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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.53 Belo Horizonte jan./jun. 2020

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA, TEORIA E CULTURA

 

Anna Freud: uma desenvolvimentista quase esquecida

 

Anna Freud: an almost forgotten developmentalist

 

 

Marcos Roberto FontoniI; Leopoldo FulgencioI, II

I Universidade Federal de São Paulo
II Universidade Católica de Campinas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Anna Freud é classicamente reconhecida, na história da psicanálise como a filha de Freud que analisou O ego e os mecanismos de defesa, responsável por contribuir com a perspectiva teórico-clínica denominada psicologia do ego. No entanto, pouca atenção foi dada (e ela foi mesmo negligenciada) ao restante de sua obra, especialmente no que se refere ao imenso trabalho de consolidação da teoria do desenvolvimento da sexualidade como uma teoria plena do desenvolvimento. Neste artigo, elencamos alguns pontos da obra da autora que vão muito além daquilo que ela propõe sobre os mecanismos de defesa, incluindo aqui sua contribuição à teoria psicanalítica do desenvolvimento, bem como suas ideias a respeito de questões mais gerais como a posição da psicanálise no meio científico, o uso da observação direta como método de investigação na psicanálise, seu pioneirismo na construção de um instrumento de avaliação e diagnóstico com base psicanalítica, o uso da psicanálise como método de prevenção e suas observações a respeito do desenvolvimento perturbado ou interrompido.

Palavras-chave: Psicanálise, Anna Freud, Desenvolvimento, Criança.


ABSTRACT

Anna Freud is classically recognized, in the history of psychoanalysis, as the daughter of Freud who analyzed The Ego and the Defense Mechanisms, who was responsible for contributions to a theoretical-clinical perspective called ego psychology. But, little attention was paid (and she was even neglected) to the rest of her work, especially with regard to the immense work of consolidating of the sexuality development theory as a full theory of development. In this article, we list some points of the author's work that go far beyond what she proposes about defense mechanisms, including her contribution to the psychoanalytic theory of development, as well as her ideas on more general issues such as the position of psychoanalysis as a science, the use of direct observation as a method of investigation in psychoanalysis, her pioneering spirit in the construction of an instrument of assessment and diagnosis based on psychoanalysis, the use of psychoanalysis as a method of prevention and her observations regarding disturbed or interrupted development.

Keywords: Psychoanalysis, Anna Freud, Development, Child.


 

Introdução

Como sabemos, Sigmund Freud foi pioneiro na apresentação de uma teoria do desenvolvimento – a teoria do desenvolvimento psicossexual, o que tem sido reconhecido e reiterado em diversos manuais dedicados à apresentação do campo atual das teorias do desenvolvimento. Após ele, muitos autores da psicanálise também fizeram suas contribuições neste campo, como Erik Erickson, Renné Spitz, Margareth Mahler, Anna Freud e muitos outros.

Apesar disso, se observarmos os diversos manuais do desenvolvimento infantil (como os de Helen Bee, Ruth Feldman, etc.) veremos que a psicanálise é reduzida à apresentação das perspectivas de Freud e Erickson. E ainda assim, essa apresentação é tomada como meramente didática. Nesse sentido, também podemos notar a ausência de participação de psicanalistas em eventos da psicologia do desenvolvimento, o que evidencia um distanciamento desses dois campos. Portanto, aplicar a psicanálise a pesquisas a respeito do desenvolvimento infantil não é só útil, já que a psicanálise tem uma vasta bibliografia sobre este tema, como também necessário para reduzir esse distanciamento.

Mas essa aproximação não deve ser somente teórica, haja vista que a psicanálise enfrenta no campo científico como um todo, já há algum tempo, críticas por seu modelo de teorização especulativo e que muitas vezes não atende às exigências da Medicina baseada em evidências (FONTONI, 2015).

Muitas dessas críticas derivam da insistência na manutenção de conceitos mesmo após estudos confirmarem sua inaplicabilidade, o que, por sua vez, é fruto de um movimento ortodoxo que em muitos casos considera uma "afronta a Freud" questionar suas proposições (IMBASCIAT, 2011).

A esse respeito, Mark Solms (2005, p. 536, tradução nossa), autor que trabalha na interface entre psicanálise e neurociências, diz:

[...] pesquisas autocríticas [self-critical research] ou mesmo pesquisas que utilizam o método analítico têm sido pouco realizadas em psicanálise, especialmente desde a morte de Freud. Nesse sentido, a psicanálise pós-guerra tendeu principalmente a se caracterizar como uma regurgitação da teoria existente e cogitação sobre postulados perenes [perennial conundrums].

Nesse contexto, a pesquisa da qual resulta este artigo buscou apontar interfaces entre a psicanálise e a psicologia do desenvolvimento, e possibilitar sua aplicação a experimentos empíricos. Nessa empreitada, o ponto de partida dentro da psicanálise foi o trabalho de Anna Freud, uma autora que geralmente é lembrada apenas como a filha de Freud que escreveu O ego e os mecanismos de defesa.

Como veremos ao longo deste artigo, Anna deu contribuições que vão muito além das defesas do ego, especialmente para a compreensão do desenvolvimento infantil no contexto familiar e institucional. Além disso, serão apresentados alguns pontos das obras completas da autora, que totalizam oito volumes, nos quais ela toca, mesmo que brevemente, em pontos que são alvo de preocupação na sociedade psicanalítica atualmente.

 

Anna Freud

Anna é uma das pioneiras no campo da psicanálise infantil. Ela foi responsável por expandir a teoria deixada por seu pai – a qual ela mesma criticou por ter deixado uma série de lacunas, como a pouca precisão no que se refere aos fenômenos que caracterizam o desenvolvimento do impulso agressivo, já que, para ela, o que existia era uma mera correlação das expressões agressivas (morder, cuspir, agredir, prepotência) com as fases libidinais (FREUD, 1976).

A partir dessa consideração, Anna Freud propôs um modelo de avaliação mais abrangente que pudesse abarcar o desenvolvimento desde as atitudes

[...] dependentes, irracionais, determinadas pelo id e o objeto, no sentido de um crescente domínio, pelo ego, do seu [da criança] mundo interno e externo (FREUD, 1976, p. 60).

Assim, atitudes menos avançadas como o mamar no seio, o sujar as fraldas, o egocentrismo, etc. teriam um determinado encaminhamento na saúde, (mamar de forma racional, controle dos esfíncteres e empatia consecutivamente) demonstrando o desenvolvimento saudável do ego. A autora ainda destaca a importância do ambiente no processo de desenvolvimento, já que, para ela, esses avanços são sempre o resultado da interação entre impulso e ego/superego com a reação às influências ambientais.

Tal modelo procura compreender e descrever o desenvolvimento considerando uma diversidade de perspectivas ou "linhas do desenvolvimento". O desenvolvimento poderia ser compreendido e avaliado a partir de diversos aspectos, e cada linha seria um aspecto diferente observado na evolução da criança, como a alimentação, a relação com pares, a higiene, etc.

Assim, foram propostas cinco linhas que organizam o desenvolvimento psíquico:

(1) da mamada à alimentação racional;
(2) do se molhar e se sujar ao controle dos esfíncteres;
(3) da irresponsabilidade à responsabilidade no controle corpóreo;
(4) do egocentrismo ao companheirismo;
(5) do corpo a o brinquedo e do brincar ao trabalho;
(6) do caminho percorrido da extrema dependência do recém-nascido à autoconfiança emocional – que é a diretriz prototípica das cinco linhas.

Nesse sentido, cada linha do desenvolvimento é um indício do quão avançada a criança está em termos de dependência e autossuficiência emocional.

Apesar de ter proposto essas cinco linhas, Anna Freud (1965, p. 77, tradução nossa) ressalta que "[...] há muitos outros exemplos de linhas do desenvolvimento" e que esse é um modelo ao qual podem ser agregadas outras linhas que dizem respeito a outros aspectos do desenvolvimento infantil.

Segundo a autora, até o momento da publicação do oitavo volume de suas obras completas, nenhum autor havia ainda aceitado o desafio de fazer uma contribuição nesse sentido.

Então, Anna Freud dá alguns outros exemplos de linhas:

[...] dos caminhos físicos para os caminhos mentais de descarga; dos objetos animados para os inanimados, da irresponsabilidade para a culpa (FREUD, 1981, p. 65, tradução nossa).

E acrescenta:

[...] o caminho que leva ao desenvolvimento do processo secundário; a distinção entre realidade interna e externa; o desenvolvimento da habilidade de descarregar excitações mentais via mente [e não via corpo]; a capacidade de controlar impulsos; o aparecimento da noção de tempo; o caminho do modo egocêntrico [infantil] ao modo mais objetivo [adulto] de perceber o mundo, assim como a estrada para muitas outras conquistas" (FREUD, 1981, p. 129, tradução nossa).

O interesse de Anna pela educação das crianças é um fio condutor na construção dessas linhas, pois a autora procurou destacar nelas as características que precisam estar presentes para que a criança esteja apta a frequentar a escola. A preocupação da autora era de que não se forçasse as crianças a situações para as quais seu nível de desenvolvimento emocional ainda não fosse suficiente.

Para exemplificar essa ideia, Anna compara o desenvolvimento emocional ao momento de desmame do bebê. Ela diz que conselhos do tipo "você deve estimular seu filho a interagir com outras crianças" ou "ma~es e filhos devem ficar juntos o ma´ximo possi´vel, na~o os separe", seria o mesmo que aconselhar que se desmame o bebê de seis meses e o alimente com um bife (FREUD, 1969, p. 348, tradução nossa).

Embora não tivesse especificado as idades para os acontecimentos em cada linha do desenvolvimento e estivesse ciente da escassez dos dados que existiam até então, e ainda soubesse que qualquer tentativa nesse sentido esbarra na limitação que generalizações desse tipo trazem a um campo propenso à variação de indivíduo para indivíduo, Anna Freud se arrisca a demarcar três periódos no desenvolvimento infantil.

• O primeiro periódo é o que se inicia no nascimento e vai até os 12 meses de vida. Esse momento é caracterizado pela vivência do mundo entre apenas dois corpos – mãe e bebê. A partir dessa interação, ressalta a autora, três linhas do desenvolvimento têm maior destaque: distinção entre soma e psique, entre o corpo do bebê e o da mãe e entre self e objeto.

• O segundo periódo se estende até o final dos estágios pré-edípicos (4-5 anos). Os desenvolvimentos com maior destaque nesse periódo são os referentes à motilidade, às funções fisiológicas, ao controle dos impulsos, ao processo secundário e à constância de objeto.

• No terceiro periódo, o desenvolvimento das linhas é mais estável, não tão susceptível a retrocessos ou diferenças no avanço de cada uma delas. As respostas neuróticas a conflitos, quando tudo vai bem, são substituídas por respostas adaptativas (FREUD, 1981).

Esses períodos são a base do sentido cronológico dos acontecimentos descritos nas linhas do desenvolvimento, e que cada uma delas apresenta marcos específicos para cada aspecto do desenvolvimento infantil.

As linhas do desenvolvimento formuladas por Anna Freud descrevem uma série de fases pelas quais o desenvolvimento deve seguir até que o indivíduo conquiste capacidades que lhe permitam viver em sociedade, se relacionar, trabalhar, etc. Além das fases, também é possível identificar os fenômenos que marcam (marcos) a passagem de uma fase para a seguinte. A seguir, apresentaremos um quadro geral desses marcos.

Inicialmente, tendo em vista que Anna partiu das ideias de seu pai para formular sua teoria, podemos considerar os marcos presentes na teoria do desenvolvimento da libido. A partir da observação de crianças institucionalizadas, Anna resume as mudanças que ocorrem na passagem de uma fase para a outra dizendo que

[...] era possível distinguir claramente entre as fases libidinais a partir do comportamento da criança em relação à mãe ou seu substituto. [Primeiro como] uma dependência ávida (oral); uma possessividade invasiva e atormentadora (anal); [e] uma atitude protetora em relação ao objeto de amor (fálico) (FREUD, 1973a, p. 150).

Com relação aos marcos apontados nas linhas do desenvolvimento citaremos aqui alguns exemplos. Na linha que diz respeito ao processo de aquisição da capacidade para se alimentar de maneira autônoma, podemos identificar os marcos relativos ao momento em que a criança é desmamada; depois disso, o momento em que ela começa a poder se alimentar sozinha e depois passa a se alimentar com talheres de maneira gradual até adquirir maestria nessa tarefa.

Quanto à linha do controle dos esfíncteres, há três períodos com seus respectivos marcos ou características: o primeiro se estende até os 24 meses no qual o bebê e a criança pequena têm total liberdade para se sujarem; depois, dos 24 aos 30 meses, há o surgimento dos fenômenos da fase anal – como brincar com as fezes ou substâncias pastosas, com a comida, massinha, etc. Segundo Anna, se essas atitudes forem toleradas pelo ambiente e se regras de limpeza e higiene não forem forçadas à criança, permitindo-lhe exercitar essas tendências anais, o controle dos esfíncteres se dará naturalmente (FREUD, 1974). Por fim, então, num terceiro momento, dos 30 aos 48 meses, a criança deve finalmente adotar de maneira irrestrita as exigências ambientais quanto à limpeza, bem como atingir o pleno controle dos esfíncteres.

A linha da irresponsabilidade à responsabilidade no controle corpóreo teria como marcos o surgimento da capacidade da criança de dirigir sua agressividade para o meio externo. Inicialmente isso ocorre de maneira que desconsidera a responsabilidade da criança sobre suas próprias atitudes para então, com o desenvolvimento, a criança ser capaz de perceber que seus atos têm um efeito sobre o mundo e de se responsabilizar por eles.

A linha do egocentrismo ao companheirismo descreve as etapas que o indivíduo percorre para passar de um relacionamento apenas a dois corpos (mãe e bebê) para a construção de laços sociais, amizades, etc. Para Anna, na verdade, no início, o interesse do bebê pela mãe nem se daria por um interesse nela como pessoa, mas simplesmente como um objeto que atende às suas demandas instintuais.

A linha do corpo ao brinquedo e do brinquedo ao trabalho descreve o caminho percorrido para a chegada de dois marcos: a capacidade de brincar e a capacidade para trabalhar. Os marcos nesse percurso seriam, no início, a utilização do corpo da mãe e do próprio corpo como objetos para brincar; depois haveria a adoção de uma categoria de brinquedos utilizados especialmente como fonte de conforto (como um objeto macio – pano, urso, etc.).

Segundo Anna, esses brinquedos são "[...] usados para conforto, como uma alternativa para sentimentos amáveis e agressivos" (FREUD, 1969, p. 330, tradução nossa). Aqui, a autora coloca a "passagem pelos objetos transicionais" (FREUD, 1974, p. 64, tradução nossa), conceito emprestado de Winnicott (1975), como o fenômeno que descreve o que são tais brinquedos macios utilizados para conforto. Por fim, surgem as brincadeiras construtivas.

Além das linhas propostas por Anna, e como ela mesma incentivou que fosse feito, identificamos a descrição dos mecanismos de defesa como um meio para avaliar o avanço no desenvolvimento. Isso parte do princípio de que a aquisição de novas capacidades pelo ego não está livre de consequente sofrimento.

A capacidade de entrar em contato com a realidade, por exemplo, traz consigo a percepção de que o mundo exterior é cheio de ameaças, frustrações, etc. Então, assim que essas capacidades são adquiridas, a criança tenta se livrar delas. A realidade externa passa a ser obstruída por meio do mecanismo de "negação" [denial] . Para se livrar das memórias e da consciência dos representantes das urgências, do Id faz-se uso da "repressão" [repression] ; substitui forças não bem-vindas por seus opostos [reaction formation]; substitui fatos dolorosos pela fantasia [escape into fantasy life] ; atribui ao outro as qualidades que não gosta em si mesmo [projection]; e se apropria do que gosta nos outros [introjection] (FREUD, 1973a).

Os retrocessos no desenvolvimento do ego, causados pelos mecanismos de defesa aplicados contra as ansiedades provindas do próprio desenvolvimento do ego, devem, na saúde, ser superados no início do período da latência, no qual o ego se fortalece e as ansiedades diminuem. Quando os mecanismos de defesa são aplicados em demasia, devido a ansiedades muito fortes, o desenvolvimento do ego é afetado e tende a ter deficiências permanentes (FREUD, 1973a).

Além da expansão da teoria freudiana, Anna ainda se mostrou preocupada com aspectos à frente de seu tempo e pertinentes na atualidade, como:

(1) a ideia de que a observação direta pode ser um método para crescimento da teoria psicanalítica;
(2) a necessidade de se avaliar o desenvolvimento socioemocional (DSE);
(3) a utilização da psicanálise como um meio para prevenção de psicopatologias;
(4) a posição da psicanálise no meio científico; e
(5) o desenvolvimento perturbado ou interrompido.

A seguir detalharemos um pouco cada um desses pontos.

 

Contribuição da observação direta à psicanálise

Com base no trabalho de seu pai, Anna reconhece que descobertas importantes para a análise de crianças foram feitas a partir da análise de adultos por meio do método de reconstrução.

Porém, para a autora, essas descobertas não são suficientes para oferecer uma compreensão total da infância. Para tanto, acredita que a observação direta de crianças é a ferramenta de maior significância.

O problema do método reconstrutivo, complementa Anna (FREUD, 1971, p. 24, tradução nossa), é que

[...] há o perigo de que o analista fique demasiadamente apegado às observações do funcionamento regressivo que é induzido e promovido pela situação analítica, se esquecendo que essas manifestações regressivas incluem inevitavelmente aquisições mais tardias.

Uma das possibilidades apontadas por Anna Freud na observação direta é inferir os conteúdos inconscientes da criança a partir de seus comportamentos.

Nas palavras da autora,

[...] muitas das ações e preocupações da criança [...], quando observadas, podem ser traduzidas em suas contrapartes inconscientes das quais são derivadas (FREUD, 1965, p. 18, tradução nossa).

Esse tipo de pesquisa, que utiliza a observação direta, se mostra especialmente importante na atualidade, devido à barreira que a psicanálise enfrenta no meio científico (como falamos anteriormente).

 

A necessidade de avaliar o DSE e de estabelecer um diagnóstico

A ideia de que as psicopatologias têm sua raiz na infância é comum na psicanálise, e Anna Freud não escapava a tal fato. Além disso, a autora adotou uma posição referente à questão de quais crianças deveriam ser submetidas à psicanálise: se todas ou apenas aquelas que apresentassem transtornos.

Anna adota a segunda posição, a qual é contrária, por exemplo, àquela adotada por Melanie Klein – o que acaba sendo um dos pontos levantados nas discussões controversas. Mas, assumindo que somente as crianças com algum transtorno deveriam ser submetidas a tratamento, surgiu a questão do critério a ser seguido para definir se há ou não tal necessidade.

Assim, ela chega à ideia de que seria necessário lançar mão de instrumentos ou testes nessa investigação. Porém, as ferramentas para identificar os agentes patogênicos existentes até então eram consideradas pela autora demasiadamente parciais, já que, para ela, era necessário

[...] mais [...] do que essas escalas do desenvolvimento que são válidas somente para partes isoladas da personalidade da criança, não para sua totalidade (FREUD, 1965, p. 63, tradução nossa).

Em sua época, destaca a autora, havia alguns testes que avaliavam isoladamente a inteligência (ex.: Gesel), a personalidade (ex.: Rorschach) e alguns que se utilizavam da imaginação para investigar aspectos emocionais (ex.: testes projetivos).

Entretanto, esses testes

[...] eram apenas atalhos em investigações que não faziam nada mais do que fornecer dados simples e elucidar aspectos circunscritos da vida emocional da criança (FREUD, 1973a, p. 459, tradução nossa).

Tal fato não permitiria que o investigador obtivesse um quadro amplo do desenvolvimento infantil que compreendesse toda a complexidade de sua personalidade.

A fim de sanar esse problema, Anna constrói o perfil diagnóstico, um instrumento composto de diversos itens a respeito do histórico, quadro atual, desenvolvimento instintual e egoico, o avanço no desenvolvimento (conforme estabelecido nas linhas do desenvolvimento), pontos de fixação e regressão, conflitos presentes e suas possíveis origens, entre outros aspectos.

Por meio desse instrumento, Anna era capaz de avaliar a presença de agentes patogênicos junto a diversos dados ambientais e constitucionais e, assim, determinar sua importância para cada caso.

Anna também destaca alguns quesitos que devem ser considerados nessa avaliação:

Sofrimento: Alguns quadros de neurose infantil são fruto de sofrimento mais para os pais do que para a criança. Por exemplo, quando a criança se alimenta mal, faz xixi na cama ou faz birras, isso não traz sofrimento a ela necessariamente – mas certamente faz sofrer quem cuida dela. Dessa maneira, o sofrimento neurótico não deve ser tomado como critério para decidir se uma criança precisa ou não de tratamento (FREUD, 1973a).

Natureza do distúrbio: de causas internas ou externas. A esse respeito a autora enfatiza a diferença de uma criança na qual os conflitos podem ser extinguidos a partir de uma mudança na maneira como o ambiente cuida dela e de uma criança que necessita de análise. Como exemplo, Anna Freud (1981, p. 55) diz:

Há crianças que não comem porque têm brigas com suas mães. Esse é um conflito externo. Remova a criança de sua mãe [...] e o distúrbio desaparecerá. Mas há crianças que não comem porque acreditam que o que estão comendo está vivo e elas não querem assassiná-los.

Assim, a ideia é que, no segundo caso, a análise seria indicada.

Desvios nas capacidades normais: Tomando como ponto de partida o adulto, além dos fatores subjetivos, há dois fatores objetivos que devem ser considerados ao se avaliar a neurose: a capacidade para ter relações amorosas e sexuais e a capacidade para trabalhar. Já no caso da criança, o correlato dessas duas capacidades não é muito claro. Como a vida sexual da criança é reprimida, o correlato então poderia ser o interesse que a criança demonstra no mundo exterior e a gratificação que obtém através desse contato em oposição ao narcisismo e os modos de gratificação autoeróticos. Já sobre o trabalho, Anna Freud o relaciona com a capacidade para brincar. O brincar mais saudável é o brincar construtivo em oposição ao brincar repetitivo, monótono ou excessivamente focado no jogo imaginativo. Mais adiante em seu trabalho, Anna destaca também outro ponto que pode ser incluído nesse segundo quesito, que é a maneira como a criança se relaciona com os objetos de amor. Isso diz respeito a como se espera que a criança lide com a mãe, o pai e os pares em cada fase de seu desenvolvimento. Pode-se considerar aqui, por exemplo, as várias fases de apego que a criança apresenta em relação à mãe, sua capacidade para transferir seu interesse no relacionamento com a mãe para relacionamentos com outras pessoas, etc.

Alterações no desenvolvimento normal constituem o terceiro fator, e distúrbios nesse quesito, em especial, apontam para necessidade de intervenção imediata. Tais distúrbios poderiam ser uma parada na evolução do desenvolvimento, ou seja,

[...] se manter fixado a algum estágio do desenvolvimento antes que o processo de maturação tenha sido concluído (FREUD, 1973a, p. 17, tradução nossa).

Devido às diferenças destacadas nos quesitos anteriores, é impraticável a aplicação direta dos mesmos critérios que se utiliza na avaliação da neurose no adulto à avaliação da criança. Então, a autora sugere que a avaliação do grau de neurose de uma criança se dê não pelo dano causado às suas atividades ou atitudes, mas de acordo com o grau que a patologia impede que a criança se desenvolva.

Um dos aspectos que pode ter seu desenvolvimento impedido é o curso natural da libido. Entretanto, deve-se observar se um entrave nesse aspecto é na verdade temporário e passível de recuperação espontânea. A neurose infantil pode ser considerada transitória desde que o desenvolvimento da libido não tenha sua progressão alterada ou restringida pelo quadro.

Nesse caso, a neurose desaparecerá na medida em que o fluxo do desenvolvimento libidinal seja forte o suficiente para desfazer regressões ou fixações. Com base nisso, Anna Freud se coloca contra a ideia de que o tratamento deva ser aplicado de maneira profilática para remover os pontos de fixação, mas apenas quando há pouca ou nenhuma esperança de cura espontânea (FREUD, 1973a).

 

Psicanálise e prevenção

Saber o que se espera em cada momento do desenvolvimento infantil e quais são as necessidades da criança tem o papel de guiar o ambiente de maneira que ele ofereça e permita que a criança tenha essas necessidades e modos de funcionar suportados e permitidos. Os primeiros exemplos disso na psicanálise dizem respeito a diversos distúrbios, por exemplo:

• quando se formulou as ideias de que a origem da histeria está nas proibições da infância, a psicanálise contribuiu para a adoção de técnicas de educação infantil mais permissivas quanto às atitudes de sexualidade pré-genital infantil;

• quando a agressividade recebeu status de um instinto básico, deu-se mais espaço e tolerância para as atitudes violentas e hostis da criança;

• quando se reconheceu que na fase anal residiam problemas que poderiam levar a patologias, o treino do banheiro passou a ser conduzido de maneira menos apressada e mais compreensiva;

• desordens alimentares desapareceram depois que o manejo de crianças foi conduzido de acordo com as necessidades orais;

• dificuldades do sono foram minimizadas depois que atividades autoeróticas como masturbação e chupar o dedo, foram menos reprimidas (FREUD, 1965).

Apesar de todos os avanços que a psicanálise trouxe na técnica de cuidados com crianças, isso não foi suficiente para colocá-la no hall de técnicas preventivas.

Segundo Anna Freud (1965, p. 8, tradução nossa),

[...] é verdade que as crianças que cresceram sob sua [da psicanálise] influência foram diferentes em alguns aspectos das gerações anteriores; mas elas não eram mais livres de ansiedades ou conflitos, e assim não eram também menos propensas a neurose ou outros transtornos mentais.

Ainda assim, seria possível avançar nesse campo.

Segundo Anna,

[...] a predição ou a prevenção de problemas leva inevitavelmente ao estudo do processo mental normal, em oposição ao estudo do processo mental patológico (FREUD, 1965, p. 54, tradução nossa).

O analista poderia avaliar o desenvolvimento e decidir se há indicação para tratamento, através do estudo da normalidade no desenvolvimento infantil,

[...] com a sequência das fases libidinais e uma lista das funções do ego como pano de fundo de sua mente (FREUD, 1965, p. 55, tradução nossa).

Essa avaliação do desenvolvimento é uma atitude profilática na medida em que indica processos patológicos mesmo antes de se manifestarem. Essa postura tem sido adotada em diversos estudos na atualidade que têm como base a psicanálise – como o estudo que levou à formulação do instrumento Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil - IRDI (KUPFER et al., 2009) e outro no qual se utilizou técnicas psicanalíticas para intervir precocemente em bebês que apresentavam algum sinal compatível com autismo (CAMPANÁRIO et al., 2018).

 

A psicanálise no meio científico

Anna Freud demonstra sua preocupação com a relação da psicanálise com a psicologia acadêmica em um texto derivado de sua fala no simpósio de psicologia genética realizado na Clark University, em 1950. Ela inicia sua fala abordando os aspectos históricos dessa relação, como ela se desenvolveu e como se encontrava em sua época.

Naquele período, mais do que na própria Europa, havia, para surpresa de Freud, diz Anna, uma presença massiva da psicanálise nos EUA. Apesar disso, a autora ressalta que, já desde meados de 1909, a psicanálise se via isolada das outras ciências, sendo julgada como não científica, fantástica e indigna de investimento por parte de acadêmicos "sérios" (FREUD, 1973a, p. 110, tradução nossa).

Entretanto, isso não prejudicou o desenvolvimento da psicanálise, pois os analistas continuaram suas pesquisas e seu trabalho sem se preocuparem em convencer alguém de fora de que aquilo seria válido. Isso também fez com que, ao trabalhar como um grupo totalmente fechado, desenvolvessem uma linguagem científica própria (FREUD, 1973a, p. 110, tradução nossa).

Esse cenário começou a mudar nos anos seguintes, com a abertura da psiquiatria para a aplicação dos conceitos psicanalíticos a pacientes graves e, mais adiante, com a aplicação da psicanálise na educação de crianças. Depois disso, a psicanálise se ligou a diversas outras áreas como a sociologia, antropologia, criminologia, psicologia acadêmica, etc. Em algumas dessas áreas, como a medicina, o ganho foi apenas para essa área, porém em outras, como a sociologia e antropologia, a psicanálise foi expandida, por exemplo, com as descobertas a respeito do comportamento de grupo.

Todo esse processo de ligação com outras ciências fez com que a psicanálise emergisse gradualmente de seu isolamento, o que a levou a desenvolver também uma linguagem que pudesse ser compreendida pela sociedade científica no geral. A isso se seguiu um período em que os primeiros trabalhos de correlação entre a psicanálise e outras áreas se multiplicassem. Os objetivos desses trabalhos incluíam, entre outros, "uma mera revisão de publicações ao interca^mbio e mistura de ideias" (FREUD, 1973a, p. 111, tradução nossa).

A possibilidade de acessar o inconsciente, como revelado por Freud, também se desdobrou nessa interface entre a psicanálise e outras psicologias, dando origem aos testes projetivos, dos quais os representantes mais notáveis são o Teste de Rorschach e o Teste de Apercepção Temática (TAT).

Todo esse movimento em direção ao diálogo com outras ciências e, especialmente, a ideia de que o inconsciente poderia ser acessado por outros meios além dos psicanalíticos, deu abertura para pesquisas em busca de confirmação da teoria psicanalítica. Apesar disso, Anna ressalta que há limitações para a aplicação da psicanálise à psicologia acadêmica. Entre essas está o fato de que a investigação do inconsciente em um ambiente controlado não reproduz ou não considera todos os mecanismos que podem estar atuantes em determinado fenômeno.

Diz a autora:

O desapontamento, raiva, fúria, desespero ou indiferença que uma criança pode mostrar frente a um brinquedo retirado não realmente nos permite predizer como essa mesma criança reagirá quando defrontada com a perda de um objeto de amor importante. Como situações complexas da vida não podem ser reproduzidas no laboratório, parece, até então, não haver possibilidade para o acadêmico se aproximar desses fenômenos (FREUD, 1973a, p. 120, tradução nossa).

Por fim, apesar desses avanços na direção do diálogo entre as diversas psicologias, Anna ressalta ainda o problema da linguagem.

Segundo ela,

[...] para retraduzir uma ciência nos termos da outra, a terminologia acadêmica se mantém vaga e difícil de digerir para o analista (FREUD, 1973a, p. 122, tradução nossa).

A autora levanta esse problema colocando em perspectiva opiniões de vários autores e exemplos de conceitos freudianos que foram, ou podem, ser usados erroneamente em pesquisas experimentais. Para ela, então, um dos cuidados a se tomar nesse sentido é não tomar termos psicanalíticos como sinônimos ou com o mesmo significado que em outras áreas da ciência. Para saber mais sobre a questão da transposição da barreira da linguagem na comunicação entre sistemas teóricos díspares, veja-se FULGÊNCIO E BARRETA, (2017).

Essa discussão prossegue com Anna Freud se baseando nas ideias de Hartmann de que a psicanálise em si mesma é constituída por um aspecto dinâmico e outro genético. Essa distinção seria importante nesse cenário porque determinado aspecto seria mais importante dependendo do contexto ao qual a psicanálise seria aplicada. De acordo com essa distinção, o aspecto dinâmico é o que se ocupa do comportamento humano em determinadas situações, já o genético se ocupa das origens desse comportamento (FREUD, 1973a).

Como dito, dependendo do campo que se apropria das ideias psicanalíticas, um desses aspectos recebe mais foco do que o outro. Por exemplo, na psiquiatria, ao menos até o surgimento do DSM III (edição na qual houve uma "expurga" psicanalítica do DSM, retirando conceitos que diziam respeito a essa teoria ), os conceitos dinâmicos faziam parte da investigação médica. Enquanto isso, em outras áreas como a educação e análise infantil, a teoria sobre as origens recebia mais destaque (FREUD, 1973a).

Em nossa pesquisa, a questão da origem é o que mais nos interessa e, nesse sentido, Anna Freud (FREUD, 1973a, p. 131, tradução nossa) aponta que a investigação genética psicanalítica contribui no estabelecimento de três aspectos do desenvolvimento:

[1] a sequência de estágios do desenvolvimento instintual, libidinal e agressivo;
[2] a sequência de fases no desenvolvimento do ego e superego; e, ao menos de forma aproximada,
[3] uma terceira sequência das sucessivas interações entre essas duas linhas".

 

O desenvolvimento perturbado ou interrompido

Mesmo sendo o desenvolvimento saudável o foco de Anna Freud, também deu sua contribuição no campo das psicopatologias, bem como das discrepâncias entre suas observações e a teoria vigente. Segundo a autora, espera-se que o desenvolvimento ocorra de maneira concomitante entre as diversas linhas, porém é possível que haja regressão de algum aspecto.

Por exemplo,

[...] o treino do banheiro não é adquirido de uma vez, mas leva muitas idas e vindas em uma série interminável de sucessos, relapsos, acidentes, etc. (FREUD, 1965, p. 99, tradução nossa).

Além disso, as regressões podem ocorrer devido a fatores estressantes como o cansaço ao final de um dia na escola. Nesse caso, crianças que, por exemplo, apresentaram uma forma de brincar construtiva, podem, no final do dia, voltar a formas de brincar dominadas pelos impulsos, com bagunça e agressividade. Essas observações de Anna são importantes porque relativizam os acontecimentos no desenvolvimento infantil. Isso é um aspecto essencial, por exemplo, para avaliar a necessidade ou não de intervenção terapêutica.

Quanto às discrepâncias com a teoria vigente, Anna observou nas crianças institucionalizadas alguns exemplos de variação no momento esperado para aparecimento de determinados fenômenos – como a inveja do pênis. A explicação da autora seria que essas crianças institucionalizadas estão expostas mais precocemente à evidência da diferença entre os sexos, o que anteciparia o aparecimento de fenômenos ligados a essa constatação.

As diferenças no desenvolvimento de crianças institucionalizadas, especificamente aquelas com as quais Anna teve contato na clínica Hampstead, foram elencadas pela autora de maneira sistemática dentro de quatro aspectos:

• controle muscular;
• desenvolvimento da fala;
• treino do banheiro; e
• alimentação.

As diferenças encontradas foram quantitativas. O controle muscular e a alimentação se desenvolveram mais rapidamente na instituição, enquanto a fala e o treino do banheiro ficaram atrasados quando a mãe não está presente. Mesmo assim, todas as crianças, independentemente do contexto observado, vão alcançar excelência em todos esses aspectos (FREUD, 1973b).

Esse cenário, entretanto, não se mantém no que diz respeito ao desenvolvimento emocional. Obviamente todas as crianças, independentemente do contexto, têm as mesmas necessidades emocionais. Assim, segundo a autora, uma importante necessidade instintual que diz respeito ao apego à figura materna "fica mais ou menos não satisfeita" (FREUD, 1973b, p. 560, tradução nossa) no contexto institucional.

A autora observou que o desenvolvimento no primeiro semestre de vida das crianças institucionalizadas se mostra, na maioria das vezes, melhor do que as que vivem com a família. Segundo Anna, isso acontece, porque na instituição as crianças tinham uma gama nutricional maior, com mudanças na dieta sempre que necessário e mais higiene tanto nos cuidados quanto na preparação dos alimentos. Ainda assim, a autora destaca que a alimentação pelo seio materno é melhor do que por mamadeira.

esse respeito, ela diz que

[...] os melhores resultados são encontrados em bebês que são alimentados por suas próprias mães na clínica (FREUD, 1973b, p. 545, tradução nossa).

Entretanto, esse cenário muda a partir do segundo semestre. O aspecto gritante que diferencia os bebês da instituição daqueles criados em casa é a vivacidade e a melhor resposta social que apresentam. Além disso, o bebê criado em casa é mais ativo na exploração do ambiente, por exemplo, no interesse em alcançar objetos e no brincar ativo. Também demonstra maior interesse em observar e seguir os movimentos das pessoas ao redor e é mais responsivo ao entrar e sair de pessoas no ambiente.

A hipótese de Anna Freud sobre o interesse do bebê nas pessoas que chegam e saem, é que isso se deve ao fato de que a reduzida quantidade de pessoas em seu círculo de convívio as torna conhecidas para ele e, assim, dizem respeito a ele de algum modo. De maneira oposta, na instituição, o bebê não é capaz de reconhecer as várias pessoas devido à sua limitada capacidade em internalizar e diferenciar tantas personalidades diferentes (FREUD, 1973b).

Além disso, Anna Freud exemplifica o desenvolvimento socioemocional por meio do fenômeno da imitação que, segundo ela, deveria iniciar por volta do oitavo mês de vida, mas que sofre atraso no bebê institucionalizado. De acordo com Anna, para que esse fenômeno ocorra, é necessário que o bebê tenha contato frequente e próximo com um adulto e que tal contato não seja "[...] dividido entre vários adultos como é o caso da instituição" (FREUD, 1973b, p. 546, tradução nossa).

Para Anna Freud, essa defasagem a partir do segundo semestre de vida se dá porque nesse período as necessidades emocionais do bebê se tornam tão importantes quanto suas necessidades corporais. Isto é, até o sexto mês, as necessidades emocionais poderiam ser supridas nas interações durante a alimentação, banho, etc., mas após esse período cresce a necessidade de interações mais complexas que vão além desses momentos de cuidado corporal.

Por outro lado, o contato com pares é estimulado mais cedo na instituição. No contexto residencial, esse contato só se dá após a relação mãe-criança estar bem estabelecida. A relação com irmãos no contexto residencial só se daria na medida em que estes se apresentassem como ajudantes ou parceiros para brincadeiras, e os afetos seriam sempre mediados pela relação da criança com os pais. Nesse sentido, os afetos direcionados aos irmãos seriam mais caracterizados por ciúme e ódio gerados pela rivalidade em relação à conquista do amor dos pais (FREUD, 1973b)

 

Conclusão

Apresentamos de maneira sintética alguns dos pontos mais importantes para o desenvolvimento de nossa pesquisa a respeito do desenvolvimento socioemocional infantil na psicanálise, com foco na obra de Anna Freud.

Essa autora, como apresentado, contribuiu com ideias que vão muito além do ego e seus mecanismos de defesa. Tais contribuições merecem ser alvo de escrutínio e renovação. Renovação, por exemplo, por meio de sua aplicação a pesquisas empíricas, nas quais possamos verificar sua utilidade nos dias atuais – momento no qual temos uma infinidade de outras abordagens, instrumentos e perspectivas para compreender o desenvolvimento infantil.

Retomar autores clássicos, e por vezes negligenciados, é também um instrumento para análise crítica do material que está disponível na atualidade e que embasa as diferentes metodologias de pesquisa. Assim, ao considerar o que Anna Freud observou no comportamento infantil e agregou à sua teoria do desenvolvimento, podemos, por exemplo, questionar se os métodos atuais também estão ou não considerando tais comportamentos e vice-versa.

Apesar da amplitude das contribuições de Anna, não é expressiva, ao menos em território nacional, a visibilidade de suas ideias (exceto no que diz respeito aos mecanismos de defesa, como já dito). Espera-se que o presente artigo seja um estímulo para outros pesquisadores conheçam e reconheçam o legado da autora.

 

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Endereço para correspondência
Marcos Roberto Fontoni
E-mail: fontonimr@gmail.com

Leopoldo Fulgencio
E-mail: lfulgencio@usp.br

Recebido em: 20/05/2020
Aprovado em: 10/06/2020

 

 

SOBRE OS AUTORES

Marcos Roberto Fontoni
Psicólogo, Pós graduado em Neuropsicologia no Contexto Hospitalar pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP).
Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela USP, com bolsa FAPESP.
Fellow do Research Training Program da International Psychoanalytic Association. Especialização em andamento em Formação em Psicanálise Winnicottiana, Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana, SBPW, Brasil.
Doutorando do programa de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

Leopoldo Fulgencio
Graduado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP).
Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), tendo feito estágio de doutorado (bolsa sandwich, com orientação de Pierre Fédida) no Laboratoire de Psychopathologie Fondamentale et Psychanalyse, Université de Paris 7 Denis Diderot (de 1995-1997).
Pós-Doutorado em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Professor Associado (Livre Docente, 2018) no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), no Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade.
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Educação e do Desenvolvimento do IPUSP.
Foi professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (de 2007 a 2014).
Foi Secretário Executivo (1999-2002), Editor Adjunto (2003-2005) e Editor Científico (2006-2009) da Revista de Filosofia e Psicanálise Natureza Humana.
Foi coordenador do Grupo de Trabalho Filosofia e Psicanálise da ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia) na gestão de 2004 a 2006.
Foi coordenador do Grupo de trabalho "Psicanálise, Subjetivação e Cultura Contemporânea" da ANPEPP (Associação nacional de Pós-Graduação em Psicologia) de 2014 a 2017. (IJP, 2020).
Recebeu o Prêmio Jabuti (2015), na categoria Psicanálise, Psicologia e Comportamento, com o segundo lugar pelo livro A Fabricação do Humano (2014).

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