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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.54 Belo Horizonte jul./dez. 2020

 

PSICANÁLISE ON-LINE E PANDEMIA

 

Psicanálise ampliada: possibilidades na pandemia

 

Amplified psychoanalysis: possibilities in the pandemic

 

 

Magda Maria ColaoI, II, III; Maria Melania Wagner Franckowiak PokorskiIII; Waleska Pessato Farenzena FochesattoIII; Anelise Scheuer RabuskeIII

I Universidade de Caxias do Sul
II Grupo de Pesquisa Internacional de Formação de Professores do Mercosul/Cone Sul
III Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este ensaio objetiva analisar o período pandêmico da Covid-19, seus reflexos na saúde mental da sociedade, bem como algumas repercussões no trabalho psicanalítico. Pretendemos entender a psicanálise não apenas no espaço do consultório, mas também de forma ampliada, em que ela possa dar a sua contribuição à saúde integral, ocupando-se com a promoção e a prevenção em saúde mental e pública. Como exemplo de psicanálise ampliada, mencionamos alguns ciclos de estudos oferecidos nos últimos anos pelo Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS) aos profissionais da saúde e da educação. Além disso, o ensaio descreve dois recortes de casuísticas em atendimento na forma on-line, lembrando, como dizia Freud (1937), que o trabalho do analista se assemelha ao do arqueólogo. O ensaio finaliza sinalizando possibilidades de elaboração deste período em que a dor, a angústia, a fobia e o desamparo se fazem muito presentes na escuta analítica. Os autores que nos auxiliaram nesta reflexão são vários, mas destacamos Freud, Danto, Dolto e Minerbo.

Palavras-chave: Psicanálise ampliada, Saúde mental, Pandemia, Ciclos de estudos.


ABSTRACT

This essay aims to analyze the Covid-19 pandemic, its impact on the mental health of society, as well as some repercussions it has on psychoanalytic work. Our goal is to understand Psychoanalysis not only in the clinic space but in an expanded way, in which it can contribute to integral health by dealing with the prevention and promotion of mental and public health. As an example of amplified Psychoanalysis, we will explore some study cycles offered in the last few years by the Rio Grande do Sul Psychoanalytical Circle (CPRS) to health and education professionals. Also, the essay describes two clinical cases of adolescents undergoing online sessions, thus recalling, as Freud (1937) said, that the analyst's work is similar to that of the archaeologist. The essay ends with an overview of possibilities for elaborating this pandemic period when pain, anguish, phobia, and helplessness are very present in the analytical listening. Several authors helped us in this reflection, but we highlight Freud, Danto, Dolto, and Minerbo.

Keywords: Amplified psychoanalysis, Mental health, Pandemic, Study cycle.


 

Com o início do ano 2020, urgentes mudanças se anunciavam. A pandemia chegou sem aviso prévio e atingiu toda a sociedade mundial. O trabalho dos profissionais da psicanálise e de suas instituições foi muito afetado. Fez-se necessário pensar novas possibilidades para os atendimentos clínicos, os seminários de formação psicanalítica, as reuniões de diretoria e os ciclos de estudos de psicanálise, estes últimos abertos aos profissionais da saúde e da educação. A forma presencial não era mais possível, em função da necessidade de distanciamento social, e essa previsão se estendeu por todo o ano 2020, tendo continuidade em 2021. A possibilidade da vacinação aos poucos vai se fazendo presente, mas levará um período longo para atingir uma grande escala para conter o Sars-Cov-2 (Covid-19).

A pandemia nos fez enfrentar situações de perdas de pessoas próximas, familiares, familiares de pacientes e colegas. O contato presencial teve que ser substituído pelo virtual, até então não muito conhecido ou poucas vezes utilizado. A forma virtual se impôs como única possibilidade viável, devido ao distanciamento social. Como manter o cuidado com o outro em uma relação virtual? Como atender crianças, adolescentes ou adultos na modalidade on-line ? Qual a diferença entre iniciar um atendimento remoto ou seguir atendendo pacientes de mais tempo? Será que os ciclos de estudos de psicanálise podem ter um espaço síncrono? O que entendemos por psicanálise ampliada? Vários questionamentos surgiram, uma vez que fazer uso das tecnologias não era tão usual no campo da psicanálise.

Possivelmente, os atendimentos clínicos, os seminários de formação, as reuniões, os ciclos de estudos de psicanálise e as palestras possibilitaram uma atenção, uma escuta e um olhar para uma psicanálise ampliada, que já havia dado alguns sinais na prática de psicanalistas como Françoise Dolto, que, desde os seus oito anos de idade, dizia que seria médica de crianças. Ao iniciar seus estudos de medicina em 1932, pensava em dedicar-se à pediatria. Porém, após a análise pessoal realizada com o psicanalista René Laforgue, Dolto iniciou sua carreira como psicanalista.

Segundo Roudinesco (1998, p. 158), em 24 de setembro de 1940,

Dolto inaugurou, no Hospital Trousseau, um consultório que se tornaria 'público', isto é, aberto aos analistas que desejassem se formar na prática da psicanálise de crianças. Ela o fechou em 1978.

Sua preocupação era com um trabalho psicanalítico para além do paciente, ou seja, havia uma escuta dos responsáveis e da criança ou do adolescente. O início de um tratamento só se efetivava com a concordância de todos.

Ledoux (1995) menciona que , na década de 1970, Dolto oferecia um espaço em programa radiofônico, respondendo a perguntas de pais ou professores, perguntas essas que implicavam a constituição do sujeito ou as relações humanas. Além disso, em 1979, ela criou a Casa Verde, com o objetivo de acolher crianças de até 3 anos de idade, acompanhadas dos pais, para evitar os traumas de ingresso na pré-escola. Kupfer (2006) menciona que, em 2001, na França, havia 130 Casas Verdes.

Assim, neste momento de severa crise mundial, quem são os profissionais convocados a criar narrativas sobre o trauma social que estamos vivendo? Seja por meio de atendimentos virtuais e lives, seja por programas de rádio e TV, seja na mídia escrita, são os filósofos e/ou os psicanalistas que vêm a público tentar dar nome e sentido ao que vivemos. Só um campo de saber que se ocupa da escuta de questões profundas do inconsciente seria capaz de tal feito.

Este ensaio nasce do desejo de refletir sobre o trabalho da psicanálise ampliada nestes tempos de tantas privações e adversidades. Nossa reflexão, inicialmente, vai se ocupar do entendimento da psicanálise ampliada. Vamos relatar um pouco do trabalho denominado ciclos de estudos de psicanálise do CPRS, descrever algumas vinhetas de casos clínicos e os impactos percebidos durante este período pandêmico, bem como pensar possibilidades de elaboração do trauma vivido.

Talvez possamos nos perguntar desde logo: quais serão as marcas e as repercussões deste momento histórico da pandemia Covid-19 nas relações humanas, na sociedade, no sujeito e em sua constituição?

 

Psicanálise: clínica ampliada

A psicanálise ampliada interage com o modelo de atenção psicossocial baseado no conceito de saúde integral, que se preocupa com a promoção e a prevenção em saúde mental e pública, em associação com políticas de saúde em geral. É uma ferramenta teórica e prática diante do sofrimento e do adoecimento humano, com um olhar ampliado para a singularidade do sujeito e a complexidade de seu contexto.

A clínica ampliada articula as condições biopsicossociais com a qualidade de vida, propõe o diálogo entre os profissionais e o paciente para desenvolver a proposta terapêutica e estabelece a escuta do sujeito psíquico em prol da saúde mental e da contínua formação profissional.

A psicanálise ampliada é uma práxis político-social. Está imbuída da consciência da sociedade e do espírito de reforma sanitária, que compreende uma nova concepção de saúde desde as Clínicas públicas de Freud, pesquisadas por Danto (2019). A psicanálise se recria na crise social.

Fernandes (2019, p. 390) declara:

[...] as clínicas públicas de Freud são a prova de que a história da psicanálise não é uma competição estática na qual 'vence quem fala mais alto' (ou mais moderadamente). Justamente por ser móvel que ela se constrói e se reconstrói a cada urgência do contemporâneo, que lhe exige explicações por meio do resgate de vozes ditas vencidas. Que se suspendam as críticas ardilosas que dizem que olhar para trás quando a barbárie se apresenta ao lado seria uma forma de negar o que vem pela frente. Dos discursos dos vencedores, estamos fartos: movemo-nos.

O que se conhece como saúde mental é uma área muito extensa e complexa do conhecimento que abrange a transversalidade de saberes, os quais ampliam "[...] conhecimentos, de forma tão rica e polissêmica que encontramos dificuldades de delimitar suas fronteiras, de saber onde começam ou terminam os limites" (AMARANTE, 2013, p. 16).

Há perspectivas e cenários na contemporaneidade que demandam a psicanálise ampliada tanto para contribuir no "processo civilizatório" quanto para fazer o acolhimento e pensar o homem e a sociedade em sua totalidade.

Freud afirma que o primeiro requisito da civilização é o da justiça – isto é, a garantia de que uma lei não será violada em favor de um indivíduo (DANTO, 2019, p. 387).

Assim:

[...] há tempos imemoriais ocorre na humanidade o processo de evolução da cultura. [...] A ele devemos o melhor daquilo que nos tornamos e uma boa parte daquilo de que sofremos. Suas causas e seus começos são obscuros, seu desfecho é incerto, mas algumas de suas características são claras (FREUD, [1932] 2016, p. 433).

A psicanálise e a saúde coletiva surgem como uma clínica que se amplia e amplia a capacidade de prestar atenção aos sujeitos. A clínica do sujeito é do saber. Além de disposição, formação, análise e supervisão, o psicanalista precisa cultivar disciplina intelectual em uma concepção de teoria crítica. Dessa forma, é capaz de fazer uma escuta com aceitação do outro e de seus saberes.

A psicanálise ampliada situa o exercício da prática clínica na atenção básica, em suas mais diversas intervenções clínicas, aliadas "[...] ao campo da imprevisibilidade radical da vida cotidiana" (CUNHA, 2007, p. 97).

Amarante (2013, p. 63) diz que começamos

[...] a pensar o campo da saúde mental e atenção psicossocial não como modelo ou sistema fechado, mas sim como processo; um processo que é social, e um processo social que é complexo.

Falar de psicanálise ampliada é falar da experiência humana e de sua

[...] subjetividade enquanto processo, enquanto resultado de uma criação. Processo, efeito de múltiplas forças: sociais, econômicas, ideológicas, científicas, políticas, culturais, psicológicas, [...] e o laço social (MATOS, 2004, p. 20).

Em tempos de pandemia, a escuta psicanalítica tem sido demandada tanto para atendimentos individuais, com suas narrativas de sofrimento, quanto para buscar respostas sobre a realidade de sucessivas perdas. Da mesma forma, é requerida como um trabalho de acompanhamento terapêutico de pacientes sobre os efeitos de impactos trágicos. As práticas têm

[...] demonstrado a flexibilidade com que a psicanálise se inscreve no social, sem que, no entanto, seus pressupostos teóricos fiquem comprometidos. Lacan, convidado a escrever sobre variantes do tratamento que se espera de um psicanalista definia: "uma psicanálise, padrão ou não, é o tratamento que se espera de um psicanalista" (JAVER, 2004, p. 95).

Conforme narra Lancetti (2016), Freud também tratava alguns pacientes andando pelas ruas ou pelo campus da universidade, como evidenciado, por exemplo, no caso de Gustav Mahler:

O grande compositor, que sofria de uma loucura da dúvida, enviou vários telegramas a Freud ora solicitando análise, ora para desmarcar os encontros, o que levou Freud tomar uma atitude ativa, intimidando-o (LANCETTI, 2016, p. 27)

Em Caminhos da terapia psicanalítica, Freud ([1919] 2020, p. 280) declara:

Como sabem, nunca nos gabamos da completude e inteireza de nosso saber e de nossa capacidade; estamos prontos, agora não menos que antes, a admitir as imperfeições de nosso conhecimento, aprender novas coisas e mudar em nossos procedimentos o que puder ser melhorado.

A psicanálise é revolucionária e seu destino depende do destino do mundo. Para Danto (2019, p. 386-387):

Freud sempre acreditou que a psicanálise libertaria as habilidades de raciocínio nos indivíduos oprimidos e que o insight pessoal (combinado com o pensamento crítico) conduziria naturalmente à independência psicológica. [...] As neuroses ameaçam a saúde pública.

Além disso, segundo acredita, os psicanalistas pecam quando insistem "[...] em considerar a neurose do sujeito como único locus de intervenção" (DANTO, 2019, p. XX).

A psicanálise é matéria viva presente nos mais diferentes ambientes, extrapolando as paredes do consultório, constituindo-se em uma escuta que pode circular por todos os espaços sociais que em nosso país se encontram no "olho do furacão" (BROIDE, 2019).

É intrigante, protesta Danto (2019, p. xxxix), que "[...] a história do ativismo político na psicanálise tenha sido consistentemente omitida do público".

O momento histórico brasileiro, esperança Broide (2019, p. xvii):

[...] tem mobilizado também diferentes associações psicanalíticas, que buscam outras formas de inserção e de atendimento clínico no campo social, numa sinergia que vai colocando como inexorável o olhar para fora de sua própria instituição e da classe social de seus membros.

 

Psicanálise ampliada: ciclos de estudos

No Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS), em 2019, passamos a oferecer ciclos de estudos de psicanálise aos profissionais de saúde e educação. Cada ciclo conta com cinco encontros – os dois primeiros oferecidos na modalidade presencial –, objetivando proporcionar o conhecimento dos fundamentos do transtorno do espectro autista (TEA) a partir de contribuições da psicanálise.

Para o estudo sobre o TEA, inicialmente examinamos alguns conceitos desde os mais arcaicos do psiquismo humano e consideramos pertinente retomar as noções de metapsicologia freudiana, especificando o tripé dos modelos (dinâmico, tópico e econômico), bem como a constituição do sujeito (Narciso e Édipo) e as relações com o outro, necessárias à subjetivação da criança. Revisitamos a história do autismo, desde Bleuler, o primeiro a utilizar (em 1911) o termo autismo, referindo-se ao autoerotismo mencionado por Freud (1905), até as pesquisas mais recentes sobre autismos – Alvarez (1994), Laznik (2004), Dolto (2005), Kupfer (2020), Kupfer e Pinto (2010), Azevedo (2011), Jerusalinsky (2012), Maleval (2017), entre outros.

Em 2020, os ciclos de estudos de psicanálise previstos na forma presencial passaram a ser on-line , o que trouxe como benefício contemplar profissionais de diferentes estados brasileiros. Os temas envolvendo o TEA tiveram continuidade, porém outros assuntos também foram abordados, como: "Trauma e luto: repercussões e mudanças nas relações afetivas"; "Adoecimentos psíquicos na infância e na adolescência no século XXI"; "Constituição psíquica e sintomas na infância a partir de Winnicott e Dolto".

Para 2021, são previstos os temas: "Psicanálise: o arcaico e as psicopatologias atuais"; "Sofrimentos psíquicos em tempos de pandemia: da infância à velhice"; "A psicanálise e os teatros do corpo: os sofrimentos psicossomáticos". Todos os Ciclos são ministrados por psicanalistas do CPRS.

 

E os adolescentes na pandemia?

E quando se está em um período da vida no qual a convivência com os semelhantes é constituinte da identidade? Ficar em casa, quando se é adolescente, pode intensificar o sentimento de solidão. O sujeito humano, de forma geral, é solitário, o que não quer dizer que vivenciar a solidão seja algo fácil. Não existe "o" adolescente e, sim, múltiplas adolescências. Então, cada qual experimenta esse contexto pandêmico de forma singular, a partir dos recursos internos que já tem construídos dentro de si. Vejamos um recorte:

Léo,1 14 anos. A puberdade fez seu corpo crescer de tal forma que ficou muito maior que os demais. Sente-se estranho com esse corpo, e sua timidez confere um isolamento social maior ainda. Prefere os amigos virtuais, que conhece em chats de jogos. Conversa com a câmera fechada, não gosta de se mostrar (nem de se ver). Com 11 anos, passou a ter dificuldades para acompanhar os conteúdos escolares. Atrasos recorrentes na entrega das atividades e notas baixas culminaram em duas reprovações. Uma mudança de cidade, troca de escola e, após três semanas adaptando-se ao novo espaço, começou o isolamento. Lamenta a impossibilidade de conviver com os novos colegas, mas também deseja que o isolamento continue por muito tempo. Assim, não precisa submeter-se ao olhar dos outros. Neles projeta uma autoimagem bastante depreciada, sentida como persecutória e que, aos poucos, vamos compreendendo. Nas sessões on-line, a câmera é ligada raras vezes – para mostrar o gato Fred, seu quarto e suas ricas construções no Minecraft. Narrativas são construídas sobre angústias, fantasias, singularidades. Na escola, o desempenho melhora: entrega em dia as tarefas e mostra interesse pelo que aprende, compartilha com a analista curiosidades, aprendizagens e o orgulho por ter ensinado uma professora a utilizar um recurso virtual.

Se considerarmos o contexto contemporâneo no qual estamos mergulhados, vamos observar que um grupo considerável de adolescentes já se ocupa há vários anos de viver remotamente. Permanecer longos períodos no computador ou no video game era algo que nós, adultos, sentíamos como inadequado e tratávamos de corrigir. Hoje atendemos, estudamos, fazemos compras, lecionamos, "batemos papo" em família e até nos encontramos para brindar de forma remota. Nossos adolescentes, habituados com as tecnologias, orientam-nos sobre o uso das ferramentas, tornando possível ir adiante em meio à pandemia.

Dentro do sujeito que vivencia o processo adolescente, há uma criança e suas marcas constitutivas, produzidas no encontro com o outro. Essas marcas trazem desdobramentos nos distintos momentos do desenvolvimento e nas diferentes situações apresentadas pela vida:

[...] no outro se alimentam não somente nossas bocas senão nossas mentes; dele recebemos junto com o leite, o ódio e o amor, nossas preferências morais e nossos valores ideológicos. O outro está inscrito em nós e isso é inevitável (BLEICHMAR, 2005, p. 8).

Cardoso (2011), ao apresentar a obra Adolescentes, alerta para os grandes desafios da clínica contemporânea, apontando para uma radicalização do sofrimento individual. Trata-se de um tempo de desamparo coletivo, que, embora possa acenar para outras modalidades de existência, é, antes de tudo, uma condição de passagem que desperta intensas angústias e dor psíquica.

O autor afirma:

Observamos um nítido incremento de quadros patológicos de maior gravidade, em que se pode destacar, dentre outros aspectos, a prevalência das atuações e das passagens ao ato, o apelo a mecanismos defensivos mais arcaicos elementares, implicando precária elaboração, e que sinalizam, além de outras consequências, a intensificação de um estado de desamparo e de desorientação subjetiva, em especial entre adolescentes e adultos jovens (CARDOSO, 2011, p. 9).

Na sequência, outro fragmento casuístico:

Sara, 17 anos, é encaminhada por um profissional da saúde que a acompanha. Na chegada, anuncia que teve alguns breves suportes terapêuticos, logo interrompidos: não confia nas pessoas. Tudo indica um quadro limítrofe: tentativa de suicídio, dificuldades de relacionamento, enfrentamento de figuras de autoridade e a mãe não consegue convencê-la a fazer o que quer que seja. Vai estabelecendo laço e permanece na análise. Com a pandemia, os atendimentos tornam-se on-line. Sara resiste: falta aos encontros, manda mensagens dizendo que não quer conversar. Após 45 dias, os atendimentos presenciais são retomados com a utilização dos protocolos sanitários. Brigas constantes entre filha e mãe – com esta enfraquecida, as vontades da primeira prevalecem. Aos poucos, Sara interroga sobre o início de sua vida – assunto até então silenciado –, sobre a família de origem, os porquês da adoção. Imagina ter sido abandonada em alguma lixeira e conhece que foi buscada, com alguns meses, em um abrigo. Parece entrar em um período de maior estabilidade emocional, porém sempre brava com a impossibilidade de estar com amigos. Sente-se "roubada pelo vírus". Quando fica "pra baixo", precisa mudar radicalmente seu visual, para "se sentir gente". Mostra materiais que produz para uma rede social, onde gosta de ser admirada, curtida. Aquela Sara é desinibida, faz coisas engraçadas que divertem as pessoas. No fundo, acha-se feia, pensa que ninguém gosta dela, sente-se sozinha, tem raiva de si, da mãe, das pessoas, da analista também. Desta, teme (deseja?) a morte por Covid-19. Revela-se sedutora/manipuladora, mas também frágil, autodestrutiva. Quando seu personagem favorito em uma série morre, não diferencia realidade e ficção. Fere-se e é internada. Gosta da experiência: a comida é boa, diverte-se com as companhias, não precisa estar trancada em casa. Logo após receber alta, cria condições para uma nova internação. Retorna para a análise após a alta, muitas emoções são despertadas, e sentimentos contratransferenciais intensos precisam ser elaborados: impotência, validade do trabalho, será a morte simbólica da analista?

Quem é Sara, afinal? Quais os limites dessa dupla analítica? Permanece nas sessões, mesmo que ameace rupturas. Parece ter encontrado ali algo que faz sentido, que suporta suas angústias, em que pode confiar, apesar dos percalços impostos pela pandemia e pelas fantasias de morte/abandono a ela agregados.

Freud ([;1937] 2018 p. 330), em Construções em análise, compara o trabalho do analista ao do arqueólogo, dizendo que os desafios são semelhantes, com a diferença que o material com o qual trabalha o analista não é algo destruído, mas algo que ainda está vivo. A possibilidade de "sintonizar os fragmentos de um passado soterrado" (SCHOR, 2017, p. 62) parece estar inteiramente vinculada ao resgate do sentido das experiências vividas, por meio das construções narrativas oportunizadas pela dupla analítica.

 

Do trauma à possibilidade de elaboração

Vivemos uma espécie de trauma social, uma vez que não temos representação simbólica em nosso psiquismo no que se refere ao enfrentamento de uma pandemia. Como refere Minerbo (2016), de acordo com a definição oficial, metapsicológica, dada por Freud em 1920, trauma é um afluxo excessivo de energia que rompe o escudo protetor, invade o aparelho psíquico e o desorganiza.

Ao longo de quase um ano de pandemia, a procura por atendimento psicanalítico em função das consequências desse contexto disruptivo aumentou exponencialmente. Sintomas melancólicos, crises de ansiedade, desintegração do eu, entre outras formas de sofrimento emocional, apresentam-se agudizadas. Perdas e privações das mais diversas naturezas têm sido o fio condutor da existência desde março de 2020. A escuta dessas formações inconscientes tem escancarado um profundo sentimento de desamparo e uma enorme dificuldade na elaboração de tantos lutos.

Outeiral e Godoy (2003, p. 5) citam o texto de Freud (1926) sobre a inibição, sintoma e angústia, que passa a compreender o desamparo como a "[;...] base do desespero do homem quando confrontado com a precariedade de sua existência". Freud concebe a angústia como uma reação ao perigo, que, localizada no ego, assume a função de proteger o psiquismo contra o acúmulo de excitação.

Para Outeiral e Godoy (2003), a compreensão do desamparo funda-se a partir de uma condição biológica objetiva de incapacidade do bebê de satisfazer por si só suas necessidades. No entanto, a condição de desamparo representa também a condição de abertura para o outro, indispensável na constituição psíquica. O retorno à condição de desamparo causado pelo perigo real de um micro-organismo ainda muito desconhecido e que ameaça a continuidade da existência torna-se um dispositivo para que o indivíduo que sofre procure um espaço de escuta. Podemos pensar que o paciente busca e encontra na pessoa do analista a mesma segurança que o bebê (tomado pelo desamparo primordial) encontra na figura da mãe.

Na medida em que nos colocamos nesse espaço de escutar a dor e o desamparo do outro, ainda que de forma on-line e muitas vezes só por conversas de áudio, nos é apresentada a possibilidade de tecer novos afetos, criar narrativas e representações simbólicas que possam ser continentes com o momento que vivenciamos.

Minerbo (2016, p. 32) nos diz que

[...] assim como o aparelho digestivo não pode fazer outra coisa a não ser tentar digerir o que comemos, o aparelho psíquico não pode fazer outra coisa a não ser tentar simbolizar – isto é, dar sentido ao que vivemos.

Julieta Jerusalinsky (2020) diz que somos escutadores da angústia – sentimento mais difuso que o medo, já que este, pelo menos, é um temor de algo específico. A angústia é mais avassaladora, invade, tira o sono, causa palpitações, toma o corpo de aflição.

A autora nos mostra que, quando as coordenadas simbólicas que sustentam a vida de alguém se fragilizam, torna-se difícil imaginar um futuro. Ainda que nunca saibamos do futuro, imaginar um é imprescindível para sustentar um presente. A escuta que, ao longo deste tempo de pandemia, vem sendo oferecida por nós, em um trabalho árduo e intenso, entra aqui como uma possibilidade de reconstruir a ponte entre o presente e a possibilidade de um futuro.

 

Tecendo considerações

A psicanálise, intervenção clínica criada por Freud no final do século XIX, só permanece eficaz naquilo que se propõe justamente por sua capacidade de acolher as novas demandas de cada época. Entretanto, como vimos, 2020 trouxe significativos desafios para a prática psicanalítica, demandando permanente reflexão acerca dos desdobramentos dos novos formatos de intervenção.

Com suas clínicas públicas que estiveram ativas de 1918 a 1938, Freud expandiu para além da clínica a aplicação de suas descobertas, no sentido da complexidade histórico-político-social. A psicanálise ampliada, uma abordagem de intervenção no atendimento terapêutico da clínica ampliada, envolve possibilidades de transformação do sujeito e da sociedade. Presente como uma práxis integrada no campo da prevenção e da promoção em saúde mental, sua centralidade é no sujeito em seu contexto. O compromisso é com o coletivo. Tal modalidade compõe saberes e práticas de teoria crítica da realidade para atender às mudanças sociais.

Nos ciclos de estudos de psicanálise, percebemos, neste período adverso, uma possibilidade de contemplar pessoas que não poderiam participar de forma presencial, em função da distância. Além da explanação dos assuntos previstos para cada encontro, eram oferecidos textos para leitura prévia, sugeridos filmes, e abria-se espaço para pequenos debates, trocas, relatos, bem como uma escuta de pensar alternativas em grupo. Vale ressaltar a contribuição advinda do conceito de "depressão Covid- 19" (NASIO, 2021), que caracteriza uma depressão acrescida de muita angústia.

Por meio dos atendimentos on-line, nós, psicanalistas, que até então lidávamos com as fantasias e o mundo interno dos pacientes, repentinamente, entramos na intimidade de sua casa, conhecendo seus animais de estimação e, muitas vezes, também outros membros da família. Na medida em que precisaram ser retomados presencialmente, alguns atendimentos também foram feitos a partir da estranheza das máscaras e dos novos protocolos de higiene. Novos atendimentos iniciaram nesse meio-tempo, atravessados ou pela distância física, ou por parte dos nossos rostos cobertos.

Diante desse panorama, nos perguntamos se nossa prática será a mesma quando a pandemia acabar! Arriscaríamos dizer que não. A experiência e a construção de novas ferramentas que enriquecem nossa gama de intervenções vêm nos tornando mais sensíveis às dores do outro.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Magda Maria Colao
E-mail: magdacolao@gmail.com

Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski
E-mail: mwagnerpokorski@gmail.com

Waleska Pessato Farenzena Fochesatto
E-mail: waleska.pessato@terra.com.br

Anelise Scheuer Rabuske
E-mail: anerab@hotmail.com

Recebido em: 15/12/2020
Aprovado em: 30/12/2020

 

 

SOBRE AS AUTORAS

Magda Maria Colao
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Mestre em aconselhamento psicopedagógico pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Psicóloga, pedagoga, orientadora educacional.
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).
Professora adjunta da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Integrante do Grupo de Pesquisa Internacional de Formação de Professores do Mercosul/Cone Sul.
Linha de pesquisa: Trabalho, movimentos sociais e educação (FACED/UFRGS)
Parecerista da Revista Direito Ambiental e Sociedade, Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS).

Maria Melania Wagner Franckowiak Pokorski
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).
Psicopedagoga titular.
Mestre em educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Doutora em Psicologia Social pela Universidad Argentina J. Kennedy.
Pós-doutoranda em Psicologia Social pela Universidad Argentina J. Kennedy.
Autora de artigos sobre psicopedagogia e psicanálise.
Autora do livro O mutismo seletivo no espaço escolar (Veranópolis, RS: Diálogo Freiriano, 2019).

Waleska Pessato Farenzena Fochesatto
Psicóloga.
Psicanalista membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).
Mestre em Ciências da Saúde pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Pesquisadora na área de envelhecimento humano no Projeto Veranópolis: envelhecimento, longevidade e qualidade de vida.
Autora do livro infantil Ana Lise e o menino de olhos verdes.

Anelise Scheuer Rabuske
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).
Psicóloga clínica desde 1998.
Mestre em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Lecionou na Faculdade São Judas Tadeu, no Instituto Superior de Educação Ivoti (graduação) e na Unisinos (pós-graduação).
Atualmente dedica-se à clínica psicanalítica nas cidades de Dois Irmãos e Ivoti (RS).
Coordenadora do Seminário Freud V na Formação Psicanalítica do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).

 

 

1 Os nomes utilizados nos recortes de casuísticas são fictícios bem como as idades e outros dados, criando condições para a preservação do sigilo em torno das identidades envolvidas. Ambos os recortes foram autorizados formalmente pela família.

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