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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.53 Belo Horizonte jan./jun. 2020

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA, TEORIA E CULTURA

 

Melancolia

 

Melancholy

 

 

Litza Barroso Pedreira Lapa

I Escola Lacaniana da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo discorre sobre o tema da melancolia, à luz dos ensinamentos de Freud e Lacan, principalmente, tendo como pano de fundo o filme do mesmo título ( Melancholia ), de Lars Von Trier, lançado em 2011. Tece considerações sobre as diferenças entre a depressão, (forma mais atenuada da melancolia, posicionada no campo da neurose), o luto (processo lento, doloroso e gradual, com sentimentos de profunda tristeza e afastamento das atividades normais, que não se relacionam com um objeto perdido, gerando incapacidade de substituição por novo objeto, por um certo tempo) e a melancolia (tristeza sem causa, que reside na impossibilidade permanente de fazer o luto do objeto perdido e é relatada por muitos como expressão de estrutura psicótica ou borderline – de fronteira entre a neurose e a psicose).

Palavras-chave: Depressão, Luto, Melancolia.


ABSTRACT

This article discusses about the subject of Melancholy, in the light of the teachings of Freud and Lacan, mainly, having as a backdrop the film of the same title (Melancholia), by Lars Von Trier, released in 2011, making considerations about the differences between depression, more accentuated form of melancholy, positioned in the field of neurosis; grief, slow, painful and gradual process, with feelings of deep sadness and withdrawal from normal activities, which are not related to a lost object, generating inability to replace with a new object, for a certain time; and melancholy, causeless sadness, which resides in the permanent impossibility of mourning the lost object being reported by many as an expression of psychotic or borderline structure – of the border between neurosis and psychosis.

Keywords: Depression, Grief, Melancholy.


 

Penetro no vazio,
confundo-me com ele
Latejo solidão
jazendo no planeta

Abandono o desespero,
gero desesperança
inerte nos sentidos
sou simulacro de ser

Em meio ao bando de corpos
animados, mas sem vida
decompositores uns dos outros
putrefação coletiva

Não há mais lágrima que seque
não há mais ente que exista
Que mundo?
Que lugar?
Que colo?
Ficaram do nada, só os restos...
1

 

A palavra "melancolia" vem do grego melagkholía: mélas [negro] e kholé [bílis], ou seja, 'condição de ter bile negra'.2 No século V a.C, Hipócrates classificou a melancolia como uma doença e criou a teoria dos quatro humores corporais: sangue, fleugma ou pituíta, bílis amarela ou bílis negra. O equilíbrio ou o desequilíbrio desses humores é responsável pela saúde [eucrasia] ou pela enfermidade e pela dor [discrasia] de um indivíduo. Pensava-se que a influência do planeta Saturno levava o baço a secretar mais bílis negra, o que alterava o humor do sujeito levando-o ao estado de melancolia. Já no período Renascentista e no Romantismo, a melancolia era considerada uma doença bem-vinda, uma experiência que enriquecia a alma (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 505-507)

Em seu artigo Luto e melancolia, Freud ([1917] 1996) salienta a semelhança entre os dois processos, diferenciando a melancolia do luto pela falta de um motivo aparente para o seu desencadeamento e pela inibição e empobrecimento do próprio ego, com a eclosão de um delírio de inferioridade, insônia e recusa a se alimentar, superando as características da pulsão de vida, o que levaria o melancólico a se descrever como mesquinho, desonesto, egoísta, dependente, alguém cujo único objetivo seria esconder suas fraquezas. Enfim, parece ser alguém que tenha chegado bem perto da compreensão de si mesmo, por isso é interessante ou necessário adoecer para se lograr tal entendimento.

Faltam ao melancólico os sentimentos de vergonha que caracterizariam sua condição diante dos outros, por isso é evidente uma estranha e aparentemente paradoxal comunicabilidade, que denota um gozo de autodesmascaramento.

A autotortura melancólica é vivida como agradável e representa, como nos fenômenos ocorridos na neurose obsessiva, uma satisfação das tendências sádicas relacionadas a um objeto que retorna ao próprio eu do indivíduo, em uma ânsia de morte, bem explicada pelas leis da física de tendência à inércia.

Se no luto é denotada uma perda em relação ao objeto, na melancolia tudo aponta para uma perda em relação ao eu. Uma parte desse eu se coloca contra a outra, tornando-a alvo de julgamento e críticas e a toma como objeto. Vemos aí claramente a atuação do que chamamos de consciência, que traz consigo a sua censura e o teste de realidade.

Na melancolia, a preocupação é fundamentalmente moral; no segundo plano ficam as questões de estética, doença, fraqueza, bem como as de inferioridade social, salvo o temor de empobrecimento, provavelmente originário do erotismo anal, segundo Freud ([1917] 1996), arrancado do seu contexto e alterado regressivamente.

Entretanto, verifica-se que as autoacusações de um melancólico parecem se aplicar não à sua própria pessoa, mas a alguém a quem ele ama. amou ou deveria amar, o que aponta para um deslocamento desse objeto para o seu próprio eu, ainda que algumas autorrecriminações sejam de fato autênticas, certamente para provocar os necessários efeitos de despistamento da verdadeira situação.

Percebe-se, portanto, uma escolha objetal, uma ligação da libido à pessoa objeto de amor e depois uma desconsideração ou desapontamento em relação a essa pessoa. Em vez do que seria comum, o deslocamento para outro, ocorre uma retirada para o eu, servindo para estabelecer uma ligação entre o eu e o objeto. Com a queda do objeto sobre o ego, este passa a ser julgado como se fosse o objeto abandonado.

Otto Rank citado por Freud ([1917] 1996) observou que a escolha objetal, nesse caso, é efetuada numa base narcisista, de modo que a catexia, ao se defrontar com obstáculos, retrocede ao narcisismo. A identificação narcisista com o objeto torna-se um substituto da catexia erótica e, assim, não é preciso renunciar à relação amorosa, apesar do conflito com a pessoa amada.

Tal substituição é comumente verificada nas afecções narcisistas e representa a regressão de um tipo de escolha objetal para o narcisismo original, já que a identificação é uma etapa preliminar dessa escolha e a primeira forma, expressa de uma maneira ambivalente, de escolha de objeto pelo eu que, em sua fase oral ou canibalista, deseja fazer isso através da devoração, o que Abraham, também citado por Freud ([1917] 1996), associou à anorexia melancólica.

O que se coloca é que a apresentação da coisa inconsciente do objeto é abandonada pela libido e é composta de inumeráveis impressões isoladas ou traços inconscientes delas. Esse processo nos remete diretamente à cadeia significante, como propôs Lacan, com base na linguística.

As afirmações freudianas caminham no sentido de que esse processo é muito lento e gradual. Se começa ao mesmo tempo em vários pontos ou se segue alguma espécie de sequência, ele não pôde esclarecer. Nas análises, primeiro uma lembrança, depois outra será ativada, e as queixas, que são sempre as mesmas, apesar de parecerem monótonas, procedem cada vez de uma fonte diversa. Se o objeto não possui mais importância para o eu, reforçada por mil elos, sua perda não produzirá nem luto, nem melancolia.

A separação gradual da libido, que ocorre nos dois processos, é provocada pela mesma situação econômica, servindo ao mesmo objetivo em ambos. E a localização desses conflitos é atribuída ao Inconsciente, região dos traços da memória de coisas e de palavras. No luto nada impede que esses processos sigam o caminho normal, através do pré-consciente até a consciência, esse caminho que está bloqueado na melancolia.

Nas neuroses de transferência, especialmente na histeria, são comuns as identificações ao objeto na formação de sintomas. Nessa a catexia objetal, em vez de ser abandonada, persiste e se manifesta.

Até aqui, apenas sintetizamos as proposições de Freud.

Dentro da concepção lacaniana, na melancolia ocorre um aniquilamento do desejo, que é a chama, a essência do sujeito. O processo melancólico aponta para uma exacerbação narcísica, com a queda e a falta do objeto causa do desejo. Em tese, seria a falta do objeto que produz o desejo, cujo substituto passamos a buscar incansavelmente por toda a vida, ainda que jamais o encontremos.

Mas se vivemos esse engodo, o que ocorreria de diferente no luto e na melancolia, já que se trata também da perda do objeto?

No caso do luto, o sujeito irá tomar o próprio objeto perdido como substituto do objeto do desejo e, assim, não haverá mais desejo nem falta.

Já na melancolia, não há uma perda elaborada como falta, mas uma anulação da falta existente que abrigava o desejo. O problema reside justamente na forma como o sujeito se relaciona com o objeto.

Isso nos leva diretamente à concepção freudiana de que o objeto perdido na melancolia é o próprio eu, cuja função, para Lacan, é antes de tudo imaginária, fazendo parte e às vezes se confundindo com o próprio sintoma e funcionando como uma ruptura do sujeito com sua própria imagem criada a partir de outros objetos desejados.

A respeito da discussão sobre a melancolia ser uma estrutura à parte ou estar inserida na psicose ou na neurose, Lambotte (2000) afirma que a melancolia difere da psicose, pois está inserida no simbólico. O "nada" é seu significante-mestre, promove a manutenção do discurso, mas ao mesmo tempo vai se juntar ao objeto pequeno a, já que há um corte com o desejo.

A identificação seria com o nada, que significa algo, a marca do outro, embora para muitos a melancolia se situe ao lado das psicoses, das paranoias e da esquizofrenia, no âmbito da não simbolização. Considerada desse lado, a melancolia tem que ser tratada no campo dos fenômenos da linguagem e do gozo.

Entretanto, para outros, a diferença do discurso melancólico para o discurso depressivo seria justamente o desaparecimento do eu na fala, o que não ocorre no primeiro caso. Além disso, a fala na melancolia segue uma lógica perfeita e bem articulada, situando-se como neurose narcísica e não psicose. A depressão se mantém no campo das neuroses de transferência.

Para Freud, haveria uma identificação com o pai morto, mas não com o totem que o substitui, o que equivale a dizer que não se trata de identificação simbólica ou incorporação do Nome-do-Pai e sim a identificação ao vazio deixado por ele, o que poderia ser visto como uma foraclusão daquele nome, equivalente à psicose.

Não havendo a intervenção de um terceiro, que funciona como interditor à mãe, ocorreria a continuidade com esse Outro, não simbolização dessa mãe e permanência como objeto desta.

A melancolia surgiria, então, pela perda de um significante que estaria cumprindo uma suplência dessa foraclusão.

O fato é que na cena contemporânea eclodem mais e mais quadros de depressão e melancolia, assim como a histeria predominou no final do século XIX.

A evidência aponta para a dominante crise na subjetividade. No império do consumo, não há lugar para o homem desejante, que foi transformado em máquina de produção, de dinheiro e poder, este último medido pela capacidade de compra. A equação político-social-econômica é reduzida simplesmente ao elemento "dinheiro". O vazio deve ser preenchido a todo custo e como o gasto desenfreado, além de sempre insuficiente, é muitas vezes impossível, lança-se mão dos psicofármacos, dos florais, dos homeopáticos, das religiões e terapias ilusórias e encobridoras.

Dentro da concepção filosófica heidegeliana, o sujeito, definido como ser ali (dasein) no mundo, ao se defrontar com o nada, evocado pela morte, vivenciará um desvanecimento (afânise), produzido pela angústia, antes de se ver colocado em uma encruzilhada alienante, como resultado de uma escolha impossível e se articular como desejo e não como objeto, desde que possa se converter em significante e responder ao chamado que realiza o Outro aos significantes seguintes. A impossibilidade de se colocar como desejante é a precipitadora de uma melancolia ou de uma psicose.

Durante o transcurso da vida, estamos sujeitos a acontecimentos inesperados, entre o estádio do espelho, o final de análise e a proximidade da morte, como doenças, acidentes e a morte inesperada de entes queridos, por exemplo, o anúncio de um final do mundo, o que ocorreu de fato em 2011, quando uma suposta profecia de Nostradamus anunciava que o mundo acabaria naquele ano.

Que faríamos, se cientistas anunciassem que a Terra irá colidir com um planeta em data próxima e explodir, pondo fim a qualquer possibilidade de vida?

Essa é a situação que o cineasta Lars Von Trier nos coloca em seu filme Melancolia (também de 2011), que passamos a comentar.

Ali vemos duas irmãs, Claire e Justine, a primeira dominada pela pulsão de vida, e a segunda, pela pulsão de morte. Claire é extremamente realizadora, enquanto Justine vive imersa em uma aparente melancolia, especialmente após a cerimônia do seu casamento, que termina no mesmo dia em que começou. Ela entra em crise logo após a celebração, ainda na festa.

No dia seguinte, tomamos conhecimento de que um certo planeta, chamado Melancolia, talvez entre em rota de colisão com a Terra. O mundo está entrando em pânico diante dessa possibilidade.

Mas não nascemos destinados a morrer ou, como diz o jargão popular, ao nascer, a única certeza que temos não é que vamos morrer? Ou seja, desde que nascemos, o planeta Morte, ou Melancolia, se quiserem, não paira sobre nossa cabeça? Atualmente, não temos outro planeta, o Covid-19, também pairando no ar, como alusão metafórica?

A única diferença, em relação à certeza da morte, é que não sabemos quando isso ocorrerá, e esse não saber nos enceta a possibilidade de sonhar, desejar e viver, antes que a morte se apresente.

O anúncio do final do mundo vai produzir diferentes efeitos em cada uma das irmãs, fazendo-as quase trocar de posição. Claire, a antes realizadora, que administrava tudo na família, inclusive a festa do casamento, se vê tomada por uma angústia insuportável, que a impede de aguentar a espera do possível fim. Ela tenta antecipar sua morte pelo suicídio, mas seu marido, um empresário que vive para ganhar dinheiro e que é também completamente tomado por essa angústia, consuma antes a própria morte, deixando Claire sem nenhum dos comprimidos que comprou para esse fim.

Já Justine parece que consegue, de algum modo, sair da condição de objeto, talvez pela significação possível que lhe traz a aproximação do tal planeta, ficando serena e estabilizada em suas crises, contemplando a natureza, tomando banho de sol ou da luz que o planeta melancolia irradia.

Consegue, inclusive, através da fantasia, constituir-se como Outro para o filho pequeno de Claire, que também começa a ficar com medo, e o convida a construir uma caverna mágica (feita com galhos) e entra com os dois nesse aparato fictício, para se protegerem e juntos enfrentarem o tempo que resta.

Justamente o que fazemos ao longo de nossa vida, ainda que sempre buscando o que nos falta, não cessamos de desejar e buscar outras saídas, apesar de sabê-las inatingíveis.

Como sustentei em um trabalho anterior, igualmente inédito, também sobre um filme de Von Trier, é a morte, em sua falta de significação, que nos permite o exercício da vida, pelo manejo dos significantes, buscando a resolução de uma equação interminável e irresolvível. É a solução impossível que anula a possibilidade de morte, enquanto viventes somos, e a vence, mesmo depois que ela chega, com os traços, as marcas, a produção que deixamos.

Como desfecho, lanço mão dos versos de Fernando Pessoa, em seu heterônimo Álvaro de Campos, no início do poema A tabacaria (15/01/1928):

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
PESSOA, [1944] 1993, p. 252.

 

Referências

PESSOA, F. Poesias de Álvaro de Campos (1944). São Paulo: Ática, 1993.         [ Links ]

FREUD, S. Luto e melancolia (1917). In: ______. A história do movimento psicanalítico: artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção geral da tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 249-263. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, 14).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LAMBOTE, M. C. O tempo anunciador. In: ______. Estética da melancolia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 103-110.         [ Links ]

ROUDINESCO, E; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Tradução: Vera Ribeiro e Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: litzalapa@yahoo.com.br

Recebido em: 27/05/2020
Aprovado em: 15/06/2020

 

 

SOBRE A AUTORA

Litza Barroso Pedreira Lapa
Psicanalista.
Bacharel em psicologia.
Psicóloga clínica graduada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Membro da Escola Lacaniana da Bahia.

 

 

1 Tomei este poema melancólico, de minha autoria, como porta de entrada para o tema do presente trabalho.
2 Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 3.0.

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