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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.53 Belo Horizonte jan./jun. 2020

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA, TEORIA E CULTURA

 

A via do talvez: desdobramentos psicanalíticos

 

The pathway of perhaps: psychoanalytical developments

 

 

Maria Beatriz Jacques Ramos

I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto traz reflexões teóricas sobre os dispositivos analíticos. No tratamento clínico, analista e analisando experienciam uma contínua reflexão diante dos sofrimentos narcísicos e identitários, que interrogam a pulsionalidade, a transferência, a representação de si mesmo e do outro.

Palavras-chave: Angústia, Fantasia inconsciente, Pulsão.


ABSTRACT

This text brings theoretical reflections on analytical devices. In clinical treatment, the analyst and analysed experience continuous reflection in the face of narcissistic and identity sufferings that question drive, transference, and representation of oneself and the other.

Keywords: Anxiety, Unconscious fantasy, Pulse.


 

Início e meio

 

Como começar pelo início,
se as coisas acontecem antes de acontecer?
Pensar é um ato.
Sentir é um fato…
A verdade é sempre um
contato interior e inexplicável…
Existir não é lógico…
é assustador sair de si mesmo,
mas tudo que é novo assusta…
Ninguém pode entrar no coração de ninguém…
Fatos são palavras ditas pelo mundo
.
LISPECTOR, 1998.

 

A ânsia de sentir, perceber e conectar emoções complexas e mutantes formatadas por angústias, defesas e modos de relação espelha as pulsões, as fantasias inconscientes, os vínculos consigo mesmo e com o outro. As fantasias geram significados, aparecem nos comportamentos, interferem na percepção e na cognição. A realidade não existe no vazio. Ela tem uma história mesclada de amarrações internas e externas.

Prazer e desprazer, alívio e tensão, alegria e tristeza denotam níveis psíquicos que atuam ora em conformidade, ora em desordem. Partes infantis agem simultaneamente com partes adultas da personalidade, conduzem o adulto à infância.

A constituição da subjetividade é espiralada, pode gerar apego, abertura e fechamento psíquico.

O analista precisa estar preparado para destruir e ser destruído pela alteridade da subjetividade do analisando, e para vir a escutar um som que emerge dessa colisão de subjetividades, que é familiar, embora seja diferente de qualquer coisa escutada antes (OGDEN, 1996, p. 3).

Analista e analisando participam na criação das histórias no setting . A tensão sobre infinitas questões não propõe uma resposta, um deciframento do enigma da Esfinge, à medida que enxergamos o que é ser humano entre outros humanos radicados historicamente. A impossibilidade de pensar sobre a experiência emocional ativa a atuação ou a encenação. Ativa a montagem do circuito da pulsão em termos de mobilidade, força e intensidade.

Assim nos deparamos com os fluxos da pulsionalidade, com as articulações conceituais e clínicas que impelem às perguntas: Como é estar com o paciente?

Como manter os dispositivos técnicos?

Como ser psicanalista?

Como receber as demandas transferenciais?

O psicanalista convive com incertezas, com regressões psíquicas, com caminhos de aceleração e espera. Ele participa, inconscientemente, da montagem intersubjetiva por meio da transferência. Tem acesso ao mundo interno do paciente e das suas matrizes psíquicas.

Portanto, é indispensável que explore imagens, símbolos e analogias diante das carências, dos traumas e dos medos. Que crie espaço de cuidado, de fala e de silêncio compreensivo.

É preciso também que modere as intervenções, integre o discurso clivado, a figuração fragmentada e sustente a representação. Que amplie a comunicação empática, que compreenda a dialética dos estados e os sofrimentos psíquicos.

Logo, a relação analítica, influenciada pela concepção kleiniana da identificação projetiva, produz uma matriz de escuta, de movimento transferencial e afetivo.

Nos últimos anos, considero que o angustiado é uma criança com medo. O deprimido é uma criança desamparada.

Onde moram?

Como permanecem em sua vida?

De que maneira revivem aprendizagens?

Como escolhem amar e trabalhar?

Reconhecem suas ações e os efeitos que produzem?

A vida é mascarada, imagética, simbolizada?

Mantenho a compreensão de que trabalhamos com crianças-pipa, que podem voar ou desaparecer. Crianças que têm rabiola e linha curta, que ignoram, em parte, as sinalizações dos perigos externos. Crianças soltas, perdidas, conduzidas por alguém ou sinalizadas por algo inquietante.

Entramos na sala de análise! Entramos num ambiente de comunicações, observações, ideias, sentimentos, sonhos, representações. Um lugar de produção e organização dos textos espalhados que precisam ser conectados e elaborados.

E, com a mente de um manufatureiro, na fábrica das pulsões, apresento expressões, frases e sinalizações denominadas mosaicos da clínica.

 

Mosaicos da clínica

De modo aleatório, procuro citações de homens e mulheres em análise. São frases com fios de novelo emaranhados, linhas irrompidas, amarrações truncadas. As pessoas falam, mas não se conectam com a falta de continuidade em si mesmas.

Percebo que olham as árvores e não enxergam o bosque. Vivem no talvez, entre a montanha-russa e a gangorra. Vivem com o passado, com as práticas de exclusão, com a rejeição e os efeitos traumáticos. Moram nas casas dos outros porque desconhecem a própria casa. Elas vão do céu ao inferno, da festa ao desânimo.

As relações entre consciente e inconsciente têm sentido dialético e criador das experiências. Desvendam diferentes estados de consciência, com afirmações contraditórias e, por vezes, um senso rudimentar de alteridade. As narrativas promovem um compartilhamento íntimo e privado, analista-analisando, um entendimento emocional que revela algo e que nos revela.

É preciso que o analista deixe o campo disponível para o paciente e mantenha o foco da atenção e sustentação.

A seguir, transcrevo alguns relatos:

A. "Vivo na faixa de Gaza com minha mulher. Ela é ressentida, questionadora, vigia tudo que faço."

B. "Ele colocou uma foto com a mulher no WhatsApp. Nesses dois anos que o conheço, é a primeira vez que coloca uma foto com ela. Fiquei muito triste e quero entender por que colocou essa foto."

C. "Com minha mãe… sempre escuto ela (sic) falar de mim. Isso incomoda, as coisas que ela faz também me incomodam. Para meu irmão, ela faz tudo. Sustenta, dá dinheiro para ir nos (sic) jogos de futebol. Acho um absurdo, fico com raiva. Ela faz as coisas e não me consulta, não pede opinião."

D. " Me sinto constrangida, ameaçada, não sei lidar com essa situação. Meus irmãos não aceitam que peguei as reservas econômicas da mãe."

E. "A análise funciona como um pronto-socorro quando a água bate no pescoço. A rejeição é um bloco que carrego dentro de mim."

F. "Para que serve a análise? Eu não sinto dor, não fico nessas de sofrimento. Não ando com a vela na mão procurando problema. O que não tem solução, solucionado está."

G. "Quero autonomia, não ser vigiado, não dar satisfações, fazer as coisas do meu jeito. Nunca soube agradar minha mãe, nunca consegui conquistá-la. Não tenho lembranças afetivas. Quero uma mulher só para mim. Meu esteio é o trabalho."

H. "Mudei duas vezes de cidade e quatro vezes de casas. Não sei viver sozinho."

I. "Sou um bezerro desgarrado."

J. "Por um lado, a coragem; por outro lado, a resignação. Não sou nada. Só quero ser escutada. Dependo dos outros, por isso controlo tudo, faço tudo. Sou metida."

L. "Sou filha legítima, mas não fui adotada na família. Não tive cuidado. Minha mãe criou os filhos sozinha. Me sinto culpada. Não consegui um marido, um homem para casar. Sou feia e carrego a indiferença. Só sirvo como auxiliar de enfermagem, coloco o dreno para tirar o prurido do outro."

M. "Tenho que aceitar, manter a serenidade, buscar a calma em mim mesmo. Me escondo quando tenho medo. Ou jogo tudo dentro do armário."

N. "Sou filhote de cobra com jacaré. Fui largada. Minha mãe e meu pai não me quiseram. Fui criada por parentes."

O. "Moro com meu pai. Minha mãe foi embora, nos largou. Ela mora no interior com outro homem. Não tenho namorada. Gosto de transar com quem aparece, pode ser mulher ou homem, em qualquer lugar."

P. "Minha filha é doente. Foi internada num hospital psiquiátrico. Me sinto culpado. Passei a vida no trabalho para sustentar a família, oferecer viagens, cursos, comprar imóveis. Agora, tenho que parar e não sei fazer isso."

Q. "Afasto as pessoas. Busco defeitos em todos."

R. "A velhice assusta. Não suporto a morte. Perdi muitas pessoas."

S. "O amor atrapalha e prende. Me alimento do ódio. Ele dá vigor."

Lembrar, repetir, elaborar. Passar e repassar, compreender as memórias, os encontros, as ilusões e as decepções. Encontrar e partir. Assim aparece na música que Giovana, uma menina de oito anos, canta:

Lembre de mim
Hoje eu tenho que partir
Lembre de mim
Se esforce para sorrir
Não importa a distância
Nunca vou te esquecer
Cantando a nossa música
O amor só vai crescer
Lembre de mim
Não sei quando vou voltar
Lembre de mim
Se um violão você escutar
Ele com seu triste canto
Te acompanhará e até que eu possa te abraçar
Lembre de mim.
(Música-tema do filme VIVA - A vida é uma festa)

 

Viver o luto, o pesar e escolher um caminho para prosseguir, eis as aberturas. Falar, escutar a si mesmo, ser escutado e acolhido para enfrentar as angústias, eis o contexto analítico. O psicanalista trabalha nos campos intrapsíquico e intersubjetivo. O psicanalista sonda e amplia os sentidos, as fantasias inconscientes, as repetições obsessivas ou maníacas daquele que permanece enclausurado.

Os paradoxos são intermináveis. A oposição resiste, insiste e age na ausência-presença, no masoquismo-sadismo, no representável-irrepresentável. A análise não promete.

Na atividade clínica se revela o limite do analisável, a possibilidade de transformações interna e externa, entre as instâncias psíquicas de cada sujeito.

Não há sujeito sem limite. Eu insistiria, ainda hoje, no fato de que o conceito de caso-limite permanece mal circunscrito. Ele recobre uma multiplicidade polimorfa: algumas neuroses graves podem ser consideradas casos-limites; as patologias psicossomáticas geralmente o são; os transtornos narcísicos e, em grande parte, os quadros depressivos também. Continua sendo preferível – por ser mais produtivo – encará-los clinicamente como estados limites da analisabilidade (GREEN, 2019, p. 28).

A análise procura os passos do caminhante, o resgate de Psique como na mitologia, ou seja, a distinção dos territórios inconsciente e consciente.

A história mitológica de Eros e Psique retrata a importância da representação, do trabalho psíquico da simbolização, a relação dialética entre desejo e pensamento.

Psique é a filha mais velha de um mortal, tem duas irmãs mais jovens: Tristeza e Inquietação. Nenhum homem aspira casar-se com ela em razão de sua beleza. O pai, desnorteado, segue a orientação da sacerdotisa de Apolo, Pítia. Ela sugere que Psique seja abandonada num rochedo para que um monstro a localize. Mas, por interferência da mãe de Eros, Afrodite, quem vai ao encontro é seu filho, um jovem com asas, carregado de flechas do amor para atingir deuses e mortais, com a finalidade de despertar paixões inusitadas.

Quando Eros se depara com Psique, fica deslumbrado, deixa escapar as flechas e machuca a mão. Aquele que flecha é flechado pelo amor doce e amargo. Eles se casam sob a condição de que ela nunca poderá vê-lo. Mas, movida pela inveja e pelo ciúme das irmãs, Psique desobedece. Numa noite, acende uma lamparina para ver o homem que está ao seu lado. Eros acorda, abre suas asas e parte. A partir daí, ela padece com os castigos da deusa Afrodite.

Depois de muitos trabalhos e dissabores, submetida às ordens da mãe de Eros, é obrigada a ir ao mundo subterrâneo de Hades à procura de Perséfone e em busca da "caixa da beleza eterna", para aplacar o ódio de Afrodite. No caminho, Psique se perde, abre a caixa proibida e desfalece. Ela é resgatada por Zeus. Ele considera que Afrodite deveria reconciliar-se com ela, a ressuscita e a torna imortal. Depois, ordena que se celebre no Olimpo o casamento de Eros com Psique.

Pensar é conservar o sentido que permite estar e sair de si mesmo, fantasiar sem se afastar da realidade e sem perder o contato com o outro. Querer-pensar-fazer têm certo grau de organização-desorganização, a denominada loucura privada (GREEN, 2019), a loucura da paixão. Psique é impulsiva; em sua intenção de descobrir as feições de Eros, desponta a predominância do corpo em relação à palavra, do afeto em relação à representação. O afeto é complexo; a relação com o corpo e com o ambiente marca a relação com o outro. O afeto denuncia os elos pulsionais e históricos do sujeito.

O verdadeiro ponto de referência, no que concerne ao afeto, é sua relação com a vinculação e a desvinculação. O afeto surge como algo que pode ou não sustentar o processo de vinculação. Com o afeto, o poder disruptivo do corpo pode se manifestar. Ele pode introduzir marcas, ênfases que enriquecem a representação; pode introduzir, no seio mesmo do processo de representação, um elemento de contradição, até mesmo uma força de desvinculação (GREEN, 2019, p. 36).

 

Manufatura analítica

Reflito, nas sessões analíticas, como se estivesse numa fábrica de montagem com peças espalhadas; peças que carecem de conexão. São encontros marcados por progressão e regressão, tempo e espaço, presente e passado, aqui-agora. Visualizo escolhas, negociações marcadas por incertezas e caminhos sem logicidade, posições ou maneiras de lidar com o conhecimento e os afetos numa oscilação frenética. O eu dividido, a idealização, a negação e a onipotência são replicadas entre analisando e analista.

Klein (1946) sugere que o paciente projeta para dentro da mente do analista comportamentos que convidam à ação, ao engate em determinado papel que arrasta ao campo identitário e, por vezes, à identificação projetiva. Nesse sentido, não é possível projetar impulsos sem projetar parte do ego, o que implica sua cisão. Uma parte do que é excindido (expulso) vai para o objeto e distorce a percepção do sujeito. A identificação projetiva aponta para a espacialidade do ego por meio da projeção e reintrojeção do que foi levado para o objeto. O objeto se torna um prolongamento do sujeito. O objeto é "colonizado", tomado pela identificação (transferência). A transferência tem um caráter móvel, oscila da transferência positiva para a negativa no decorrer da sessão.

Ao ampliarmos a comunicação interna e a reflexividade relacionadas com os objetos interiorizados, criamos novos sentidos para lidar com o sofrimento psíquico e compreender a vulnerabilidade humana. Nessa perspectiva, a verdade psíquica surge na forma de pensamentos e palavras que acenam às angústias ou agonias.

Sem alteridade não há possibilidade de enfrentar o cotidiano, sair da clausura, da autossuficiência e do isolamento. A alteridade é laboriosa, pois representa novas vivências para o sujeito, certo equilíbrio entre força pulsional e simbólica.

Alguns pacientes não conseguem narrar a si mesmos. Estão tomados por vozes e olhares estranhos, não produzem associações. Não são protagonistas que conectam as historicidades. Não dão sentido à existência em movimentos temporais e espaciais. Não interpretam as experiências.

Nosso ofício é interpelar, confrontar e, por vezes, silenciar diante dos contextos narcísicos, identificatórios e históricos.

Em Freud e Klein, o sujeito psicanalítico é sempre nômade, perpetuamente em trânsito entre consciente e inconsciente, entre o polo esquizoparanoide e o depressivo, no espaço e na tensão criada pela inter-relação dialética das diferentes dimensões da experiência (OGDEN, 1996, p. 43).

O passado deve passar (tudo passa). Sem encarar as perdas, não é possível ganhar. Sem estar "consigo mesmo", não há crescimento psíquico.

Pensar e simbolizar a experiência vivida é nossa mais íntima compulsão e é também o princípio de todas as terapias e análises, a sua ação terapêutica, o que leva ao insight e à cura. Corresponde à necessidade de inventar-se a si mesmo de novo a cada dia e de sair do mesmo lugar. Pontalis afirmou em uma entrevista que curar-se é mudar de lugar (OGDEN, 1996, p. 47).

Nesse aspecto, procuro o que não foi pensado, cogito as imagos inconscientes, os objetos internos, faço uma escuta para viabilizar o não dito. As fantasias são representações pulsionais e nunca perdem conexão com o corpo. As fantasias recaem sobre sensações, percepções e afetos. No setting, apenas os derivados das fantasias infantis são observáveis por meio das angústias e das defesas.

Cada sessão representa um novo encontro, uma nova construção. O desafio é partilhar a transitoriedade da vida, metabolizar o dolorido, elaborar os danos e acreditar no poder reparador de Eros ao lidar com a transferência, na oscilação entre Cila e Caribdes (entre a tormenta e o rochedo).

Roussillon citado por Rache e Tanis (2017, p. 29) propõe um enquadre interno de livre associação e escuta empática, permeabilidade inconsciente, espontaneidade livremente flutuante e capacidade criativa do analista.

O pensamento clínico reconhece o hiato intransponível entre clínica e teoria, que não admite uma correspondência unívoca, mas é nesse próprio hiato que clínica e teoria transitam e nele reconhecemos os movimentos e novos rumos da nossa prática.

A escuta associativa do analista remete à espera, ao desafio de ajudar os sistemas de regulação da psique pelas vias da simbolização e da reflexão. Atualmente, o pensamento clínico propõe uma visão dialética do sujeito alienado para que se reconheça historicamente.

Os conteúdos mentais existem num espaço de interação sociocultural e precisam evoluir para um espaço interno, um espaço psíquico pessoal.

Os gestos e as posturas de ação se transferem para o verbo significado. O afeto excluído só retoma a expressividade da vida pulsional articulada.

A reflexividade será considerada a partir de um corte da clínica para efeito de demonstração de sua funcionalidade. Primeiramente, o sujeito tem que de poder sentir-se, autoafetar-se, pelas pulsões e afetos que o percorrem (ROUSSILLON citado por RACHE; TANIS, 2017, p. 65).

As pulsões de vida e de morte são organizadoras e continentes da vida psíquica. Nessa perspectiva, as questões clínicas são: dar conta dos objetos fantasiosos e criar objetos externos além dos criados internamente pelo paciente. Assim, a subjetividade parte da diferenciação entre símbolo, simbolizado, sujeito intérprete e desejante.

O paradigma contemporâneo enfatiza três tempos do tratamento analítico: o intersubjetivo presente na transferência, o autossubjetivo na capacidade de estar só na presença do outro e o intrassubjetivo, figurável no sonho e no espaço narcísico.

Desse modo, a análise depende da disposição interna do analista, da capacidade de capturar as associações não verbais, ações, experiências não representadas em palavras e da articulação teórica tramada nos sentidos econômico, tópico e dinâmico do aparelho psíquico.

Acessar frustrações, decepções, alegrias faz parte das circunstâncias boas ou decepcionantes na vida cotidiana das pessoas reais e das relações que têm com os objetos e os acontecimentos constitucionais.

As pessoas são ambivalentes! Elas não estão contentes sempre. Elas se decepcionaram... Pois bem. Freud diz que não temos meio algum de fazer desaparecer completamente a ambivalência; a saber, essa coisa que tem, para ele, uma conotação de agressividade, de ódio e de ressentimento. As pessoas permanecem, de todo modo, agarradas nesses sentimentos. O tempo passou, as pessoas não são mais as mesmas, tudo mudou; mas lá ainda estão elas, mais uma vez, agarradas ao que sofreram (GREEN, 2019, p. 122).

A ambivalência pode ser pulsão de morte quando, de modo primitivo, fica enraizada num período da existência e não se transforma.

As pulsões são mensageiras, atuam potencialmente na problemática da negatividade e colocam o analista diante do desafio de integrar as clivagens dicotômica ou fragmentadora, buscar religações e ligações que assegurem a sobrevivência do eu.

A presença-ausência precisa ser tolerada, não atacada. O analista, no lugar de terceiro, não pode servir como projeção das transferências intrapsíquicas do paciente. Ele participa ativamente na criação do campo transferencial, no modo como se comporta e responde às demandas do outro.

A atividade psicanalítica acontece no engajamento transferencial, no qual o paciente desenvolve reflexividade, aprende a se ver melhor, se escutar e reconhecer os elementos inconscientes da reflexividade.

A transferência é um retorno oriundo de uma época (des)conhecida, uma "memória inconsciente de ser uma memória" que ocorre no presente ao invés de ocorrer como lembrança. (ROUSSILLON, 2019, p. 59).

Se transferência é "reminiscência", se ela é "revivescência", então o sujeito, por sua vez, deve justamente possuir uma forma de "conhecimento" daquilo que encena e se reencena na transferência; ele deve justamente ter conservado um vestígio daquilo que o afetou; de certa maneira, ele pressente aquilo ao qual está sendo novamente confrontado, ainda que "não sabe que sabe" (ROUSSILLON, 2019, p. 59).

Não sou eu… é você… Esse deve ser o lugar do terceiro que se descola das identificações e repetições aprisionantes e conluios analíticos. Nesse contexto, implementam-se condições externas e internas no objetivo de facilitar a emergência das produções inconscientes e dos problemas vinculares apoiados em indiferenciações, carências e inapropriação subjetiva-subjetivante, ou seja, falhas nas (re)apresentações.

 

Referências

CINTRA, E. U.; RIBEIRO, M. Por que Klein? São Paulo: Zagadoni, 2018.         [ Links ]

GREEN, A.; URRIBARRI, F. Do pensamento clínico ao paradigma contemporâneo. São Paulo: Blucher, 2019.         [ Links ]

KLEIN, M. Notas sobre mecanismos esquizoides. In: ______. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Tradução: Elias Mallet da Rocha Barros, Liana Pinto Chaves e cols. Rio de Janeiro: Imago, 1991.         [ Links ]

LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.         [ Links ]

OGDEN, T. A matriz da mente. São Paulo: Blucher, 2017.         [ Links ]

OGDEN, T. Os sujeitos da psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996.         [ Links ]

RACHE, E.; TANIS, B. (Orgs.). Roussillon na América Latina. São Paulo: Blucher, 2017.         [ Links ]

ROUSSILLON, R. Manual da prática clínica em psicologia e psicopatologia. São Paulo: Blucher, 2019.         [ Links ]

SALIS, V. Mitologia viva. São Paulo: Nova Alexandria, 2003.         [ Links ]

VIVA – A vida é uma festa. Filme. Direção: Lee Unkrich. Codireção: Adrian Molina. Walt Disney Pictures e Pixar Animation Studios. Estados Unidos, 2017, cor, 105 min. Lembre de mim,música-tema do filme. Disponível em: <https://www.telecineplay.com.br/filme/Viva_A_Vida_%C3%89_Uma_Festa_9780>. Acesso em: 30 jun. 2019.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: mbeatrizjacques@gmail.com

Recebido em: 30/05/2020
Aprovado em: 10/06/2020

 

 

SOBRE A AUTORA

Maria Beatriz Jacques Ramos
Doutora em Psicologia pela Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Psicanalista. Sócia efetiva do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.
Presidente do Círculo Psicanalítico do RS - CPRS (2010-2015).
Coordenadora do Instituto de Estudos de Psicanálise do CPRS (2015-2020).
Membro do conselho consultivo da Revista Estudos de Psicanálise.

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