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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.53 Belo Horizonte Jan./June 2020

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA, TEORIA E CULTURA

 

Relato de caso clínico: de agregado a cidadão1

 

Report of a clinical case: from Family household to citizen

 

 

Sonia Guiomar Martins Seixas

I Círculo Psicanalítico da Bahia
II American Association for Psychoanalysis in Clinical Social Work

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho traz o relato de um caso clínico iniciado em 08 de março de 1994 e encerrado em 17 de abril de 2001, apoiado teoricamente na psicanálise, no ambulatório de adultos de uma instituição especializada em saúde mental do Sistema Único de Saúde (SUS), em Salvador, Bahia. A demanda do analisando e a transferência analítica permitiram uma produção trazida pelo discurso do sujeito que, dessa forma, ao longo do processo, conseguiu ressignificar razoavelmente questões cruciais da sua trajetória de vida, bem como a efetuar a retificação subjetiva, fazendo com que deixasse de ser um espectador da sua própria existência, um "agregado", para se tornar o ator da sua história: um cidadão.

Palavras-chave: Demanda, Sintoma, Transferência, Retificação subjetiva.


ABSTRACT

The present work presents the report of a clinical case that started on March 8, 1994 and ended on April 17, 2001, theoretically supported by psychoanalysis, in the adult clinic of a special mental health institution of SUS in Salvador, Bahia. The demand of the analysand and the analytical transfer allowed the emergence of problems brought up in the subject discourse, which, in this way, throughout the process, managed to reframe the crucial issues of his life trajectory, as well as the subjective rectification of his life, causing him to stop being a spectator of his own existence as an "aggregate", to becoming the actor of his story: a citizen.

Keywords: Demand, Symptom, Transference, Subjective rectification.


 

Nenhum de nós vive sozinho.
Aqueles que tentam
estão condenados de antemão
a se desintegrar como seres humanos.
Algumas experiências são
mais individuais que sociais,
outras são mais sociais
que individuais,
mas a vida, não obstante,
é uma experiência compartilhada
e compartilhável

NATHAN ACKERMAN

 

Introdução

Ao me dispor a trazer a lume o relato de um caso clínico, tenho consciência das dificuldades da elaboração escrita a partir de uma atividade que lida essencialmente com a escuta do discurso do sujeito. O presente relato não segue o tempo cronológico da ordem dos fatos, mas a atemporalidade do inconsciente.

Recebi para a entrevista preliminar em 08/03/1994, numa instituição pública de saúde mental, a pessoa que no presente relato passará a se chamar Nelson. Ele tinha 30 anos de idade, era solteiro, relatava como profissão "nenhuma". O endereço era o orfanato X, onde vivia como "agregado". A queixa girava em torno de "frustrações, problemas familiares e dificuldade de me juntar com as outras pessoas".

Nelson começou a falar da sua vida: "Meu maior problema é que não tenho capacidade de construir um futuro". Falava do passado que o "perseguia", acrescentando: "Sei que devo esquecer, mas não consigo".

Aos 11 anos de idade, Nelson saiu da sua casa, na zona rural, onde vivia com os pais e dez irmãos, por não suportar as "agressões físicas": "Eu apanhava até três vezes por dia, apanhava de meu pai, minha mãe e às vezes dos meus irmãos mais velhos. O meu avô lutou na guerra e era do tempo de amarrar na mesa". Deixou, amigavelmente, a casa da família, indo em busca do apoio de pessoas ligadas à Igreja católica e de padres: "Fui coroinha, ajudava nas missas e em outras atividades da Igreja". O analisando comparecia regularmente às sessões semanais, e a relação transferencial foi se estabelecendo.

Tratava-se de uma pessoa com capacidade de associar livremente as ideias e com demanda de falar de si. A minha suspeita diagnóstica diferencial revela um sujeito neurótico, apontando para a histeria.

Numa sessão falou de uma fantasia: morar nas ruas e comer o que lhe oferecessem. Perguntei-lhe se a rigor alguém poderia "morar nas ruas" e se nesse caso, os alimentos seriam "oferecidos". Calou-se por alguns minutos, depois falou: "Sinto-me inferior às demais pessoas, por isso perco as oportunidades. Há pouco tempo me inscrevi num concurso, fiquei esperando as informações chegarem, como não chegaram, não procurei saber e perdi".

Durante algum tempo o analisando manteve um discurso sistemático, repetitivo. Perguntava-me o que Nelson estaria deixando de falar, enquanto repetia aquelas mesmas coisas, através das palavras encobridoras.

Nelson falou do seu "primeiro progresso", quando teria "conseguido" se reunir com outras pessoas. Retomou o discurso sobre a sua falida relação familiar e citou uma frase do seu pai, que o teria marcado profundamente: "Você vai se tornar um marginal". O significante "marginal" age sobre o analisando como uma ordem imaginária a ser cumprida, pois até o momento, ele não tinha conseguido sair da posição de estar à "margem". Com essa interpretação, encerro a sessão.

Na sessão seguinte, Nelson fala da sua mãe: "Uma mulher analfabeta e sem perspectivas... para mim ela é uma luz". Nessa fala aparece a ambivalência com relação à mãe.

Nelson fala da sua primeira tentativa de mudança dentro do orfanato: "Procurei a diretoria, pedi para ser admitido para trabalhar, mas negaram... Eles não acreditam em mim, mas eu mereço uma chance!". Observo progresso e melhora da sua autoestima.

Num determinado momento fala de um "conflito interior": "Sei que preciso concluir o 2° grau, mas não tenho coragem de voltar a estudar. As pessoas vão ficar sabendo. Menti para todos, pensam que já possuo o certificado de conclusão do curso, como explicaria isso?". Digo-lhe que pense qual seria de fato o seu "conflito interior".

Na sessão seguinte falou da sua "mudança de comportamento" na instituição e da repercussão no meio: "As pessoas estão me vendo acordar cedo, fazendo alguns trabalhos, não vão mais poder me chamar de come e dorme".

Nelson foi indicado para representar o orfanato num evento, onde teria visto uma frase, que lhe chamou a atenção: "Longe é um lugar que não existe". Pensa um pouco e fala: "Essa frase tem a ver com as minhas buscas".

Após o período eleitoral em outubro de 1994, Nelson chegou à sessão bastante eufórico, porque havia trabalhado para o partido político da sua preferência. Perguntou-me se poderia falar de política, pois não sabia se eu estaria ligada aos seus adversários. Disse-lhe que não estava ali como pessoa, mas ocupando um lugar para escutá-lo. Sentiu-se livre para falar.

Nelson traz para essa sessão uma outra "importante" questão, que aponta como uma "dificuldade": "Quando estou na presença de pessoas "superiores" a mim, sinto-me mal". Perguntei-lhe o que poderia estar acontecendo. Ficou pensativo durante algum tempo e voltou a falar do pai: "Quero ser um pai diferente... ele me torturava muito...".

Até o momento tinha falado muito pouco sobre a sua sexualidade: namoros que não duram e pessoas que não conseguiram "despertar os seus sentimentos".

O analisando se autointerpreta, fazendo uma devolução ao nosso trabalho analítico: "Você uma vez me falou uma coisa, pensei muito e vi que é verdade... quando não estou curtindo a minha própria miséria, "viajo" na miséria dos outros".

 

Teorizando

Nelson seguia a sua trama histérica. A histeria masculina traz como traço primordial a incapacidade de tirar proveito do que é possível ter, em prol da lamentação pelo que não tem. O que deseja inconscientemente é a manutenção da sua insatisfação. Fazendo-se de vítima, o histérico procura fracassar espetacularmente aos olhos da "plateia". O fracasso constitui-se em um traço estrutural, já que o sucesso é capaz de desencadear nesses casos um mecanismo de autopunição.

Pela primeira vez, o analisando falou sobre o seu nome próprio: "É um nome bíblico, é também o nome de um irmão de meu pai, mais moço que ele. Sei que morreu aos 20 anos num acidente de automóvel. Ele também saiu cedo de casa e foi trabalhar na cidade grande".

 

Retomando a teoria

O nome próprio, através do qual a pessoa é denominada, indica uma relação entre o receptor e o doador (em geral os pais), sendo muitas vezes expressão de indicadores de um acentuado nível inconsciente sobre o sistema de relação entre ambos, por exemplo, a expectativa de semelhança da personalidade à qual o nome está associado.

Em 27/05/1997 Nelson chega à sessão dizendo ter uma novidade: "Fui contratado pela instituição". Em seguida diz: "Tenho medo de assumir essa nova posição, a minha vida vai mudar muito, vou ter que mudar para uma casa, ter despesas de água, luz, alimentação... eu não estou acostumado a lidar com isso tudo...". Interpreto: de fato não estava acostumado mesmo, pois tinha no orfanato um substituto dos pais, na medida em que era acolhido, alimentado etc.

Nelson planeja uma viagem à casa dos pais para vender as suas "cabeças de gado". Tratava-se de alguns animais que o pai havia dividido entre os filhos em quantidades iguais, para que eles dispusessem de acordo com as suas necessidades. Viajou, vendeu o gado, voltou e, com esse dinheiro, comprou uma casa simples, próxima ao orfanato.

Em 10/03/1998, chegou à sessão falando: "Já conquistei o meu emprego, a minha casa, só não consegui ainda encarar os estudos". Falou da solidão e da sua dificuldade de se relacionar. Pensava em constituir uma família, mas não sabia "como isso poderá acontecer".

Prestou exame de motorista, queixou-se de ter cometido faltas elementares e ficava na expectativa de um resultado negativo. Faz um ato falho: "Estou chateado porque todo mundo espera ser reprovado de primeira". Interpreto o ato falho e encerro a sessão.

Realizou um novo projeto: a compra de um carro. Em 17/04/2001, Nelson fala que já está matriculado num curso supletivo à noite, numa escola pública, próxima à sua casa e fala que dessa vez estudará de verdade, "apesar das deficiências da escola", pois tem consciência de estar ocupando um cargo na instituição que exige uma melhor qualificação. Fez uma avaliação do seu percurso na análise: "Como é importante poder falar, pensar, tomar decisões...". Nesse momento se apropria da palavra o sujeito, o cidadão.

 

Exposição final

O relato de caso apresentado teve uma duração de sete anos, em uma sessão semanal. Trabalhamos com a atemporalidade do inconsciente, que não segue a lógica do cronômetro.

Foi gratificante constatar o quanto a psicanálise pode ser apaixonante e surpreendente sob todos os aspectos: a demanda do sujeito, o desejo do analista e a transferência, considerada por Lacan como a mola mestra da psicanálise, da cura e o princípio do seu poder, que proporcionaram a retificação subjetiva do sujeito diante do seu sintoma.

 

Referências

ACKERMAN, N. W. Diagnóstico e tratamento das relações familiares. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.         [ Links ]

BERENSTEIN, I. P. Psicoanálisis de la estructura familiar. Buenos Aires: Paidós, 1981.         [ Links ]

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LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: smartinsseixaspsican@gmail.com

Recebido em: 27/05/2020
Aprovado em: 15/06/2020

 

 

SOBRE A AUTORA

Sonia Guiomar Martins Seixas
Psicanalista.
Assistente Social.
Membro efetivo do Círculo Psicanalítico da Bahia, do Círculo Brasileiro de Psicanálise e da International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS).
Membro pleno da American Association for Psychoanalysis in Clinical Social Work, USA (www.aapcsw.org).
Membro do GAPS - Group for the Advancement of Psychodynamics and Psychotherapy in Social Work in the UK (https://www.gaps.org.uk/).

 

 

1 Agradecimento: à colega e amiga psicanalista Maria da Conceição Vieira pelas pertinentes reflexões.

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