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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.53 Belo Horizonte Jan./June 2020

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA, TEORIA E CULTURA

 

O inconsciente e tecnologia digital: o real e o tempo – aproximações

 

The unconscious and digital technology: the real and time – approximations

 

 

Luciene dos Santos

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O inconsciente, o real e as tecnologias digitais. Tecnologias digitais, articulação com as descobertas do campo científico da física, formas de investimento no real. Como Freud tratou a relação do inconsciente com a questão do tempo e ao conceituar e explicar o funcionamento do inconsciente, Freud antecipou questões epistêmicas que reapareceram nos desdobramentos posteriores da física quântica. A apropriação da produção do real e de uma concepção de temporalidade que aproximam as tecnologias digitais à concepção de temporalidade no funcionamento do inconsciente. Os gadgets na apropriação da produção do real como forma de animar e engajar a vida resvala para a proposta de regulação e conhecimento totalizante sobre os indivíduos e o mundo. Processos de digitalização e automação das práticas e atividades humanas cotidianas produzindo alteração psíquica na apreensão perceptual das categorias espaciais e temporais e, consequentemente, das relações entre os homens e entre estes e sua ambiência.

Palavras-chave: Real, Inconsciente, Tecnologias digitais, Física quântica.


ABSTRACT

The Unconscious, the Real and digital Technologies. Digital technologies articulation with the discoveries of the scientific field of Physics, forms of investment in the Real. How Freud treated the relation of the unconscious with the question of time and when conceptualizing and explaining the functioning of the unconscious Freud anticipated epistemic questions that reappeared in the later developments of quantum physics. The appropriation of the production of the real and of a conception of temporality that bring digital technologies closer to the conception of the temporality in the functioning of the unconscious. The gadgets in the appropriation of the production of the real as a way to animate and engage life, slide into the proposal of regulation and totalizing knowledge about individuals and the world. Digitization processes and automation of daily human practices and activities producing psychic alteration in the perpetual apprehension of spatial and temporal categories and consequently of the relationship between men and between them and their environment.

Keywords: Real, Unconscious, Digital Technology, Quantum Physics.


 

O real

Na descrição de Lacan o real não "[....] é o mundo, não há nenhuma esperança de alcançar o real pela representação" (LACAN, [1975] 1980, p. 21). E prossegue com uma observação, que no mínimo desperta certa curiosidade:

Não vou argumentar aqui sobre a teoria dos quanta, nem da onda, nem do corpúsculo. Mas ponha-se a par por si mesmo, basta abrir alguns livrinhos de Ciência (LACAN, [1975] 1980, p. 21).

E Lacan acrescenta que o real também não é universal.

Para definir o real, Lacan propõe: "o real é o que retorna ao mesmo lugar". Definição que ele já havia anunciado no Seminário 11 com um complemento.

[...] a esse lugar onde o sujeito, na medida em que ele cogita, onde a res cogitans não o encontra (LACAN, [1964] 1988, p. 52).

Para resolver a questão de lugar que poderia implicar uma questão de localidade e espacialidade, Lacan sugere a topologia matemática, a forma como ele procura trabalhar as questões do inconsciente. Assim, Lacan nos indica que, do ponto de vista epistêmico, é solidário à concepção da teoria das ondas em relação à concepção espaço-tempo. A teoria das ondas não atribui como campo, propriedades a pontos de espaço-tempo. Ela está em um espaço matemático abstrato de dimensões infinitas designado espaço de configurações.

Ao falar em representação, Lacan está se referindo aos modelos de abstração com que a filosofia clássica e a ciência conduziram suas investigações e problematizações sobre a origem e o funcionamento do Universo, portanto modelos de pensamento. Dessa forma, localiza a discussão no contexto epistêmico em relação à concepção de mundo de que esses modelos teóricos encapam à compreensão metafisica decorrente dessa visão e a ideia de totalidade que irá encobrir tal leitura e dará a dimensão da possibilidade do conhecimento. Tal postura levará alguns filósofos e cientistas a buscar pelo ideal de universalidade, de localidade e realismo a partir da referência à objetividade da natureza.

Lacan considera que

[...] talvez a análise nos introduz a considerar o mundo como o que é: imaginário, e isso só pode ser feito reduzindo a representação, ali onde está, ou seja, no corpo (LACAN, [1975] 1980, p. 21).

Embora o mundo físico possua propriedades reais, a interpretação desse mundo é cognitivamente construída a partir das impressões perceptuais, e a descrição guia-se por uma perspectiva imaginária. A ciência, durante séculos, procurou descrever a origem e o funcionamento do mundo usando modelos paradigmáticos que por muitas vezes salvaguardavam em muito as impressões perceptuais e imaginárias.

A problemática em relação ao tempo é premente a essas discussões, no sentido de tentar negá-lo ou absorvê-lo nos modelos de cognição. Por se relacionar diretamente com as experiências apreendidas pelos sentidos perceptuais e sensoriais, a descrição do tempo na perspectiva linear e sua ligação com o movimento numa perspectiva escoativa em que o presente convoca o futuro e responde ao passado em uma relação regular e contínua entre o antes e o depois, inseparável da noção de espacialidade, permeou boa parte das leituras filosóficas e de algumas áreas cientificas. Prevalece até os dias atuais, principalmente no âmbito do senso comum, que apreende de forma intuitivamente tais noções de temporalidade e por ela organiza a vida.

Essa perspectiva sofreu duras críticas a partir do século XIX e reconfigurou novos aportes teóricos, especialmente, no campo das ciências da física e da matemática. Esse século, à semelhança do nosso entusiasmo com as tecnologias digitais, também experimentou um intenso frenesi em torno da difusão das máquinas térmicas que em decorrência modificaram o cenário cultural e científico. Questões ligadas ao tratamento do conceito de energia, como uma grandeza física capaz de conservar-se independentemente das transformações sofridas em um sistema e, ao mesmo tempo, possuir condições de introduzir diferenças qualitativas ao sistema por contraí-lo e dilatá-lo e, dessa forma, produzir movimento orientaram novas leituras.

Lacan ([1954-1955] 1985) considerou no Seminário 2 que a psicanálise não passou ao largo dessa efervescência teórica propiciada pelas descobertas da termodinâmica. A teoria psicanalítica constituída naquele momento se alinhou à produção de conhecimento de seu tempo. E sob a égide da aproximação metafórica do corpo humano com as máquinas, Freud estabeleceu os primeiros esforços conceituais para explicitar o funcionamento do psiquismo (investimento, carga e descarga, energia livre e energia ligada) equiparando-os à teorização da termodinâmica e em seguida, ao assumir o funcionamento do psiquismo a partir das leis gerais da física, produziu os primeiros esforços de constituição das teorias psicanalíticas ao formular o princípio de prazer e o princípio da constância.

Jô Gondar (1995) discute a importância dessa aproximação epistêmica de Freud que, ao dar ênfase à termodinâmica, recai não sobre noção de força (ação instantânea e local sobre um corpo), mas sobre a noção de energia (força atuando em certo período de tempo, envolvendo trocas, armazenamento e dissipação), o que confere primazia à noção de processo.

Freud irá indiciar sua posição teórica ao se apropriar dos fundamentos da termodinâmica de se afastar do modelo clássico da dinâmica newtoniana, em que o tempo era apenas deslocamentos no espaço em condições ideais, sem atrito, sem mudanças, sem perdas. Mas vai avançar com o aporte teórico da psicanálise indo além dos fundamentos da termodinâmica em Para além do princípio do prazer (1920), com a introdução da pulsão de morte, a fim de explicitar o caráter pulsional da compulsão à repetição.

A partir dos sonhos traumáticos e da compulsão à repetição, Freud formula a hipótese de que ocorre uma evolução espontânea da vida no sentido da desordem e da indiferenciação, apontando um alargamento das condições dos fundamentos conceituais teóricos que a física quântica só alcançou após desdobramentos de pesquisas no final do século XX e atualmente.

 

Freud e as questões do tempo

No contexto newtoniano o tempo só poderia ser concebido de forma reversível, ou seja, o antes e o depois são absolutamente simétricos, possibilitando uma equivalência entre causa e efeito. E Freud não irá conceber o inconsciente preso à reversibilidade, embora tenha introduzido um novo conceito temporal o Nachtraglich [posteridade], que se apoiava na concepção do inconsciente como estrutura, o que despreza a irreversibilidade do tempo e se apoia nas articulações espaciais entre seus elementos.

No entanto, a estrutura só organiza algo no momento em que se encarna, em que a virtualidade se atualiza a partir de certos elementos, relações e funções, e não a totalidade dos elementos que compõem o virtual. O que se atualiza no aqui e agora são determinadas relações, determinadas possibilidades de articulação entre os elementos, segundo uma direção exclusiva e instaura nesse momento um tempo irreversível. Freud pensa a irreversibilidade do tempo a partir de momentos descontínuos e não na continuidade do tempo como aparece problematizado na tradição filosófica. Ao introduzir a posteridade que se apresenta irreversível e descontínua, o que irá apartá-lo do determinismo clássico que postulava causa e efeito e a equivalência do passado, o funcionamento do inconsciente freudiano não está comprometido com o somatório de instantes, nem com o fluxo constante da duração.

 

Tempo e espaço na experiência tecnológica: correlações com o inconsciente

O avanço da tecnologia digital trouxe uma experiência inédita para a humanidade: uma relação perceptiva distinta da apreensão que temos com o tempo e o espaço, a forma como organizamos a vida, espacializando o tempo. No senso comum, a dimensão qualitativa do tempo é descartada e o reduzimos a um modelo espacial e quantificável. Nessa forma de ponderação, o tempo perde a sua condição de irreversibilidade, que o faria caminhar numa só direção, estabelecendo uma diferença qualitativa entre um antes e um depois.

As tecnologias digitais aproximam a distância do tempo e perdemos a impressão perceptual de duração, assim não há antes, nem depois, mas apenas um presente presente. Tal experiência acelera a impressão perceptual do tempo e temos a impressão de que todas as coisas convergem para um tempo do imediato. Isso faz vacilar o imaginário e limita o simbólico porque tais categorias necessitam da duração temporal para sua operabilidade em um trabalho psíquico, o que leva à verificação da ampliação dos sintomas contemporâneos para uma arrepsia sobre as certezas em relação à realidade, um aumento do desamparo e da ansiedade. A arrepsia sobre as certezas no ceticismo pirrônico era estabelecida como um estado de espírito que se abstém de qualquer ponto de vista que possibilite dar uma definição a respeito da realidade, admitindo que qualquer afirmação que visa à verdade apresenta justificações e refutações igualmente legítimas.

Lacan ([1975] 1985), na conferência La Tercera, afirma que o futuro da psicanálise dependerá do que ocorrer com o real, se os gadgets, por exemplo, se impuserem verdadeiramente, "[...] que verdadeiramente cheguemos a estar animados pelos gadgets." (LACAN, [1975] 1981, p. 186). O que Lacan quis dizer sermos 'animados'?

Para Kant (1989) o aparelho representacional (ânimo) é constituído por três faculdades ou capacidades – de conhecer (ciência) de apetecer (ética) e de julgar (estética). A primeira a razão é limitada pela representação, a segunda a razão determina os parâmetros da ação e na terceira a subjetividade percebe, e daí a vincula às outras duas. O ânimo percebe algo das sensações. A nossa intuição (sensação) é determinada a priori pelas formas de sensibilidade que são o espaço e o tempo.

As nossas experiências com as tecnologias digitais nos mostram que estamos sendo cada vez mais animados pelos gadgets. Mas o que são os gadgets? São equipamentos complexos eletrônicos, de uso prático no cotidiano (celulares, smartphones, tablets, notebooks, GPS, entre outros tipos de dispositivos). O mais dinâmico dos gadgets é o smartphone por sintetizar em um aparelho de proporções físicas reduzidas várias funções (internet, TVs, câmera fotográfica, telefone, rádio, relógio, entre outras) e aplicativos em uma tecnologia smart (inteligente).

A palavra gadget designa um equipamento complexo criado para facilitar uma função específica e útil no cotidiano, utilizada pelos cientistas do campo da engenharia eletrônica em referência aos dispositivos comunicacionais, advém da tradição da cultura popular que usava a terminologia para descrever as engenhocas mecânicas criadas para simplificar tarefas cotidianas.

Na França eram designados como gachettes (peças mecânicas variadas). A existência de máquinas de cálculos matemáticos remonta à Antiguidade, e ao longo da história da humanidade as tentativas de criação de máquinas que acelerassem o processo de computação de dados foi uma necessidade premente, até o aparecimento do computador.

As tecnologias digitais se aproximam cada vez mais da capacidade de representação a partir do desenvolvimento de duas faculdades (conhecimento e julgamento) que o aparelho representacional (ânimo) dos seres humanos sustenta, de acordo com os argumentos de Kant apresentados em Crítica da razão pura.

Gunkel (2012) observa que o computador não funciona como um imaterial e um canal mais ou menos transparente em que os agentes humanos trocam mensagem, uma mediação técnica. Considera que o computador participa e contamina o processo, ao atuar ativamente nas mensagens, alterar e fornecer informações que não foram selecionadas, compostas ou mesmo controladas por humanos.

A inteligência artificial (IA), através da aplicação de um conjunto de algoritmos alimentados por dados, escala e poder de processamento, funciona como um guia que resolve problemas ou tarefas, através da seleção algorítmica, processo em que são escolhidos dados automaticamente com o objetivo de atribuir algum tipo de relevância a esses.

Gunkel (2017) ainda reforça que o computador participa ativamente das trocas comunicativas como uma espécie de agente adicional e/ ou coconspirador (inter)ativo, por exemplo, os bot de conversa. Através da IA a máquina pode conectar insights, identificar as oportunidades com base nos dados disponíveis anteriormente na plataforma e realizar determinadas ações necessárias automaticamente. Há uma produção de sentido, que denota que uma interação conversacional se estabeleceu com a máquina, pois esta é capaz de manter uma conversa ao entender um contexto e ser responsiva ao reunir, associar e sintetizar os dados e produzir uma narrativa, um texto ou mesmo realizar tarefas, ações e até mesmo transações. O computador formaliza um espaço virtual que se relaciona diretamente com o atual.

Observa-se uma correlação entre a forma como as tecnologias digitais organizam a relação com a temporalidade e o inconsciente. O inconsciente despreza não só qualquer grandeza absoluta e quantificável que se apresente como exterior ao sujeito, mas também um tempo neutro em que ocorreriam os eventos.

Jô Gondar (1995) chama a atenção que, é em relação a essa concepção, que o inconsciente é atemporal. O que está em jogo para a autora é a temporalização, isto é, um modo pelo qual o sujeito se produz e se organiza no tempo. Um tempo intrínseco ao sujeito e às operações que concorrem na sua produção. O sujeito é capaz de criar ou de secretar um tempo próprio e ao mesmo tempo ser constituído por ele.

Para a autora, nesse caso

[...] devemos admitir que o tempo em que se dão os processos inconscientes é real e próprio ao seu modo de funcionamento e não uma abstração construída a partir desse funcionamento (GONDAR, 1995, p. 66).

Jô Gondar (1995) considera que, para designar o campo do inconsciente, seria mais preciso descrevê-lo em termos de virtualidade e sublinhar que ele não preexiste às atualizações através das quais se manifesta.

Relaciona-se ao plano do

[....] virtual/atual, ao invés de relacioná-lo as dimensões do passado e do presente. Pois estas sugerem ainda a ideia de sucessão temporal, que o inconsciente despreza (GONDAR, 1995, p. 69).

Citando Deleuze a autora conclui que o tempo numa estrutura não vai de uma forma atual a outra, e assim não é possível engendra-lo sucessivamente. O que interessa é o processo de atualizações súbitas e descontinuas que o inconsciente procede a partir de uma direção exclusiva de irreversibilidade. Esse tempo contraria toda a rede de memória e a cada instante institui um novo tempo, que emerge de forma irregular e inantecipável.

No dizer de Jô Gondar (1995)

[....] o inconsciente não se atualiza sem ao mesmo tempo recriar o sentido do passado, irreversível porque novo a cada vez (GONDAR, 1995, p. 69).

Lacan diz que Freud fica impressionado com aquilo que aparece como tropeço, desfalecimento, rachadura,

[...] alguma outra coisa quer se realizar – algo que parece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade (LACAN, [1964] 1979, p. 30).

A potencialização das operações dos dados das tecnologias digitais tende a ampliar com as novas descobertas recentes no campo da física quântica, o entrelaçamento quântico, por exemplo, não é mais um modelo abstrato teórico, mas a constatação empírica de medições realizadas em condições extraterreste permitiu aos cientistas considerá-lo uma realidade física constatável. A contribuição dessas investigações permitirá avanço na proteção de dados (criptografia), mudanças nas formas de lidar com os fluxos de dados, volumes de dados que circulam nas redes serão afetados e mostrará o poder e um novo modo operacional dos novos computadores quânticos.

É preciso ressaltar que o avanço da tecnologia digital é intrínseco ao desenvolvimento das pesquisas espaciais. Os modelos teóricos abstratos das teorias físicas e matemáticas a partir de complexas sínteses de equações se tornam verificáveis e aplicáveis em condições de ambiência completamente distantes das experiências realizadas na Terra (condições de autovácuo, ausência de gravidade ou a presença de uma microgravidade no interior das naves e da estação espacial internacional de pesquisas e por relações de espacialidade e de temporalidade diferentes das experiências perceptuais e sensórias no ambiente terrestre).

Ao observar como o Universo, ou multiversos numa perspectiva mais abrangente, se comporta mudam-se os referenciais epistêmicos que norteavam as ciências modernas que realizam um simples artefato experimental submetido às condições do realismo local, imposto pelo ambiente possibilitado a partir da atmosfera terrestre e a partir de modelos teóricos e de equações simplificadas.

 

O que a psicanálise tem a ver com a tecnologia

Lacan adverte que o apimentando de tudo é que nos próximos anos o discurso do analista dependerá do real e não do contrário. O advento do real não depende do analista em absoluto. O analista tem por missão fazê-lo frente.

Mas a tarefa não será simples. Em 1975 Lacan já advertia:

[....] há um discurso que está proliferando e engendrando numerosos filhotes terrivelmente incômodos, a saber, o discurso cientifico [...] ameaçando por sua presença, pela ideia de que tudo vai ser regularizado" pelas teorias da física contemporânea, e alardeando que quanto mais soubermos, melhor será e assim todos saberão como produzir um indivíduo que "saberá marchar no mesmo passo com todo mundo" (LACAN, 1975, p. 23).

Os avanços da ciência, nas últimas décadas, com o suporte das tecnologias digitais, através dos computadores (máquinas de calcular) que possibilitaram cálculos rápidos e precisos, precipitaram esse quadro de aparente regulamentação da vida, sustentado por uma série de produções discursivas advindas de um sobrevalorizado discurso tecnológico, cuja aparição se localiza nas últimas décadas do século XX e se aproximarmos aos comentários lacanianos, o discurso tecnológico pode ser considerado um filhote do discurso científico.

A teoria quanta assim como a teoria da relatividade foi pródiga para a constituição das tecnologias digitais contemporâneas, o que confere às pessoas uma impressão perceptual falsa de que há uma expansão do conhecimento sobre todas as coisas e que desse saber democrático adquirido em um tempo-espaço virtual de interconexões estariam todos os indivíduos padronizados, visivelmente estabelecidos por interações de um comum a todos.

No entanto, Carlo Rovelli (2018) aponta que, embora a teoria quanta tenha sucesso experimental e tenha levado a aplicações que mudaram a vida cotidiana, como o computador, um século depois de sua inscrição no meio cientifico ainda está envolta "[...] em um véu de obscuridade e incompressibilidade" (ROVELLI, 2018, p. 134).

Rovelli destaca que a teoria se apresenta para os investigadores como uma teoria pouco clara tanto é que diversas questões continuam controversas. Portanto, parece tratar-se de pretensa a atribuição de que os computadores deterão um saber totalitário e incontestável na produção de conhecimento, capaz de regular a vida em todas as suas dimensões.

Os algoritmos, sistemas automatizados de intelecção, capazes de manipular dados brutos, ou seja, não elaborados, em dados elaborados, conectados e articulados e em certo sentido interpretá-los, foram alardeados por muitos cientistas, teóricos da comunicação e filósofos como um meio de tradução das experiências com o real para o universo das representações.

Uma confiança desmedida de que a natureza está domesticada pelos processos de cognição alcançados pela humanidade e de que o real se submete a uma decifração operacional maquínica. O que os gadgets realmente estão produzindo é um abalo nas formas de representação de mundo e das relações perceptuais de tempo e espaço.

A ciência física, ao substituir a previsão precisa pelo cálculo probabilístico, desvela alguns dos campos desconhecidos do extraterrestre tornando-o através das máquinas de visão tecnológicas, as câmeras, os telescópicos e radiotelescópios de lentes potentes cada vez mais próximos da humanidade à medida que o faz visível aos nossos olhos, por exemplo: um dos possíveis efeito da gravidade quântica – a explosão dos buracos negros.

A forma como o espaço extraterrestre se comporta está sendo compreendida com muito mais clareza a partir do avanço dos estudos em relação à ligação que existe entre as partículas a uma distância, a teoria da física quântica do emaranhamento quântico, a termodinâmica de não equilíbrio, entre outros aportes teóricos, embora quanto maior o avanço das investigações sobre o espaço, mais se compreende que há algo real e misterioso inatingível por nossos sistemas de representação simbólicos.

No entanto, a ciência é movida pela intenção do capitalismo, assim, se observa uma crença cada vez maior num processo de expansão e colonização do espaço extraterrestre que envolve vultosos investimentos financeiros em futuras viagens de exploração turísticas no espaço. Vende-se a sensação de conquista e domínio do campo extraterrestre.

Lacan ([1975] 1980), em La tercera, chamava a atenção sobre isso ao interrogar o que a ciência nos dá. E responde que, em vez de nos dar o que nos falta na relação de conhecimento, a ciência nos dá dispositivos de consumo.

É que a Ciência parte daí. E por isso tenho esperanças no fato de que passando por debaixo de toda a representação, talvez cheguemos a ter algumas noções mais satisfatórias sobre a vida (LACAN, [1975] 1980, p. 187).

 

Considerações finais

É necessário contrapor as posições dos discursos tecnológico e capitalista para compreender melhor a interação com as tecnologias digitais, do uso e da relação que se estabeleceu com os gadgets a partir de sua produção de real. E isso implica uma compreensão social sobre os procedimentos e as escolhas da tecnociência.

Para Hatewman (2015), se faz necessário aliar a uma liberdade tecnocientífica, uma democracia tecnocientífica que explicite:

[...] um empoderamento de pessoas que estão envolvidas na montagem e desmontagem de mundos, que processos tecnocientíficos estão lidando com alguns mundos em vez de outros (HATEWMAN, 2015, p. 64).

E destituir-se da crença na regularidade advinda da ciência, uma vez que

[...] a democracia exige que as pessoas estejam substancialmente envolvidas e se saibam envolvidas e tenham poder para serem cobradas e coletivamente responsáveis umas pelas outras (HATEWMAN, 2015, p. 64).

Isso implica uma tomada de posição da psicanálise em denunciar para a sociedade as implicações psíquicas, quando, por meio da ciência, forjamos novas relações do corpo como o Real ao querer manipular e ampliar através de próteses maquínicas as capacidades sensíveis de ver, de ouvir, de tocar e as intelectivas, porque o corpo não é só uma matriz biologizante, há também um corpo pulsional e, a partir do real da pulsão, podemos verificar que somos seres singulares na forma de ser e de viver, ao contrário do que apregoam a ciência e a tecnologia.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: luciene44@hotmail.com

Recebido em: 27/05/2020
Aprovado em: 15/06/2020

 

 

SOBRE A AUTORA

Luciene dos Santos
Psicanalista da Clínica do CPMG.
Candidata em Formação no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (2º tempo).
Bacharel em história e filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Especialista em cultura e arte barroca pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Mestre em comunicação social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Pesquisadora em imagens, semiótica e processos interativos e perceptuais com as imagens e as telas digitais.

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