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Estudos de Psicanálise

versión impresa ISSN 0100-3437versión On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.54 Belo Horizonte jul./dic. 2020

 

PSICANÁLISE ON-LINE E PANDEMIA

 

Análise on-line! Considerações sobre a transferência1

 

On-line analysis! Considerations on transference

 

 

Maria Mazzarello Cotta Ribeiro

I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

2020, um ano atípico! A Covid-19 instalou um estado pandêmico que exigiu da população uma medida radical, o isolamento social. Psicanalistas e analisandos se viram impedidos de continuar as análises presenciais. Assim, foi 'inventado' o dispositivo de psicanálise on-line. Sendo uma prática sem precedentes, precisou de novos estudos acerca de sua viabilidade. Com esse propósito, procuramos identificar se seria possível, nesse novo dispositivo psicanalítico, a instalação e sustentação da transferência através dos objetos pulsionais, voz e olhar, presentes, por excelência, no formato virtual.

Palavras-chave: Covid-19, Luto, Psicanálise on-line, Transferência, Resistência, Objetos pulsionais: voz, olhar.


ABSTRACT

2020, an atypical year! Covid-19 has installed a pandemic state that demanded a radical measure from the population, such as social isolation. Psychoanalysts and analysands have been prevented from continuing person-to-person analysis. So, the on-line analysis device was 'invented'. Being an unprecedented practice, it needed new studies about its viability. For this purpose we seek to identify wether it would be possible, in this new psychoanalytic device, to install and sustain the transference through the pulsional objects, voice and look, wich are present, par excellence, in the virtual format.

Keywords: Covid-19, Mourning, On-line Psychoanalysis, Transference, Resistence, Pulsional Objects: voice and look.


 

A experiência consiste em experimentar
o que não desejávamos experimentar!

(FREUD, [1905] 1977)

 

O ano 2020 foi atípico para todos nós! Com a disseminação da pandemia da Covid-19, incontrolada e de características desconhecidas, o mundo, em pânico, se viu obrigado ao isolamento social. A humanidade, apesar de ter vivido tantas atrocidades, não se tornou imune à dor e à morte.

O nosso imaginário saltou de representações romanceadas sobre a China e a Itália, para o real de um número crescente de mortes solitárias em um CTI, às vezes improvisado, sem despedidas de familiares, sepultamentos restritos socialmente e um luto adverso, vividos também no Brasil, assim como no outros países.

A única coisa conhecida era que a condição de sermos humanos era a nossa maior vulnerabilidade! Desta certeza adveio suspensão de atividades presencias em sua maioria, entre outras providências.

Análises interrompidas, analistas e analisandos suspensos do setting psicanalítico! Esse foi o fator desencadeante para a "invenção" do dispositivo de análises on-line!, diferindo de atendimentos virtuais esporádicos que, uns e outros, fazíamos em momentos especiais: longas viagens, doenças incapacitantes, mudanças territoriais etc.

Do legado de Freud, assimilamos, até com bastante intimidade, o setting psicanalítico, onde psicanalista e analisando se encontram presencialmente, tendo como prerrogativas físicas, uma poltrona e um divã para a palavra e sua escuta.

Com tantos meses tateando na construção de uma nova forma de atendimento psicanalítico, será que já conseguimos escuta psíquica suficiente, que nos permita teorizar acerca do atendimento psicanalítico on-line?

No incomum dessa prática, recorremos à literatura e à nossa própria vivência em análise em busca de indícios sobre como operar nesse novo procedimento. Afinal, são os alicerces da nossa prática. No entanto, nada encontrado. Não se teorizou sobre uma prática que não existia – a virtual! Voltamo-nos para as trocas com os colegas, que foram muito importantes! Nisso revivemos a estrutura da nossa formação!

 

Março/2020, um marco!

Cautelosos, começamos os primeiros contatos virtuais. Deparamo-nos com respostas, as mais variadas, como seria de se esperar, pois em psicanálise tudo é da ordem do singular e do caso a caso.

De início, alguns se adiantaram e solicitaram as sessões on-line. Estaria esse sujeito impulsionado pelos desejos, de analista e de analisando? Em vias de ter sua análise suspensa em um momento subjetivo importante, esforçou-se por superar as barreiras do distanciamento social, e manteve-se enlaçado, mesmo virtualmente, no processo? Seria uma transferência inabalada, sustentando o vínculo psicanalítico?

Ou, antes, uma colagem do sujeito a qualquer proposta que pudesse retirá-lo desse caos 'intimamente-social'? Estaria contaminado pelo modismo das lives, alienado na tela exterior sem questionamentos próprios?

Vimos outros analisandos que aguardaram a proposta do analista e foram retomando com algumas dificuldades suas análises: uns, tentando imprimir o mesmo ritmo já conhecido, outros, abraçando esta vivência como um novo traumático a ser superado! Construções em análise operadas na transferência.

Motivos de considerações apreensivas foram requeridos para analisandos que se recusaram à análise on-line. O que estaria se construindo no seu imaginário e que ponto de desconforto se apresentava? Não suportar a análise virtual seria um componente pulsional, libidinal, cujo objeto de satisfação estaria no contato presencial, concreto?

E algumas surpresas: pessoas iniciando uma proposta de análise sem nunca terem se encontrado pessoalmente com o analista! E, na contramão, o processo dando certo!

Encontramos o desejo, a resistência e a transferência. O desejo é o ponto de causa para que uma análise aconteça! A resistência seria de quem e desde quando? Será que se insinuava imperceptível? Como era vivenciada a análise em seu tempo presencial? Parece-me que a modulação anterior se repete no dispositivo atual.

Poderia a resistência mostrar-se em falhas no uso da tecnologia, como ficar sem bateria, não escutar o telefone, confundir o horário etc., por parte tanto do analista quanto do analisando? Fatores externos, não controláveis, também podem interferir ou impedir a realização das sessões.

Temos à mão uma lista desses fatores, desde a falta de privacidade em casa até mudança para lugares sem conexão de internet, ou seja, uma infinidade de obstáculos!

Porém, o obstáculo mais difícil a ser superado é o interno. Interpõe-se aí a força do recalcamento, cujos efeitos mostram-se em sintomas como medo, insegurança, distúrbios de sono e alimentação, depressão, fechamento narcísico – o Eu dobrando-se sobre si mesmo, ou um negativismo revelando um empobrecimento de suas questões. A fragilidade diante de ameaças à vida, própria ou dos entes queridos, pode levar esse sujeito a declinar de sua subjetividade, de sua divisão, perdendo-se nos consequentes conflitos.

Vimos o luto se instalar por perdas objetais significativas, perdas da rotina e da liberdade e pelas alterações na relação com o tempo e o espaço. Tudo isso chegando à escuta virtual! Recorrente nela temos a vivência de um mundo interno colapsado, sufocado no gozo inconfessável de se refugiar no confinamento justificando, por exemplo, uma fobia social.

Um paciente diz:

Estou até com remorso por pensar numa coisa, no medo da pandemia acabar e eu ter que voltar a conviver com as pessoas! Seria um medo de lutar de novo com os meus fantasmas?

Um redemoinho de dor advém de um 'isolamento afetivo' de familiares e amigos, marcado por agressões e ressentimentos. Estando, agora, por uma lei maior, em isolamento social, isola a dor! Não caberia se questionar, está dado!

A pontuação interpretativa visa buscar a atualização da pulsão de vida, possibilitando uma revisão de sua posição no laço social, saindo do olhar especular para o subjetivo. Nesse momento, apostamos na eficácia das pontuações, da associação livre e da transferência no setting virtual. Retomamos o desenvolvimento do conceito de transferência nas obras de Freud e Lacan, pinçando alguns de seus artigos.

A transferência, o que se faz necessário à sua instalação, o corpo presente do analista, a voz, sua modulação, as referências do encaminhamento, as condições psíquicas do sujeito dispostas ao laço, o sofrimento? Com a mudança das condições físicas, Isso caminharia invadido pelo Real pelas dobras do Imaginário para chegar ao Simbólico?

No artigo Sobre o início do tratamento, Freud ([1913] 1977, p. 164), apesar de não estar convicto da importância de tais 'escritos', fez recomendações aos analistas quanto aos aspectos formais da análise, mas afirmou "[...] não reivindicar qualquer aceitação incondicional para elas". Essas teriam apenas a função de promover a única regra, a associação livre!

Hora da sessão! Quem aciona o dispositivo? Como é esse manejo? O que escutamos do sujeito: insegurança, dúvida quanto à pertinência da sua entrada sem avisar, atrasos ou adiantamentos, ansiedade, prontidão e até mesmo, diante de uma falha da tecnologia, como lidam com a falha e com a frustração?

E os silêncios, quando a sessão se passa apenas pela voz, sem a imagem? Às vezes ouvimos:

"Analista, você está aí?" seguido de um suspiro dizendo: "Ah! Bom!" após ouvir da analista: "Sim, estou aqui te escutando!"

Para além do corpo presente, a voz (fala e escuta) e o olhar (ver e ser visto), componentes da pulsão, presentes nas análises on-line, se prestam, com eficiência, à transferência, terreno necessário ao deslizamento da cadeia significante.

Jean-Michel Vivès (2012), em seu livro A voz na clínica psicanalítica, trabalha esses objetos e lembra como Lacan os introduziu na lista dos objetos pulsionais de Freud, embora a este, eles não lhe tivessem escapado como pulsão oral e pulsão de olhar.

Vivès (2012, p. 12) explica que Lacan (1964) extraiu o objeto voz do estudo das alucinações psicóticas e o incluiu na dinâmica do tornar-se sujeito.

A voz, [...] por sua estreita ligação com a fala e o significante, [...] aos poucos foi adquirindo estatuto pulsional – pulsão invocante –, por sabermos que a emergência do sujeito e sua inscrição no conjunto dos humanos [...] estão estreitamente ligadas ao que se apreende no concerto das vozes que o circundam.

A voz, apresentando-se também como silêncio, é a parte do corpo do analista que se põe em jogo para a produção de um enunciado, que por sua vez, apaga a voz. "A fala vela a voz" (VIVÈS, 2012, p. 13), momento em que se evidencia a dimensão da escuta psicanalítica para além de se ouvir o som daquele que fala – nisso reside sua especificidade na psicanálise!

Sobre o olhar, Vivès (2012, p. 16) ressalta sua invasão sobre o bebê, que "[...] se vê mergulhado num espaço panóptico, [...] antes mesmo que ele possa ver". O sujeito, para se ver livre do Isso que o olha, não se sabe de onde, e ter prazer no ser olhado, olhar e fazer-se ver, precisa desembaraçar-se do olhar do Outro. Para tal processo, a pulsão escópica deve ser ativada em suas duas dimensões: ativa e ativa na passividade.

Na economia psíquica, quanto a esses objetos pulsionais, o autor ressalta que o sujeito pode fechar os olhos ou desviar o olhar; acrescento, na análise on-line, desliga a câmera, mas quanto à voz, não pode fechar os ouvidos, dimensão onipresente na análise on-line.

 

Acompanhando o conceito de transferência em Freud

As primeiras menções ao conceito de transferência surgiram em 1895, quando em A psicoterapia da histeria Freud ([1893-1895] 1977, p. 360] falou da mésalliance, uma "falsa ligação", em que o paciente endereça, ao analista, afetos que seriam destinados a seus objetos infantis, num equívoco.

Em A interpretação dos sonhos, no capítulo VII, A psicologia dos processos oníricos, item C, Realização de desejo, Freud ([1900] 1977, p. 599, nota do tradutor) usou, pela primeira vez, o termo "transferência" [Übertragung] no seu sentido analítico.

Analisa nesse momento

[...] o processo de transferir a um objeto contemporâneo [o analista] sentimentos que originalmente se aplicavam, e ainda se aplicam inconscientemente, a um objeto infantil (FREUD, [1900] 1977, p. 599).

Em Fragmento da análise de um caso de histeria, seção IV, Freud ([1905] 1977, p. 113) discute extensamente no caso Dora o fenômeno da transferência dizendo

[...] é renovada toda uma série de experiências psicológicas, não como pertencentes ao passado, mas aplicadas à pessoa do médico [psicanalista] no momento presente.

Em A dinâmica da transferência, Freud ([1912] 1977) deixou clara a origem infantil do material transferencial e introduziu nele a questão da resistência, afirmando que a transferência é a sua arma mais forte. Nesse texto ele fala da construção de uma neurose transferencial artificial. Seu manejo requer o reconhecimento de dois tipos de transferência:

a positiva, sentimentos afetuosos – o amor de transferência, que favorece a interpretação na direção do tratamento; e

a negativa, sentimentos hostis e eróticos recalcados, atuando como uma resistência ao trabalho analítico.

Em função de suas duas faces, Bleuler ([1911] 1977) lhe atribuiu a característica de "ambivalência", como citado por Freud ([1911] 1977, p. 141) no mesmo artigo.

No final texto, uma pérola:

Não se discute que controlar os fenômenos da transferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifestos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente. Pois quando tudo está dito e feito, é impossível destruir alguém in absentia ou in effigie (FREUD [1911] 1977, p. 143).

Corroborando essa ideia, em Recordar, repetir, elaborar, Freud ([1914] 1977, p. 199), disse: "[...] não se pode vencer um inimigo ausente ou fora de alcance".

A transferência diz respeito não a uma projeção, como apressadamente poderíamos definir, mas antes, é uma atuação no presente confirmando a característica "atemporal" do inconsciente, como descrito por Freud em vários momentos de sua obra. Assim, exemplificou em:

[...] o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu ou reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out). [...] o paciente não diz que recorda que costumava ser desafiador e crítico em relação à autoridade dos pais; em vez disso, comporta-se dessa maneira para com o médico (FREUD, [1914] 1977, p. 196).

Em Análise terminável e interminável, Freud ([1937] 1977, p. 249) vê como importante a dissolução da transferência. Exemplifica sua posição retomando um caso anterior: "Quando [...] ele retornou a Viena, tive de ajudá-lo a dominar uma parte da transferência que não fora resolvida".

Discorre sobre seu manejo diante da ação da pulsão de morte em dupla com a pulsão de vida, e assevera que o processo analítico deveria conduzir o sujeito ao confronto com a castração, onde sua aceitação se dá no 'saber fazer com ela'. O que resulta ato criativo!

Nesse sentido, em Forma e figura da transferência, Jean-Michel Vivès (2006, p. 128) acrescenta que, ao final da análise,

[...] os objetos serão investidos por aquilo que são: não mais o objeto absoluto do desejo, que é faltoso; [...] serão objetos para o desejo, [por ele] perfurados, [permitindo] ao sujeito investi-los, sem que seja levado a se alienar neles.

 

Acompanhando o conceito de transferência em Lacan

No artigo Intervenção sobre a transferência, retomando o caso Dora, Lacan ([1951] 1998, p. 222), fala do engodo sustentado pelo analista ao aceitar ocupar na análise, um lugar particular,

Em outras palavras, a transferência não é nada de real no sujeito, senão o aparecimento, num momento de estagnação da dialética psicanalítica, dos modos permanentes pelos quais ele constitui seus objetos.

No Seminário 1: Os escritos técnicos de Freud, no capítulo XIX A função criativa da palavra, Lacan pergunta ([1953-1954] 1986, p. 274):

A partir de quando há verdadeiramente transferência? Responde: - Quando a imagem que o sujeito exige se confunde para o sujeito com a realidade em que ele está situado.

Considera que, quando a palavra do analista analisa a situação transferencial, ao evocar a situação em que o sujeito se encontrava frente ao objeto antigo, não assimilável ao objeto presente – o analista,

[...] a palavra atual, como a palavra antiga, é colocada num 'parêntese de tempo', [...] cuja modulação sendo idêntica, torna a palavra do analista de mesmo valor que a palavra antiga (LACAN, [1953-1954] 1986, p. 276).

Atualização do antigo na sobreposição, por deslocamento de afeto, da palavra ouvida do analista.

No Seminário 8: A transferência, Lacan ([1960-1961 1992, p. 70-71) mostra o analista abordado pelo sujeito como aquele que sabe.

Aí está um homem, o psicanalista, de quem se vem buscar a ciência daquilo que se tem de mais íntimo [...] – é bem este o estado de espírito com que se o aborda comumente – e, portanto, daquilo que deveria ser, de saída, suposto lhe ser mais estranho. E no entanto, ao mesmo tempo, eis o que encontramos no início da análise: esta ciência, ele é suposto tê-la.

Marco Antonio Coutinho Jorge (2017, p. 150-151), em Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan - vol. 3: A prática psicanalítica, lembra que nesse seminário

Lacan já havia estabelecido certa articulação entre suposição de saber, a dimensão da ignorância do sujeito que sofre e o lugar do psicanalista [...] tateando na construção da categoria do sujeito suposto saber.

Essa construção é tributária da concepção do inconsciente como um saber, constituído por significantes, o Simbólico, tendo como núcleo uma falta – o Real (JORGE, 2017, p. 96). Estabelece, ainda, a relação da repetição com a transferência e a resistência. Diz que a repetição é um efeito da resistência e, por isso mesmo, seria "[...] uma resistência à simbolização, logo à associação livre" (JORGE, 2017, p. 96).

A percepção da insistência da repetição conduziria Freud, em 1920, ao conceito de pulsão de morte, no texto Mais além do princípio de prazer.

No Seminário Livro 9, A identificação, (1961-1962), Lacan introduziu a fórmula do Sujeito suposto Saber ainda não ligado à transferência.

Foi no Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise que Lacan ([1964] 1990) articulou os dois conceitos, Sujeito suposto Saber e transferência.

Definiu "[...] a transferência como um fenômeno essencial, ligado ao desejo como um fenômeno nodal do ser humano, descoberto muito antes de Freud" (LACAN, [1964] 1990, p. 219), lembrando já ter sido tratada, em O banquete, de Platão, em torno de 385- 380 a .C.

À máxima, "o desejo do homem é o desejo do Outro" (LACAN, [1964] 1990, p. 223), articulamos a posição de sujeito suposto saber, (S.s.S.), atribuído em análise ao analista, lugar por ele ocupado, mas sabendo-se não sê-lo.

De que se trata esse saber, senão de ir ao encontro do desejo inconsciente? Assim, afirma Lacan ([1964] 1990, p. 220), "[...] desde que haja em algum lugar o sujeito suposto saber, (S.s.S.), ... – há transferência".

Vivès (2006. p. 126) lembra o conceito de semblant introduzido por Lacan no Seminário 18: De um discurso que não será semblante, em que o analista, ao interpretar, não atesta a verdade do sujeito e sim a desencadeia. O solo do qual brota a transferência, não é outro senão, desde o início da vida, o da operação de alienação-separação do sujeito no campo do Outro. Partindo do desejo e suas articulações, a análise requer ser pensada nos dois campos: o do Eu e o do Outro.

Revisitar, em suas fontes, o conceito de transferência na psicanálise abriu uma janela que nos permitiu pensar na possibilidade da eficiência da prática on-line. A análise, presencial ou virtual, se sustentará pela instalação e manejo da transferência, postos a serviço da fala e sua escuta, e do olhar.

Sabemos do aumento das dificuldades e do esforço nos atendimentos on-line, tanto para o sujeito, quanto para o analista. Tocados pelo non-sense trazido no chiste – "A experiência consiste em experimentar o que não desejávamos experimentar!" descobrimos que a experiência sem elaboração não nos torna sábios!

Artimanhas do inconsciente num dito enganoso que combina uma boa substância com um envoltório eficaz. Leva-nos a ser enganados por um fator à custa do outro. "Ficamos desconcertados e pensamos ter aprendido nova verdade" (FREUD, [1905] 1977, p. 112).

Engenhosamente, definindo a palavra 'experiência' pelo uso da palavra 'experimentar', nos conduz a superestimar a ideia de que o saber advém da experiência. "Sob esse disfarce levamos um tempo para reconhecer a 'platitude' [dos ditos]: 'O sofrimento faz-nos sábios' e que 'a adversidade é a melhor escola" (FREUD, [1905] 1977, p. 112).

Ao homem ávido pelos clichês, esses ditos soam como frases sábias, que no fundo não trazem nenhuma informação, apenas banalidades.

Nossa história sobre a terra não relata um saber que se construiu pela experiência das dores da humanidade. Repetimos a dor: no desrespeito ao outro, ao meio ambiente, à vida. Parece, mesmo, não ser pelo sofrimento que aprendemos, mas antes, pela construção, pela elaboração, de uma nova posição psíquica a partir da experiência de dor!

A humanidade, marcada pelo desamparo estrutural, surpreendida pelo Real, faltando-lhe o Simbólico, se refugia no Imaginário. Fantasias de ruína e morte, impotência e desolação apresentam-se à escuta, mesmo virtual. E não havendo um saber universal, será construído em cada sujeito escutado, um saber singular, tão singular quanto sua própria dor.

Imersos na subjetividade do nosso tempo, a pandemia causada pela força destrutiva do vírus apenas precipitou o que no futuro, talvez seja a nossa prática. Quem sabe, em um cenário bem mais requintado, talvez em 3D, acrescentado de outros sentidos, como olfato e tato.

Até aqui, são reflexões e construções teóricas, ainda incompletas, sobre o procedimento analítico virtual que se nos impôs, e não é dado ao psicanalista recuar de sua escuta!

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: mazzarellocotta@yahoo.com.br

Recebido em: 30/11/2020
Aprovado em: 05/12/2020

 

 

SOBRE A AUTORA

Maria Mazzarello Cotta Ribeiro
Psicóloga.
Psicanalista.
Professora no Programa de Formação Psicanalítica do CPMG desde 1994.
Editora da Revista Reverso (CPMG) desde 2015.
Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).
Sócia do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP).
Sócia da Federação Internacional de Sociedades Psicanalíticas (IFPS).
Autora de artigos publicados em livro e revistas de psicanálise.
Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) - gestão 2002-2004.
Presidente do Círculo do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG) - gestão 2005-2007.
Coordenadora da Comissão de Formação Psicanalítica do CPMG - gestões 2001-2003 e 2003-2005.

 

 

1 Trabalho apresentado na XI Jornada de Psicanálise A clínica psicanalítica on-line: travessia de novas veredas, do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro, em 13-14 nov. 2020, no Rio de Janeiro (RJ), por meio da plataforma Zoom.

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