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Estudos de Psicanálise

versión impresa ISSN 0100-3437versión On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.54 Belo Horizonte jul./dic. 2020

 

PSICANÁLISE ON-LINE E PANDEMIA

 

Covid-19 - Consequências Covid-19: pandemia do olhar e um esgarçamento do enquadre clínico1

 

Covid-19 - Consequences Covid-19: pandemic in the eye and a thinning of the clinical framework

 

 

Stetina Trani de Meneses e Dacorso

I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
II UniAcademia - Centro Universitário de Juiz de Fora

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Na situação de pandemia e isolamento social, duas questões se fazem presentes. A primeira é que o uso das máscaras fez sobressair o olhar, zona erógena por excelência: voyerismo, castração, alma exposta, desnudamento, hipnose, sedução. Como será que as pessoas veem e se sentem andando nas ruas? E desse pensar fomos para os atendimentos on-line. A situação de isolamento provocou discussões que passaram a girar em torno da importância e da diferença entre atendimento presencial e atendimento à distância. Como pensar e analisar as novas fronteiras do setting e os consequentes esgarçamentos do enquadre psicanalítico?

Palavras-chave: Olhar, Psicanálise do olhar, Clínica on-line, Enquadre clínico.


ABSTRACT

In the situation of pandemic and social isolation, two issues are present. The first is that with the use of masks the look stood out. Erogenous zone par excellence: voyeurism; castration; exposed soul; stripping; hypnosis; seduction. How will people see and feel walking on the streets? And from this thinking we went to the on-line appointments. The situation of isolation provoked discussions that began to resolve around the importance and differences of face-to-face and remote services. How to think and analyze the new frontiers of the setting and the consequent thinning of the psychoanalytic framework.

Keywords: Look, Psychoanalysis of the loo, On-line clinic, Clinical framework.


 

Introdução

 

Quando a luz dos olhos meus
e a luz dos olhos teus
resolvem se encontrar.

Tom Jobim; Vinicius de Morais

 

A primeira questão a me chamar a atenção foram os olhos. Comecei a pensá-los a partir da máscara, dos atendimentos por vídeo. Os olhos passam a ocupar um lugar privilegiado.

Muitas pessoas foram educadas pelo olhar. Bastava um dos pais ou os dois olharem e já se sabia o que fazer, ou o que se tinha feito de errado! Um poder inquestionável de ler pensamentos e traduzir desejos daquele que olha.

Com o uso das máscaras as mulheres passam a reforçar a pintura dos olhos. Máscaras encobrindo o nariz e boca, de fora apenas os olhos! Andamos olhando em volta tentando reconhecer as pessoas pelo olhar, pelo cabelo, pelo jeito de andar. Respondemos comprimentos sem ter muita certeza de quem é. O mundo se transformou num panóptico!

Olhar do voyeur que investiga, observa, captura. Segundo Freud (1910), a cegueira histérica só o é na consciência, no inconsciente vê.

Fenichel (1981), por sua vez, analisa na escopofilia que a sexualização das sensações visuais é análoga ao erotismo tátil. A situação do setting analítico é por demais singular. Um olhar de sofrimento e uma demanda a alguém que "supostamente" não se conhece. Situação ideal.

Porém, para a psicanálise essas escolhas não são gratuitas. Expectativa, ansiedade, olhar demandante assustado, lacrimejante. Voz ansiosa, autoritária, baixa, sofrida, desconfiada. E as percepções desse corpo erógeno são muitas! Por sua vez esse que demanda também captura detalhes possíveis e passíveis daquele que o atende, seja no registro consciente ou não: odores, decoração, tom de voz, olhares, comprimentos.

Se algo se estabelece, a relação continua num frente a frente e depois de um tempo não previsível é o divã, a voz que ecoa, que responde de algum lugar para outro que não é o mesmo lugar de onde se enuncia.

Segundo Green (2014), a linguagem e o discurso são insuficientes. O afeto e o corpo erógeno denunciam, gritam o que não consegue ser dito. E no atendimento on-line? Como fica essa erogeneidade, o não dito que grita no corpo?

 

É um lago negro o seu olhar

 

Há no seu olhar,
algo de saudade,
de um tempo ou lugar
na eternidade.

Gilberto Gil

 

Final do século XX, sociedade do espetáculo, da imagem que fala mais que mil palavras! Sociedade diagnosticada por teóricos como narcísica. Sabemos que, quando usamos palavras patológicas para universalidades, precisamos criar outras para descrever a própria patologia. Já disse o escritor: toda unanimidade é burra!! Então, nós, que trabalhamos com castração, alteridade e singularidades, precisamos tentar analisar as diversas nuanças que se nos apresentam, suas várias idiossincrasias.

A sociedade da exibição e do espetáculo também sofisticou sua parafernália tecnológica e passamos a conversar e analisar as possibilidades do atendimentos on-line. Nos preocupamos com as relações virtuais e sua periculosidade. Crianças e jovens seduzidos pelas telas, pelo olhar fixado, hipnotizados pela sequência rápida de cenas e pela facilidade de acesso, pesquisa. Outros mundos, outras culturas, outros saberes, outros perigos!

Aí a vida vem e vira, e revira.

 

Este seu olhar,
quando encontra o meu,
fala de umas coisas,
que eu não posso acreditar.

Tom Jobim

 

Isolamento social! Distanciamento físico! O mundo fechado entre quatro paredes da casa! Distanciamento do setting, dos locais de transmissão, de outros locais de trabalho, do coletivo. O perigo que surge é da ordem do não visto, do invisível, do inominável. Acomete sem sabermos quando ou quem. Solução: isolamento social.

Depois de algum tempo a tecnologia se transformou num lugar-comum: computador, laptop, Kindle, celular, tablet. As conversas giram em torno do melhor, do mais em conta, do melhor custo-benefício. A vida numa tela. Namora-se. Atende-se analiticamente. Transmite-se a psicanálise. Acontecem graduações, lives, comércio. E o mundo mudou!

Todos agora somos voyeuristas!!! Olhamos. Buscamos. Mandei o link. Não consigo! Cadê vocês? Estão aí? Ai, não aguento mais a tela! Não? E agora José?

 

Olhos nos olhos
quero ver o que você diz
.
Chico Buarque

 

Presos em casa, o que fazemos? Ah, pode sair desde que use máscaras, distanciamento e álcool 70%! Ótimo! Solução científica encontrada! Podemos sair!

Confusão e desconhecimento! Máscara tapando o rosto, olhos ficando de fora. Com óculos não se consegue dar conta do vapor da respiração. Nos deparamos com olhares insistentes. Será que conheço? Está me cumprimentando ou não? Será que minha máscara está suja?

A pandemia ê do olhar!

Aparelho perceptivo restrito ao olhar! Não pode tocar, beijar, chegar perto! Os olhos capturam o outro e o mundo. Olhamos insistentemente aqueles que passam por nós, nos cumprimentam falando o nome. Nos assustamos: quem será?

Os olhos são espelho da alma. Então, as almas estão nuas!!! Olhos muito pintados, cílios postiços, olhos que desviam, se abaixam, olhos insistentes, olhos que capturam.

Para Freud (1910), os olhos percebem as alterações do mundo externo para registrarmos o mundo e os objetos que servem a nossa sobrevivência, nosso prazer, nossa necessidade. Objetos que são reencontro dos objetos de amor. Assim, olhamos avidamente à volta, às telas. O bebê, ao mamar, busca com o olhar o Outro que cuida, alimenta, protege e salva do mergulho no aniquilamento.

É impossível não lembrar do panóptico a que Foucault se referiu como controle do outro, além das máscaras e que transformou o mundo. Nos deparamos com a segurança à nossa vida e patrimônio: nos corredores e nas lojas há câmeras que olham por nós!

Ferenczi (2009) se refere ao efeito do hipnotizador que submete o outro pelo olhar, pela exigência do controle do olhar. Nos tornamos, todos, voyeuristas do mundo.

À minha volta as pessoas dizem das máscaras que, ao tapar o rosto, escondem o sorriso. Como? Nós já temos toda uma linguagem do olhar! Agora a estamos aprimorando, levantamos as sobrancelhas, fechamos os dois olhos. Quando rimos, os olhos se apertam. Arregalamos os olhos com vontade para mostrar espanto, susto com o inesperado. Piscamos um olho como sinal de cumplicidade. Uma linguagem do olhar.

Ao longo da mitologia, os olhos têm lugar privilegiado. Lady Godiva, para aliviar os impostos sobre a população, aceita o desavio do Conde Chester e desfila nua em cima de um cavalo pelas ruas. O povo, tendo conhecimento de seu ato, sai das ruas e fecha as janelas e como tributo e respeito não olha o que está a se exibir. Mas um curioso olha por entre as frestas e fica cego! Olhou o que não era para ser visto!

Édipo se cega ao ver Jocasta morta e como punição à realização do desejo incestuoso. Olhar a Medusa diretamente transforma em estátua de pedra. Argos possuía 100 (cem) olhos e dormia de dois em dois para não perder de vista Io, rival de Juno, que foi transformada em novilha por ciúmes. Os olhos captam a diferença do "a mais", do maior, do melhor e do mais valorizado, do não estar ali, do pequeno, da falta.

Ferenczi (2009) analisa os olhos como símbolo dos órgãos sexuais, pontuando que a confusão que se sente ao ser olhado fixamente e que impede de retribuir o olhar tem sua explicação no simbolismo sexual da região ocular. As paridades simbólicas implicam que um dos lados está submetido ao recalque e o outro então fica superinvestido. Há um deslocamento de baixo para cima, transferindo a energia de uma região para outra, mecanismo comum nos movimentos oriundos do inconsciente. De baixo para cima! Olhos componentes da pulsão sexual. Não é só a alma que está nua. A nossa erogeneidade se exibe de forma desavergonhada.

O olhar na captura de imagens, impacto provocado pelo visto, pela cena, pela leitura do texto, olhar que se perde, olhar esvaziado. Ah, os olhos! Cores variadas, sentidos diferentes. Lacrimejantes, vermelhos, grandes, pequenos. São intrigantes os olhos e os olhares.

A poesia e a literatura são carregadas de exemplos em que a paixão se instala à primeira vista de forma enlouquecida.

O olhar siderado da paixão agarra o objeto e o prende.

 

Como [..] o homem [...] era mais um,
só que num relance seus olhos
me chuparam feito um zoom.
Ele me comia com aqueles olhos
de comer fotografia.
Eu me sentia de close em close.

Edu Lobo; Chico Buarque

 

O olho desempenha um papel importante nas condições em que se realiza a conquista do objeto, transmitindo a sensação de excitação que o sentimento de beleza nos dá.

A análise dos olhos pelo olhar da psicanálise nos instiga a vários desenrolares. Olhos que percebem a diferença. Olhos como símbolo da castração. Olhos como controle do outro e/ou do mundo. Um Argos moderno que está nas câmeras de celulares e câmeras de controle "Sorria, você está sendo filmado". Olhos que capturam e aprisionam; olhos que seduzem desnudando e exibindo o desejo; Olhos que hipnotizam. Olhos que são toques cutâneos.

Usar as máscaras nos impulsiona a olhar olhos que nos olham, já que temos a alternativa de desviá-los covardemente. É preciso coragem para confrontar outro olhar, sabemos disso. Por quê? Se conseguirmos nos ver nos olhares, sabemos do desconforto provocado pelo olhar daquele que nos vê/olha, porque é capaz de capturar o que não vemos em nós.

Lembremos das charges, das mímicas e do estranhamento em nós decorrente do nosso reflexo nos espelhos e TVs da vida. Estranho que somos de nós mesmos e, por ser tão familiar, por segundos, não nos reconhecemos. E, com certeza, não reconhecemos muitos familiares pela vida afora (FREUD, 1923).

A cegueira histérica ocorre por uma dissociação entre processos inconscientes e conscientes no ato de ver. Se um órgão serve a dois senhores exercendo dupla função, um dos lados irá se retrair.

A pulsão sexual, ao utilizar dos olhos, pode atrair processos defensivos provocando cegueira. O Eu perde o domínio sobre o órgão. O preço pode ser uma cegueira ou limitações no ver/olhar.

Quanto nos tem escapado nessa pandemia do olhar? E como pensar o distanciamento no setting quando atendemos por uma tela e ficamos ali fixos naquele rosto ou ficamos com uma voz quando atendemos sem vídeo?

 

Assim, no setting...

Temos publicações sobre a clínica que são consideradas clássicas. Trazem análises teóricas das disposições do setting: contrato, poltrona, divã; intervenções do analista; transferência e outras considerações.

Um tempo na poltrona de frente e depois o divã. Só existe/há análise se está no divã? Quando encaminhar para o divã? O que dizer nas entrevistas preliminares? Momento da interpretação? Como fazê-la? Silêncios? De frente, para onde olhar, se cai um silêncio? E muitas são as questões, principalmente para candidatos. Com a prática nós as diminuímos, mas não acabam graças ao inconsciente!

No setting analisamos a importância do encontro erógeno utilizando, quando necessário e urgente, a tecnologia: atendimentos por Skipe, por telefone, procurando entender e analisar uma e outra forma. Comparamos, valorizamos, marcamos as diferenças entre os dois tipos de atendimento, mas com o olhar de que o uso das tecnologias é exceção. Dialogamos em congressos, jornadas. Publicamos.

Aí, a pandemia do coronavírus impõe o isolamento social. Vários foram os trabalhos em que se argumentou que a presença erógena, corpórea era fundamental ao trabalho analítico. Agora nós, analistas, tínhamos (e ainda temos) dois caminhos: não atender ou nos ajustar.

Eu creio que a psicanálise só sobreviveu por ser revolucionária, por pensar contextos socioculturais e históricos, e conseguir encontrar um caminho para se manter e se reinventar. A grande dificuldade é manter o leitmotiv, a coluna vertebral da teoria com a qual nos identificamos, isto é, não trair os conceitos fundamentais que a constituem e a identificam. Continuo a repetir que o ecletismo é, no fundo, um não comprometimento e um não saber.

Muitos passaram a atender on-line. Porque os pacientes precisavam, foi um argumento muito usado. Mas a transmissão não é possível! Como? Atende-se on-line, mas transmissão não? O que isso significa? Argumentações incompreensíveis. Até que atender on-line fica natural. Mais algumas semanas, e a transmissão se estabelece de forma remota. Acredito, que neste momento planetário sombrio, o peso deveria ter sido no comprometimento com a psicanálise, com um ofício que é exercido na crise e para a crise. Enfim, em três meses, todos atendiam e trabalhavam na nova modalidade.

Agora precisávamos pensar a nova situação. Será que o enquadre que servia ao presencial serve para a situação on-line? Atendimentos por vídeo ou fone? Voz ou olho-voz? Coloca-se o fone de ouvido ou o telefone seguro pelas mãos! Quem chama?

As questões foram e são inúmeras. E a transferência, como trabalhar? A ligação caiu. Caiu mesmo? E o silêncio? Podemos solicitar que os atendimentos sejam em lugares sem interferências e privativos, mas o analisando vai dispor do que for possível.

As fronteiras se esgarçaram. E necessitamos pensar em como o inconsciente se exibe nas veredas atuais do enquadre. É este o nosso trabalho. Sempre e agora, principalmente.

Os analistas podem comungar com a mesma linha teórica, porém seu estilo vai abarcar sua história, sua análise e analista, sua interpretação da psicanálise e sua transferência com a psicanálise. Além disso, qual comunidade ele atende? Que pessoas o procuram? Tudo isso, acredito, vai permear sua análise do momento presente. Se os analisandos são singulares em sua fala, sua história e seu sofrimento, também o é nossa intervenção, principalmente em situações que surgem nestes tempos de atendimentos remotos.

Já atendi uma mãe recente quando o bebê chorou para mamar e ela sozinha, foi com o celular até berço me apresentou ao bebê. Ligou câmera – porque o atendimento é sem câmera – e eu o cumprimentei. Fechou a câmera e veio até o sofá se sentou, abriu a blusa e amamentou o bebê. Aí solicitou o término da sessão.

Deve-se interpretar? O quê? Por quê? Mãe de bebê, sozinha em casa, que não quer interromper sua sessão. Vale marcar que deseja mostrar que amamenta seu bebê? Deve-se recusar atendê-la e dizer que a atenderemos quando houver mais uma pessoa em casa para cuidar do bebê? Considerar a cena erógena e provocativa? Realmente não sei. A única coisa que levo em consideração é de uma pessoa que, apesar de dificuldades culturais, isolamento social e dificuldades pessoais, está só e quer continuar sua análise!

Levantei algumas questões anteriormente. Não é possível aqui analisar sobre todas. Pensemos algumas poucas. Temos o silêncio nas sessões que acolhemos no presencial. E on-line?

Quando era mais de uma sessão por semana, o silêncio do analista era mantido para instigar o surgimento de associações. Silêncio que implicava neutralidade do analista, permitia emergências das representações inconscientes, elaborações internas do analista e analisando. Ele faz (fazia) parte do enquadre.

Com as pessoas podendo realizar uma sessão por semana, já passamos por discussões se isso seria análise ou não. Não chegamos a um acordo. Óbvio.

Divã só é análise se estiver no divã? Tema também sem acordos. Óbvio. Com um atendimento por semana, o silêncio teve de ser redimensionado pelos analistas: como manter neutralidade, não direção, espaço de emergência e se colocar. Já que com uma vez por semana tivemos e temos muitos detalhes do enquadre para repensar.

A função do silêncio é complexa. Sustenta-se que o silêncio da elaboração não deve nunca ser interrompido, mas partilhado no setting. Mas como pensar o silêncio por celular? E numa tela com olho no olho? Novamente somos convocados a repensar o enquadre. Tarefa dificílima, principalmente quando nos colamos a um padrão repetido e o questionamento é sentido como derrota a uma identificação teórico clínica.

Ao estarmos num setting que também não é o costumeiro, precisamos adequar nossas intervenções. Movimento nas residências em que há outras pessoas, crianças, marido ou esposa curiosa, deve ser levado em consideração. Nem todas as pessoas moram em grandes espaços de forma a conseguir um isolamento físico e de ruídos.

Com tantos impasses, devemos recorrer aos teóricos que trabalham os analisandos que têm dificuldade de se adequar ao enquadramento (GREEN, 2014). Então fazemos um link com o isolamento social que levou ao atendimento on-line para quem quisesse continuar atendendo ou fazendo análise. O atendimento on-line pode ser considerado um novo enquadramento que temos de pensar. A adequação anterior se apresenta entre aspas. Temos agora um novo campo de pesquisa: os pontos positivos e a insuficiência do enquadramento.

Atendendo on-line, entramos na residência dos analisandos. Casa, em A interpretação dos sonhos, tem um sentido exposto no primeiro período de análise de Freud, quando trabalhava com a interpretação. Devemos pensar neste novo enquadramento: casa=mundo interno=inconsciente. Como vamos ordenar "o que não tem governo nem nunca terá".

Na situação clínica, o fio condutor é a comunicação verbal, tentar trazer para linguagem o que ocorre no psíquico, que inclui um não verbal. Basta lembrar nossas sessões com fronteiriços e ver em seu rosto o sofrimento por não conseguir se expressar em determinados momentos!

Os escritos técnicos de Freud são anteriores a 1915. Após a pulsão de morte, a abordagem técnica é avaliada pela reação terapêutica negativa e pela compulsão à repetição.

Em 1924 Rank e Ferenczi questionam a técnica com base na vivência clínica. Bercherie, na revista Ornicar?, se refere a quatro grupos, e o último é nomeado de tendência marginal, que são os clínicos, aqueles que testam a partir de sua experiência no setting.

Depois de 1924, já não é mais pesquisar sobre o aparelho psíquico, mas pensar a clínica e no que se pode proporcionar de melhor ao analisando.

Melanie Klein aborda as relações de objeto como caminho de uma organização. J. Lacan reformula a teoria/técnica introduzindo conceitos novos e relativizando o conceito de pulsão. Isidoro Berenstein trabalha com a teoria do vínculo.

Winnicott é considerado de forma inconteste um grande pensador da clínica e na mesma vereda temos Masud Khan, considerado possuidor de grande criatividade e W. R. Bion no estudo da psicose.

As questões da técnica sempre em aberto a cada tempo em que, além dos neuróticos, outros quadros clínicos não identificados procuravam a psicanálise, obrigando a revisão teórico-clínica. A pulsão, ao lado da representação e do afeto, tem promovido discussões sobre o que se refere ao afeto: afeto e o corpo/soma; afeto e recalque/repressão; afetos na relação, afeto e descarga são discussões em aberto.

A psicanálise avança na clínica contemporânea, confirmando

[...] que uma psicanálise que não se interessa pelo pensamento clínico constitui uma disciplina mundana, ornamental e estéril, terminará agonizando (GREEN, 2014, p. 24).

Green (2014, 2014, p. 315) afirma: "Los fatores extraverbales son vías de sentido cuyos efectos se combinan con las de la lengua".

A situação analítica se apoia no tripé:

•  A dupla significação de sons e sentidos;

•  A dupla representação de palavras e coisas;

•  A dupla referência de realidade psíquica e realidade material.

Todas essas dualidades correspondem aos vários modelos de Freud. Afirmamos no início que a psicanálise trabalha na crise. Talvez ela seja como o sujeito: ambos se movem e pensam quando o sofrimento fica excessivo e impulsiona a sair do lugar.

Ainda com Green (2014), me pareceu elucidativo e bem atual recuperar em Psicologia das massas e análise do eu a figura ambivalente do pai. Se, por um lado, ele é violento e autocrático, por outro, é admirado pela sua autonomia subjetiva. O pai tomado como modelo e não apenas como o rival, na identificação primária. A identificação com o pai é uma busca de verdade.

Trabalhamos, torno a repetir, com o inconsciente; a sexualidade perverso-polimorfa é subversiva; a destrutividade pulsional é uma ameaça. Porque mudamos o setting essas forças não silenciaram. Assim é um campo de pesquisa como afirmamos: rico, angustiante e instigante. O que não se perde nunca é o "tato psicológico", como descreve Ferenczi, ou o feelling como o momento de o analista se colocar e como o faz. Agora como podemos analisar esse feelling on-line?

Como veem são muitas questões. Em algumas delas encontrei um caminho na singularidade da escuta de cada analisando e de sua demanda que se articula a sua história. Mas as discussões são fundamentais em nossas trocas, mesmo cada um de nós sendo singular no estilo, na clínica e na identificação com a psicanálise, como assinalei antes.

A difusão da ciência, seu alastrar e sua transmissão abarcam medíocres, gênios, repetidores e traidores – que dizem se identificar. Mas a coluna vertebral de um saber foi modificada a tal ponto que é qualquer coisa menos aquilo a que ela se propôs.

Ferenczi (1928) se refere a essa elasticidade da técnica e dos profissionais com muita propriedade, indo, retornando, reavaliando e os neoferenczianos adequando-a a atendimentos em situações distintas, clínicas sociais, ambulatórios em situação de risco.

Muitas críticas à psicanálise assinalam que ela que não apresenta nada de novo, apenas se recoloca ou se relê o que já existe. Essa é uma ótima oportunidade para pensarmos e reencontrar teóricos que pensam, repensam e desorganizam um setting sem perder o leitmotiv da psicanálise, por exemplo: Green, Ferenczi, Bion, Winicott em quadros que provocam as fronteiras do setting. Este momento é uma situação ideal para tal pensar.

 

Alguns olhares e links

Poderíamos além do olhar, ter pensado sobre a voz. O uso da máscara torna o som muitas vezes inaudível e incompreensível. Os atendimentos on-line – sem vídeo – trazem a voz para perto. Aparelho auditivo que tem um lugar diferenciado na segunda tópica freudiana, próximo ao Supereu (1923). Vozes que agoniam o psicótico. Voz da sereia que seduz e leva à morte com seu grito. Mas optamos pelo olhar.

O Isso olha. Olha a cena e é olhado por ela. Na pandemia o Isso está sendo o nosso destino. Cena que no setting remoto temos que repensar.

Retomando Freud (1914) que afirma que o ódio é mais antigo que o amor, porque o objetivo é eliminar qualquer irrupção do estado anterior. Podemos ampliar essa análise para o desconforto e os desafios provocados por qualquer mudança no estabelecido.

A psicanálise na atualidade e, mais ainda, neste período de pandemia teve introduzidas em sua metodologia mudanças que nos levam a elucidar limites, obstáculos e dificuldades no desempenhar de nosso ofício.

Considero muito pertinentes colocações do André Green na discussão sobre a persistência da psicanálise no mundo moderno.

Assim, encerro estes links de ideias e olhares com André Green (2019, p.164):

É preciso refletir mais sobre as limitações impostas por dogmas ou sobre o reducionismo dos modelos pós-freudianos centrados em mãe-bebê e desejo-castração. A sexualidade é subversiva e a pulsão destrutiva é uma ameaça. O futuro da psicanálise vai depender do combate pela verdade.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: sdacorso@gmail.com

Recebido em: 30/11/2020
Aprovado em: 10/12/2020

 

 

SOBRE A AUTORA

Stetina Trani de Meneses e Dacorso
Psicóloga pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora.
Psicanalista membro do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção RJ.
Mestre em literatura brasileira por Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora/PUC Minas.
Mestre em psicanálise pela American World University (AWU-USA).
Coordenadora do curso de formação em psicanálise e de seminários de psicanálise do Instituto Brasileiro de Psicanálise, Dinâmica de Grupo e Psicodrama de Juiz de Fora.
Didata em psicanálise – Instituto Brasileiro de Psicanálise, Dinâmica de Grupo e Psicodrama- Juiz de Fora.
Professora titular do curso de Psicologia da Uniacademia - JF.
Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise 2010-2012/2012-2014.

 

 

1 Trabalho apresentado na XI Jornada de Psicanálise A clínica psicanalítica on-line: travessia de novas veredas, do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro, em 13-14 nov. 2020, no Rio de Janeiro (RJ), por meio da plataforma Zoom.

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