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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437On-line version ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.54 Belo Horizonte Jul./Dec. 2020

 

PSICANÁLISE ON-LINE E PANDEMIA

 

Será que dá para suspender o céu? Reflexões sobre a clínica on-line, subjetivação e sonhos1

 

Is it possible to suspend the sky? Reflections about on-line clinic, subjectivity and dreams

 

 

Márcia Alves da Rocha

I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições indígenas. Suspender o céu é ampliar o horizonte existencial, é enriquecer as nossas subjetividades, nos ensina o líder indígena Ailton Krenak. Tomando como ponto de partida os transgeracionais ensinamentos da cultura Krenak e, ao mesmo tempo, ancorado na clínica psicanalítica, este trabalho apresenta uma reflexão sobre os desafios da clínica nos tempos pandêmicos e de psicanálise on-line: será que é possível suspender o céu, para ampliar o horizonte existencial? As reflexões propostas nos levam às postulações winnicottianas a respeito do medo do colapso e ao pensamento de Thomas Ogden sobre a posição autista contígua, bem como à importância da experiência analítica como um meio para que os analisandos consigam sonhar seus sonhos interrompidos ou ainda não sonhados.

Palavras-chave: Clínica psicanalítica on-line, Medo do colapso, Posição autista contígua, Terceiro analítico, Sonhos.


ABSTRACT

Singing, dancing and experiencing the magical experience of suspending the sky is common in many indigenous traditions. Suspending the sky is to enlarge our existential horizon, is enriching our subjectivities, says the indigenous leader Ailton Krenak. Taking Krenak's transgenerational teachings as a starting point, but prioritary anchored in the psychoanalytic clinic, the article proposes a reflection about the challenges of the on-line psychoanalnalysis clinic in pandemic times: is it possible to suspend the sky, to expand the existential horizon? The reflections lead us to Winnicott's postulations related to the fear of breakdown and to Thomas Ogden's postulations related to the autistic contiguous position, as well as the importance of the analytical experience as a means for analysands to be able to dream their dreams interrupted or not yet dreamed.

Keywords: On-line psychoanalytic clinic, Fear of breakdown, Autistic contiguous position, The analytic third, Dreams.


 

Tenho sangrado demais
Tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro
Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro
Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro

Emicida

 

Introdução

Este trabalho foi originalmente apresentado na XI Jornada do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção RJ, realizada on-line nos dias 13 e 14 de novembro de 2020. O encontro teve como tema central a travessia das novas veredas que se apresentavam na clínica psicanalítica on-line. Como psicanalistas e, acima de tudo, como cidadãos, muitos fantasmas e angústias nos assombraram ao longo de 2020. Muitos foram os atravessamentos inomináveis que nos atropelaram com a Covid-19, o caos da saúde da nossa gente, o negacionismo, a impossibilidade dos abraços e dos rituais de despedidas tão necessários ao luto, entre outras tantas angústias por muitas vezes não possíveis de ser elaboradas.

Uma das frases que mais ouvi na clínica em 2020 foi: "quando tudo isso passar...". "Isso". Adolescentes, adultos, profissionais da saúde, desempregados. Creio que em todas as direções a pandemia foi ocupando esse lugar do inominável, onde não há forma de identificar claramente o sentido, fica essa sensação de "isso" rondando o ego, um emaranhado de sensações e acontecimentos por vezes não decodificados. Mas sem que eu houvesse propositalmente planejado, o trabalho que redigi fala de alguma forma sobre esperança, sobre a potência do encontro analítico, sobre a potência do "sonhar junto".

Curiosamente, a reflexão que me motivou a pensar sobre os pontos que abordo a seguir não é oriunda da psicanálise. Meu ponto de partida advém de uma instigante fala de Ailton Krenak, ativista dos direitos indígenas, nascido na reserva das famílias Krenak, na região do vale do rio Doce – área profundamente afetada pela extração de minérios. Nos diz o líder indígena: "Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo para respirar" (KRENAK, 2019, p. 28).

Em sua narrativa ancorada na forte ancestralidade presente na cultura Krenak, Ailton nos ensina que suspender o céu significa ampliar a percepção, a subjetividade, o horizonte existencial.

Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades – as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado (KRENAK, 2019, p. 32).

Creio que vale aqui abrir um parêntese para falar sobre o significado no nome Krenak. A sílaba "kre" significa cabeça, já a segunda "nak", significa terra. Ailton nos ensina, então, que Krenak significa a herança recebida da terra, dos antepassados, das memórias de origem, de um povo que não consegue se conceber sem uma profunda comunhão com a terra.

Na cultura Krenak, se conectar com a terra significa se conectar com o rio e a montanha, e significa também se conectar com os antepassados através dos sonhos. Uma prática que é percebida em diferentes culturas, de

[...] reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as escolhas do dia a dia (KRENAK, 2019, p. 50-51).

Ler e ouvir Ailton Krenak, sem sombra de dúvida, suspendeu o meu céu nesses tempos pandêmicos. Assistir suas lives e ler seus textos ampliaram o meu horizonte e me nutriram de doses de pulsão de vida necessárias e urgentes no isolamento do quarto que virou meu "novo" consultório.

Mas não posso negar: sinto uma falta especial da experiência sensorial da clínica, de sentar na minha poltrona no consultório, do cheiro de lavanda, da música na sala de espera, do som da campainha tocando e de ver meus analisandos pessoalmente, com todas as nuances de sua expressão corporal.

Estou certa de que aprendemos muito – e seguimos aprendendo – com as novas dinâmicas que se apresentam com o atendimento on-line. Aprendemos diariamente formas de nos fazermos "corporalmente" presentes aos nossos analisandos, ainda que simplesmente através de nossa voz ou nossa imagem na tela do computador ou do celular.

Ailton Krenak nos diz que o nosso tempo é especialista em criar ausências. Especialista em criar ausência de subjetividade.

Refletindo sobre seus transgeracionais ensinamentos, me pergunto sobre os impactos da pandemia na constituição da subjetividade:

Será que em meio ao caos dá para suspender o céu, para ampliar o horizonte existencial?

Que sonhos são possíveis de ser sonhados diante de um horizonte pandêmico?

Na esteira das reflexões causadas a partir dessas indagações, os parágrafos que se seguem refletem meus pensamentos acerca da experiência de ser – ou de vir a ser – na constituição da subjetividade, sobre a importância de sonhar e sobre a possibilidade do analista de "sonhar com" seu analisando.

 

É possível ampliar o horizonte existencial?

Para ilustrar meu pensamento, penso ser válido compartilhar fragmentos de um atendimento clínico. Chamarei o analisando de Júlio. Júlio chegou em meu consultório cerca de um ano antes do início da pandemia de Covid-19, contando que lutava contra um diagnóstico psiquiátrico de depressão e ansiedade. Sentia muita falta de ar quando saía de casa. Paradoxalmente, ambientes a céu aberto lhe traziam sensação de sufocamento. Isso tanto o apavorava quanto o paralisava. Penso que seu pedido era para que eu o ajudasse a empurrar o céu, a ampliar sua subjetividade, para que ele finalmente pudesse voltar a respirar.

Em termos winnicottianos, eu sentia em Júlio um forte medo do colapso, um receio de perder as delimitações do seu self.

A respeito do medo do colapso, Winnicott (1994, p. 70) nos diz:

Utilizei intencionalmente a expressão "colapso" por ser bastante vaga e por poder significar o fracasso de uma organização de defesa. Mas perguntamos de imediato: uma defesa contra o quê? E isto nos conduz ao significado mais profundo do termo, uma vez que precisamos utilizar a palavra "colapso" para descrever o impensável estado de coisas subjacente à organização defensiva.

Winnicott complementa seu pensamento esclarecendo que nas psiconeuroses é a ansiedade de castração que está por trás das defesas, mas nos fenômenos mais psicóticos (arriscando dizer, por nossa conta, nos fenômenos mais limítrofes), o que está em jogo é um colapso do estabelecimento de um self unitário.

O ego organiza defesas contra o colapso da organização do ego e é esta organização a ameaçada (WINNICOTT, 1994, p. 71).

Para Winnicott, o medo de colapsar traduz um receio do sujeito de retornar às agonias primitivas, de retornar ao estágio de impossibilidade de diferenciação do "eu" e do "não eu". Para o autor, o termo "ansiedade" não é suficientemente forte para descrever seu pensamento acerca das agonias primitivas, que englobam o receio de retornar a um estado de não integração e de cair para sempre, além do receio de perda do conluio psicossomático, da perda do senso do real e da perda da capacidade de se relacionar com objetos.

Considerando-se as postulações winnicottianas, eu acrescentaria que minhas primeiras impressões com Júlio foram de que ele sentia um forte receio de perder suas sensações de demarcação sensorial. Perder essa delimitação seria o equivalente a vivenciar o terror de cair num espaço sem forma e sem fim. Para se proteger de uma angústia não localizada e, portanto, não nomeada, Júlio precisou lançar mão dos recursos corporais como forma de defesa e de organização da experiência de ser.

Em O ego e o id, Freud ([1923] 1996, p. 39-40) já nos dizia que

[...] o ego é, primeiro e acima de tudo um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície.

Em uma nota de rodapé acrescentada posteriormente, ele complementa:

[...] o ego em última análise deriva das sensações corporais, principalmente das que se originam da superfície do corpo. Ele pode ser assim encarado como uma projeção mental da superfície do corpo, além de, como vimos acima, representar as superfícies do aparelho mental (FREUD, [1923] 1996, p. 40).

Thomas Ogden (1989), tomando como base a premissa freudiana de que o ego tem origem na superfície corporal – e ao mesmo tempo inspirado nos pensamentos de Melanie Klein, Esther Bick, Donald Meltzer e Francis Tustin – propõe a postulação de uma organização psicológica que denominou de "posição autista contígua" caracterizando-a como o modo mais primitivo, pré-simbólico e sensorial de atribuir sentido à experiência.

Em sua postulação Ogden utiliza a palavra "autista" para designar a mais primitiva organização psicológica de que o sujeito lança mão. Mas não faz isso para alocar sua proposição no espectro autista. Faz uso do termo para fazer uma correlação com os tipos de defesa hipertrofiados do autismo e do modo de atribuir sentido à experiência e às relações objetais.

A posição autista contigua está associada a um modo de produzir experiência dominado por sensações e caracterizado por impressões protossimbólicas da experiência sensorial que, em conjunto, ajudam a constituir uma vivência de superfícies delimitadas. O caráter rítmico e as experiências de contiguidade sensorial (especialmente na superfície da pele) contribuem para uma sensação elementar de contiguidade do ser através do tempo (OGDEN, 1996, p. 32).

Na posição autista contígua a produção de experiências é dominada por sensações, por uma impossibilidade do sujeito em fazer uma mediação entre a sensação de subjetividade e a própria experiência sensorial vivida.

Nas palavras de Ogden (1996, p. 135):

[...] num modo autista contiguo, a angústia predominante é a do colapso da sensação de demarcação sensorial, sobre a qual estão baseados os rudimentos da experiência de um self coeso.

Voltando novamente a Júlio, destaco que suas sensações de falta de ar – assim como outros recursos corporais de que inconscientemente precisou lançar mão, como o receio de não ser mais capaz de conter a urina, por exemplo – passaram a fazer parte de sua vida, e ele se sentia incapaz de compreender a invasão de sensações que o dominavam. Era como se ele sentisse que estava perdendo suas bordas sensoriais, ele se sentia perdendo a delimitação de seu self.

Em seu primeiro ano de análise, Júlio foi corajosamente se permitindo mergulhar em sua história pessoal e nos emaranhados familiares. Nessa fase sentiu mais claramente a necessidade de ficar consigo mesmo e, aos poucos, foi buscando formas de se apaziguar com as incômodas sensações corporais que o invadiam, tentando compreender que elas estavam lhe comunicando algo. Chegado o final do primeiro ano de seu processo analítico, as suas sensações de falta de ar quando estava fora de casa estavam menos presentes. Caminhadas ao ar livre já não lhe eram tão sufocantes. Comemorávamos juntos cada passeio na beira da praia, cada ida ao banco ou saída para almoçar no restaurante perto de casa.

O ano 2020 começou e com ele novas oportunidades de trabalho se descortinaram para Júlio. Apesar de ainda se sentir mais confortável em casa – sob a proteção do contorno proporcionado pelas paredes do lar –, já se sentia mais apto a enfrentar os desafios das saídas para trabalhar com menos sofrimento. Quando março chegou, e o isolamento social em decorrência da pandemia se fez necessário, Júlio ponderou: "Mas logo agora que eu tinha voltado a sair de casa com mais conforto? Logo agora que eu tinha voltado a respirar?".

Seu latente receio de retornar ao mesmo estado de angústia em que se encontrara um ano antes, me fez pensar nos impactantes versos da música Amarelo de Emicida: "Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro".

Elaborei as sensações que a lembrança desses versos me suscitara e fiz uma devolutiva para Júlio: sua sensação quando havia começado a análise era de perda da existência, mas agora já lhe era possível recorrer a outros instrumentos internos para não sentir a iminência do colapso e conter o medo de parar de respirar, assim como conter o pavor de cair num espaço sem fim.

Em meio às crises que culminavam com seus episódios de falta de ar, Júlio vivenciava sensações de não existência como parte do seu mecanismo de defesa.

Mas, conforme nos disse Winnicott (1994, p. 76, itálico do autor),

[...] pode haver um elemento positivo em tudo isso, ou seja, um elemento que não é uma defesa. Pode-se dizer que somente a partir da não existência é que a existência pode começar.

Mais à frente, no mesmo texto, o autor complementa que

[...] o indivíduo não pode desenvolver-se a partir de uma raiz de ego se esta estiver divorciada da experiência psicossomática e do narcisismo primário (WINNICOTT, 1994, p. 76).

Partindo desse pressuposto winnicottiano, penso que as experiências psicossomáticas de falta de ar de Júlio foram a saída que ele encontrara para seu processo de integração, de volta da sensação de existência.

Mas Júlio tinha receio de regredir em suas conquistas, de voltar a se sentir sem ar com o sufocante mundo externo que se apresentava com a chegada da pandemia. Inesperadamente, a doença que paralisava o mundo tinha consequências respiratórias severas e sugeriam uma proximidade muito dura com o sintoma que muito havia lutado para combater. Tinha receio de que o pavor do vírus o asfixiasse novamente.

Mas isso não aconteceu. Suas delimitações de "dentro" e "fora" estavam mais estabelecidas, e sua grande descoberta foi que já tinha vivenciado a sua "pandemia pessoal", já havia vivenciado suas próprias condições de isolamento social e se deparado com a incômoda descoberta de sua impotência. Sim, era possível para Júlio suspender o céu, era possível respirar mesmo em meio às sufocantes notícias da pandemia.

 

Sonhando os sonhos não sonhados

Júlio é de longe o analisando que mais me trouxe sonhos. Com ele vou desde às postulações freudianas acerca dos sonhos, ao Oráculo da noite, de Sidarta Ribeiro (2019). Cem por cento de seus sonhos – desde que iniciamos nosso percurso – sempre foram sobre casas. Nem sempre a mesma casa, nem sempre o mesmo bairro ou cidade, nem sempre os mesmos moradores, mas casas, sempre casas.

Freud ([1916] 1996, p. 215) nos diz que "[...] a elaboração onírica consiste, essencialmente, na transformação dos pensamentos em uma experiência alucinatória".

Ainda a respeito dos sonhos, Freud ([1917] 1996, p. 236) vai nos dizer:

A conclusão do processo onírico consiste no conteúdo de pensamento – regressivamente transformado e elaborado numa fantasia carregada de desejo –, tornando-se consciente como uma percepção sensorial; enquanto isso ocorre, ele passa por uma revisão secundária, à qual todo conceito perceptual está sujeito.

Freud apontou para a existência de sentidos ocultos ligados à experiência subjetiva do sonhador, destacando os sonhos como um importante canal para a investigação do inconsciente. Ribeiro (2019), por sua vez, enfatiza que a reflexão acerca dos sonhos deve considerar os diferentes estados de sono.

Ribeiro (2019, p. 35) também nos dá conta de que

[...] é curioso que a palavra em alemão para sonho – Traum – se pareça tanto com trauma, que, em grego, com etimologia bem distinta, quer dizer ferida. Memórias são cicatrizes, e sua ativação durante o sono possui causa e significado.

Inicialmente os sonhos das casas de Júlio reproduziam simbolicamente agonias muito primitivas. Ora as casas não tinham telhado e eram invadidas por chuvas torrenciais, ora não tinham janelas, com ambientes irrespiráveis e sufocantes. Sem que houvesse sido uma demanda claramente (ou unicamente) minha, passo a passo nossa dinâmica semanal ia sendo pautada por seus sonhos. No nosso interjogo tacitamente estabelecido, os sonhos passaram a ser nossa principal fonte de comunicação.

Acerca dos sonhos, Thomas Ogden (2010) tem uma inspiradora postulação. O autor defende que a capacidade onírica tem a potência de criar a diferença entre mente consciente e mente inconsciente. Ou seja, o indivíduo que não é capaz de sonhar não consegue diferenciar a experiência consciente da experiência inconsciente. Não consegue diferenciar se está acordado – percebendo a realidade – ou se está dormindo e sonhando.

Uma pessoa consulta um psicanalista porque está sofrendo emocionalmente sem saber, ela é incapaz de sonhar (isto é, é incapaz de elaboração psicológica inconsciente) ou fica tão perturbada com o que está sonhando que seu sonho é interrompido (OGDEN, 2010, p. 28).

Ogden sugere que os analisandos buscam a análise para obter ajuda para sonhar seus sonhos não sonhados ou para terminarem de sonhar seus pesadelos ou sonhos interrompidos.

E complementa seu pensamento:

Durante sua participação no sonhar os sonhos não sonhados e interrompidos do paciente, o analista vem a conhecer o paciente de um modo e em uma profundidade que podem lhe permitir dizer algo ao paciente que seja verdadeiro para a experiência emocional consciente e inconsciente que está ocorrendo no relacionamento analítico em um dado momento. O que o analista diz deve ser utilizável pelo paciente para propósitos de elaboração psicológica consciente e inconsciente, ou seja, para sonhar sua própria experiência, deste modo sonhando-se existir mais plenamente (OGDEN, 2010, p. 28).

Ogden nos diz que, à medida que é incapaz de sonhar sua experiência emocional, o indivíduo é incapaz de mudar ou de tornar-se diferente de quem tem sido. Para o autor, tanto o paciente quanto o analista se engajam na experiência analítica com o objetivo de gerar condições para que o analisando – com a participação do analista – possa se tornar mais capaz de sonhar seus sonhos não sonhados ou seus sonhos interrompidos.

O autor defende que

[...] o pensamento psicanalítico contemporâneo está aproximando-se de um ponto em que não se pode mais falar simplesmente do analista e do analisando como sujeitos separados que tomam um ao outro como objeto (OGDEN, 1996, p. 58).

Assim, cunhando o conceito do "terceiro analítico" o autor propõe que os sonhos sonhados pelo paciente são, ao mesmo tempo, seus próprios sonhos e devaneios, bem como os sonhos de um terceiro sujeito, que é simultaneamente o analista e o paciente e, ao mesmo tempo, nenhum deles.

Para Ogden, tanto na relação mãe-bebê quanto na relação analista-analisando, não se trata de desembaraçar os elementos constitutivos da relação. Considerando-se a interdependência entre sujeito e objeto, a tarefa analítica pressupõe uma tentativa de descrever a natureza específica da experiência de inter-relação da subjetividade individual e da intersubjetividade. Para o autor, portanto, a ideia do analista como uma tela branca, neutra para as projeções do paciente, não cabe nas concepções contemporâneas a respeito do processo analítico.

A situação analítica, como a percebo, é composta de três sujeitos em conversação inconsciente entre si: o paciente e o analista como sujeitos separados e o "terceiro analítico" intersubjetivo. O "terceiro analítico" intersubjetivo inconsciente está para sempre no processo de vir a ser dentro do campo de forças emocionais criado pela interação do inconsciente do paciente e do analista. O terceiro "sujeito da análise" é um sujeito construído conjunta mas assimetricamente pelo par analítico. Quando o processo analítico é uma "preocupação constante" (WINNICOTT, 1964), nem o analista nem o analisando podem alegar serem os únicos autores de seus "próprios" sonhos/devaneios (OGDEN, 2010, p. 24).

Ogden vai nos dizer ainda que, durante a participação no sonhar os sonhos não sonhados ou interrompidos do paciente, o analista vem a conhecer o paciente de um modo que possa dizer ao paciente algo que seja verdadeiro para a experiência emocional consciente e inconsciente que está ocorrendo no relacionamento analítico naquele momento.

Recordando da sessão em que compartilhei com Júlio os versos de Emicida que me vieram à mente, penso que o terceiro analítico pode ter se "presentificado" em nossa dinâmica através desses versos. Através da metáfora expressa na letra da música, pude ajudar Júlio a compreender que suas sensações de despersonalização já poderiam ficar no passado.

Refletindo sobre a compreensão que Ogden tem dos sonhos – ao sugerir que os analisandos nos procuram para buscar ajuda para terminarem de sonhar seus pesadelos e, assim, buscarem um caminho de elaboração rumo à possibilidade de sonhar os sonhos ainda não sonhados – penso na potência do encontro analítico ao lembrar das significativas mudanças de enredo nos sonhos de Júlio. Ainda que a temática central continuasse a ser sobre casas, seus sonhos deixaram de ter casas inundadas por terríveis tempestades ou avassaladoras enchentes, assim como deixaram de ser claustrofóbicas e sufocantes.

Para Ogden, a meta da psicanálise não é simplesmente sonhar os sonhos não sonhados e interrompidos do paciente no setting analítico. A participação do analista no sonhar a experiência anteriormente insonhável do paciente é um meio para um fim, ou seja, é proporcionar ao paciente que ele desenvolva sua capacidade de sonhar sua experiência sozinho.

Curiosamente, foi em paralelo ao caos pandêmico mundial que as casas dos sonhos de Júlio passaram a apresentar telhados sólidos e protetores. Além disso, deixaram de ser claustrofóbicas e passaram a apresentar grandes janelas que, quando abertas, apontavam para amplas e belas paisagens. De alguma forma, mesmo diante dos cenários inomináveis impostos pela pandemia, Júlio conseguiu encontrar formas de sonhar novos sonhos, de elaborar suas angústias mais profundas. Sim, era possível não só suspender o céu, como também sonhar sonhos ainda não sonhados.

 

Considerações finais

Conforme citei no começo do texto, o ponto de partida para elaborar este trabalho se deu a partir das reflexões que os ensinamentos transgeracionais de Ailton Krenak me suscitaram. Em minha perspectiva, a compreensão da cultura indígena sobre a suspensão do céu como forma de ampliação da subjetividade teve muita relevância para as minhas formas de lidar com a clínica psicanalítica diante do horizonte pandêmico.

Particularmente, eu já me aventurava em atendimentos via Skype, mas de forma muito reduzida, restrita a pacientes que por motivos diversos mudaram de cidade e demonstraram interesse em dar continuidade ao seu processo analítico. Mas me deparar com a necessidade urgente de transferir toda a minha clínica para o modo on-line me fez pensar que alcances seriam possíveis ao atendimento psicanalítico diante do cenário que se apresentava, especialmente nos casos de pacientes mais regredidos.

Escrever estas páginas, em alguma medida, foi uma forma que encontrei para elaborar meus próprios questionamentos de que é possível sim nos fazermos presentes aos nossos analisandos ainda que mediados por uma tela ou linha telefônica. E sim, o encontro analítico em toda a sua potência também pode acontecer na emergência da clínica on-line imposta pela pandemia.

Compartilhei fragmentos clínicos de um analisando que parecia me pedir ajuda para "suspender o céu e respirar". Seu horizonte existencial colapsava e a iminência das agonias primitivas lhe davam sensações de despersonalização. Como mecanismo de defesa, ele precisou recorrer a um modo mais primitivo, pré-simbólico e sensorial de atribuir sentido à experiência.

Talvez conectar os ensinamentos da cultura indígena com elaborações psicanalíticas seja um tanto quanto inventivo. Mas, além das reflexões acerca da constituição da subjetividade, a cultura indígena também me suscita elaborações acerca da importância dos sonhos. Assim como a cultura Krenak valoriza a relevância dos sonhos para a conexão com o passado – e o consequente encontro de respostas para os caminhos futuros –, também encontramos outros registros de culturas indígenas relatando a importância dos sonhos.

O xamã yanomami e ativista político Davi Kopenawa nos diz:

[...] quando queremos conhecer as coisas, esforçamo-nos para vê-las no sonho. Esse é o nosso modo de ganhar conhecimento (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 465).

Ailton Krenak nos diz que os sonhos são o lugar da visão, um outro lugar que a gente pode habitar, um lugar que se abre para outras visões da vida não limitada, um lugar onde, sim, é possível suspender o céu. Através dos sonhos podemos habitar um lugar além dessa terra dura, nos diz Ailton Krenak.

Em minha dinâmica com Júlio, que no início da pandemia me deixava apreensiva quanto à viabilidade de acontecer on-line – devido ao estado regredido em que ele se encontrava –, percebo que, para sonhar junto, não é necessário nada mais do que o par analista-analisando. Nada mais do que a disponibilidade mútua para o engajamento na experiência analítica, em que o terceiro analítico intersubjetivo encontra espaço para se presentificar, auxiliando o analisando a sonhar seus sonhos interrompidos ou ainda não sonhados.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: marcia_a_rocha@hotmail.com

Recebido em: 30/11/2020
Aprovado em: 10/12/2020

 

 

SOBRE A AUTORA

Márcia Alves da Rocha
Graduada em comunicação social.
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Professora do curso de formação psicanalítica do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do CBP-RJ.
Integrante do Grupo de Trabalho sobre Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ.

 

 

1 Trabalho apresentado na XI Jornada de Psicanálise A clínica psicanalítica on-line: travessia de novas veredas, do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro, em 13-14 nov. 2020, no Rio de Janeiro (RJ), por meio da plataforma Zoom.

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