-se novas formas de sintomas e em tese nova forma de laço social. Mas a grande questão é: Nesta dinâmica há laço social?

Creio que há um laço, digamos, virtual, imaginário e enganoso. Há que pensar que nesse discurso hipercapitalista do imperativo de USO está inserida a lógica determinante do psiquismo. Se a pulsão é uma força constante que não se cessa e, além de tudo, não há objeto que a satisfaça em sua completude, a cultura encontrou um bom método para diluir a angústia, oferecendo a todo instante algo que possa ser usado infinitamente e que seja de fácil acesso. Haveria tempo lógico, nesse modus operandi, para o sujeito se dar conta de seu vazio, da sua divisão, da sua falta e, acima de tudo, de seu desejo?

 

Uma posição do psicanalista frente ao discurso da rede

Os discursos formalizados por Lacan elucidam como o sujeito se articula à cultura e, assim, metaforicamente. E utilizamos o grafo do desejo, os esquemas R e L para determinar a posição subjetiva do ser frente ao seu Real e direcionar o tratamento analítico.

Portanto, cabe aqui interrogar como conduzir a análise desse sujeito que se articula no discurso da rede para fazer Laço social. E mais: qual a posição da psicanálise diante desse novo mestre?

Respondendo à primeira questão, talvez exista uma saída, quando no ato analítico marca-se o modo de gozo e paralelamente evoca-se o desejo do sujeito para, então, determinar em qual posição pretende se firmar, mesmo diante desse novo mestre. O novo imperativo de uso apoiado na verdade em que "tudo posso e o outro nada pode" proporciona novas formas de sintomas. Mas cabe aos efeitos proporcionados pela análise advir na vida desse ser outras saídas que não sejam exclusivamente a escravidão da vida gozosa da rede.

Quanto a uma possível posição da psicanálise frente a esse novo mestre, torna-se essencial ressaltar que o compromisso do discurso psicanalítico, bem como seu savoir faire é com o desejo e não com o gozo. Junto a esse padrão do conteúdo manifesto da cultura abre campo para a seguinte interrogação, USAR para quê? Só existe essa saída, o uso? De fato, a tecnologia traz, assim como todos os objetos do mundo, benefícios, mas qual a busca nessa repetição? Não seria essa posição que nós, analistas, deveríamos assumir? De fazer questão? Em qual direção à cultura nos leva com este novo mestre do laço social?

São questões que eclodem na vertente aqui apresentada e que peço aos colegas que se manifestem nessa empreitada, que se trata de sustentar o desejo do analista, não só na psicanálise em intensão , mas também como elemento imprescindível à cultura, a psicanálise em extensão.

 

Referências

DESCARTES, R. Discurso do método. In: Descartes - vida e obra. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1996. p. 65-127.         [ Links ]

FERRY, L. A filosofia para um novo tempo. Entrevista concedida a Jorge Forbes no Café filosófico, programa da série: "Fronteiras de Pensamento", com curadoria de Jorge Forbes. TV Cultura, São Paulo, fev. 2017.         [ Links ]

FERRY, L. Do amor. Uma filosofia para o século XXI. Tradução: Rejane Janowitzer, 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.         [ Links ]

FERRY, L. Família amo vocês. Política e vida privada na época da globalização. Tradução: Jorge Borges, 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.         [ Links ]

FERRY, L. Revolução transumanista. Tradução: Erick R. R. Heneault. Barueri, SP: Manole, 2018.         [ Links ]

FORBES, J. Entrevista a Luc Ferry. Café filosófico: As transformações do mundo contemporâneo. Campinas, set. 2011.         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Ary Roitman. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, reimpr. 2016. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

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LACAN, J. Televisão (1974). Rio de Janeiro: Zahar, 1993.         [ Links ]

ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE /ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE Poliomielite Folha informativa. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5735:folha-informativa-poliomielite&Itemid=820. Acesso em: 04/02/2020.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: dreduardodias@gmail.com

Recebido em: 27/05/2020
Aprovado em: 15/06/2020

 

 

SOBRE O AUTOR

Eduardo Henrique Ferreira Dias
Graduado em enfermagem pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
Residente de enfermagem em cancerologia no Instituto Nacional de Cancerologia (INCA). Especialista em enfermagem em cardiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Especialista em enfermagem em cancerologia pelo INCA.
Especialista em enfermagem em cardiologia pela UFRJ.
Pós-graduado em filosofia pela Faculdade Dom Alberto.
Mestre em bioética pela Universidad del Museo Social Argentino.
Candidato em formação (1º Tempo) no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG). Participante do Grupo de Estudos e Produção no CPMG, coordenado pelo psicanalista Messias Eustáquio Chaves no período de fev. 2017 a nov. 2019, como parte da formação em psicanálise.

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