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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.54 Belo Horizonte jul./dez. 2020

 

SOBRE O ESTRANHO FAMILIAR (DAS UNHEIMLICH)

 

Leonardo da Vinci, Freud e o estranho familiar ('Das Unheimlich')

 

Leonardo da Vinci, Freud and the uncanny ('Das Unheimlich')

 

 

Anchyses Jobim Lopes

I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
II Universidade Estácio de Sá
III International Federation of Psychoanalytic Societies

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

História de algumas críticas ao livro de Freud sobre Leonardo da Vinci. Dados mais recentes sobre a biografia de Leonardo. Perda precoce do amor da mãe biológica do artista resultando na síndrome da mãe morta, descrita por André Green. O sorriso da Mona Lisa caracterizado como estranho familiar (unheimlich) por Freud. Genealogia do termo estranho familiar na obra de Freud até o artigo com esse título. Desenhos de Leonardo sobre o tema de Maria com o filho ou Sant'Ana com a Virgem e o Menino, até aquele conhecido como cartão de Burlington. Interpretações sobre esse cartão. A criatividade segundo Winnicott. Do cartão ao quadro no Louvre como passagem do tema da solidão, silêncio e escuridão do artigo de Freud sobre o estranho familiar à gênese da poesia, da música e da pintura.

Palavras-chave: Freud e Leonardo da Vinci, Estranho familiar (unheimlich), Mãe morta, Criatividade.


ABSTRACT

History of some criticisms of Freud's book on Leonardo da Vinci. Latest data on Leonardo's biography. Early loss of love from the artist's biological mother resulting in the syndrome of the dead mother described by André Green. The Mona Lisa's smile characterized as the uncanny (unheimlich) by Freud. Genealogy of the uncanny in Freud's work up to the article with this title. Leonardo's drawings on the theme of Mary with her son or Sant'Ana with the Virgin and Child, coming up to the one known as the Burlington cartoon. Interpretations about this cartoon. Creativity according to Winnicott. From the cartoon to the painting at the Louvre as a passage from the theme of loneliness, silence and darkness in Freud's article on the uncanny, to the genesis of poetry, music and painting.

Keywords: Freud and Leonardo da Vinci, Uncanny (unheimlich), Dead mother, Creativity.


 

Sem dúvida, o grande Leonardo permaneceu uma criança por toda sua vida, em mais de um aspecto. Se diz que todos os grandes homens precisam conservar uma parte infantil. Mesmo quando adulto ele continuou a brincar, e este era outro motivo pelo qual frequentemente se mostrava como estranho [unheimlich] e inquietante para seus contemporâneos.(FREUD)

 

Introdução

Em carta a Lou Andreas-Salomé, Freud escreve que seu Leonardo da Vinci é "única coisa bonita que já escrevi" (FREUD, 2003, p. xli). Apesar de sua obra favorita, foi uma das que sofreu maior número de críticas desqualificadoras.

A primeira e mais séria crítica foi a de que, nas palavras de Leonardo sobre sua lembrança a infância, em italiano nibio, significava milhafre e não abutre. Crítica feita em 1923 por Eric Maclagan, historiador da arte inglês (SHAPIRO, 1955, p. 150). Não chegou aos ouvidos de Freud, ou ele a ignorou. De fato, as traduções alemãs dos livros do escritor russo Merezhkovsky e do acadêmico italiano Solmi, obras usadas por Freud, estava errada. Todo o trecho em que Freud tecera um erudito paralelo entre a fantasia da infância de Leonardo e as divindades egípcias e gregas, perdera a conexão com o resto do texto.

Além do erro de tradução, ao longo de décadas, outras críticas se avolumaram, principalmente quanto às interpretações de Freud. Ele as ignorou. Mas em 1955, Meyer Shapiro, historiador da arte que fez sua carreira na Universidade de Columbia e ministrou cursos e palestras nas mais célebres instituições (The New School for Social Research, Harvard, Oxford, College de France), pronunciou uma conferência na renomada sociedade psicanalítica de Nova York, o William Alanson White Institute. Essa conferência, que se tornou citação frequente nos textos críticos ao livro de Freud em muitas biografias de Leonardo, apareceu também na introdução de edições do livro Uma lembrança da infância de Leonardo da Vinci.

Shapiro não se deteve muito nas interpretações de Freud. Inicia relembrando o erro de tradução descoberto mais de trinta anos antes. A seguir disserta a partir da história e da sociologia da arte. Freud explicava Leonardo e sua arte a partir de uma perspectiva completamente subjetiva, sem levar em conta A Virgem com o Menino e Sant'Ana1 quanto à polêmica religiosa da época e a ser tema dos grandes artistas precursores de Da Vinci. Segundo Shapiro, tais dados explicavam melhor o quadro de Louvre e o cartão de Burlington do que as vicissitudes da infância do artista. Além disso, Freud dissecava a origem na infância das características psicológicas de Leonardo, mas não explicava seu talento e a importância de sua obra enquanto arte.

No livro de Freud os elementos originais da obra de arte são meras representações de memórias e desejos infantis: o estilo ele mesmo pertence ao outro – talvez biológico – domínio do individual – intocado pelos seus conceitos. (SHAPIRO, 1955, p. 166)

Ao termo "estilo" acrescentaríamos outros pouco ou não explicados: talento, impacto da obra no público (gozo estético) e, para a psicanálise mesmo, sublimação.

Apesar de todas os tropeços, o livro de Freud sobre Leonardo permanece uma leitura muito apreciada tanto pelos leitores de psicanálise, quanto pelos biógrafos e amantes da obra de Leonardo.

Quando da exposição comemorativa dos 500 anos da morte do artista, realizada em 2019, no Palazzo Vecchio, em Florença, onde foram expostos onze fólios do Codex Atlanticus de Leonardo, um dos três textos comentando o fólio O voo foi todo sobre o livro de Freud (BERRUTI, 2019).

Quanto ao desafio ainda aberto por Shapiro há seis décadas, tentamos esboçar algumas respostas. E como não apreciaria Shapiro, iniciamos pela atualização dos dados sobre a biografia de Leonardo.

 

A infância de Leonardo – o que mais se sabe desde a época de Freud

Os dados sobre a infância de Leonardo são escassos. Sabia-se menos ainda ao final do século XIX e início do XX, época em que Merezhkovsky e Freud escreveram a respeito de Leonardo. Sobre seu nascimento e a primeira infância, além do fato de que era um filho ilegítimo, em Uma recordação da infância as informações objetivas conhecidas a época e mencionadas por Freud ao longo de seu livro são estas:

Sabemos muito pouco da juventude de Leonardo. Ele nasceu em 1452, em Vinci, uma pequena cidade entre Florença e Empoli; foi um bastardo, o que naquela época não era visto como uma pesada mácula burguesa, seu pai foi Ser Piero da Vinci, um tabelião herdeiro de uma família de tabeliões e camponês, que tiraram seu nome deste local, Vinci. Sua mãe, provavelmente uma camponesa, que posteriormente casou com outro morador de Vinci. Essa mãe não participou mais da história de Leonardo [...]. A única informação segura acerca da infância de Leonardo aparece em um documento oficial, de 1457, em um caderno de impostos em Florença, no qual, os entre os habitantes da casa da família Vinci é introduzido o nome de Leonardo como o filho ilegítimo, de cinco anos, de Ser Piero. [...] seu pai, Ser Piero da Vinci, ainda no ano do nascimento de Leonardo, se casou com a nobre Dona Albiera; à ausência de filhos desse casamento, ele deve sua acolhida, legalmente comprovada, com a idade de cinco anos, na casa paterna, ou melhor dizendo, na casa do avô. [...] Na casa de seu pai, ele não encontrou apenas Albiera, a boa madrasta, mas também a avó, Mona Lucia [...] Ele teve duas mães [...] Caterina, de quem foi separado na idade entre três e cinco, e uma jovem e carinhosa madrasta, a mulher de seu pai, Dona Albiera. (FREUD, [1910] 2015, p. 93-94, 106, 132-133)

Durante o século XX e início do XXI mais informações vieram à tona. A mãe de Leonardo chamava-se Caterina Lippi, nascera em 1436 numa família de fazendeiros humildes e ficou órfã aos 14 anos. Junto com seu irmão foi para a casa de uma avó, que faleceu em 1451. Deixada à própria sorte para cuidar de si e seu irmão mais novo, Caterina, então com 16 anos, envolveu-se em julho daquele ano com Piero da Vinci, um homem próspero e renomado que tinha 24 anos. Caterina vinha de uma classe inferior e é possível que Piero já estivesse comprometido com uma moça também de 16 anos, Albiera, filha de um sapateiro florentino. Ao contrário do que hoje se possa supor, os sapateiros pertenciam a uma valorizada classe de artesãos. Ele e Albiera casaram-se oito meses após o nascimento de Leonardo (ISAACSON, 2017, p. 322). Para manter as aparências, Piero, ou seu pai, Antônio, ajudou a forjar, pouco tempo após o nascimento do filho, o casamento de Caterina com um fazendeiro e oleiro local que tinha conexões com a família da Vinci. Apesar do sobrenome ou apelido Accattabriga, tudo indica que o marido de Caterina, além de ser homem trabalhador, sempre manteve boas relações com Piero. Ao longo dos anos Piero e Accattabriga foram testemunhas um do outro em alguns contratos e escrituras. Caterina e seu marido tiveram quatro filhas e um filho.

Um dos biógrafos data o casamento de Catarina dezoito meses após o nascimento de Leonardo. Exatamente o tempo de amamentação dos bebês na época. O que sugere um acordo ou contrato:

Catarina restitui Leonardo à sua família paterna, depois que desmamou a criança, uma vez terminado seu trabalho de mãe. (BRAMLY, 1989, p. 56).

Mais recentemente, outra biógrafa de Leonardo diminui o tempo de aleitamento:

[...] oito meses após o nascimento da criança que certamente ela conservou consigo, os Vinci lhe arranjam ou lhe compram um marido [...] (CHAUVEAU, 2017, p. 16)

O primeiro antepassado conhecido de Leonardo foi Ser Michele que adotou por sobrenome sua comuna de origem – Vinci – emigrou para Florença, onde assumiu o oficio de notário. Foi sucedido nesse ofício por seu filho e seu neto Piero, que se tornou chanceler da República. Três gerações de legistas que construíram um nome na capital.

Antonio, o avô de Leonardo, rompeu a tradição familiar. Preferiu passar sua vida nas terras que seus antepassados adquiriram. Uma propriedade rural relativamente modesta, da qual grande parte era arrendada a pequenos agricultores. Assim como seus antepassados, Antonio usava o título de "Ser", mas não tinha o direito a esse título nos documentos oficiais. Parece que nunca obteve qualquer diploma ou exerceu profissão definida. Vivia de rendas e se satisfazia com pouco. Um dos especialistas na obra artística de Leonardo menciona que o avô, quando jovem, teria sido mercador na Espanha e no norte da África (VEZZOSI, 2019, p. 12), o que não é confirmado nas demais biografias. Mas talvez explicasse o fato, descrito por todos os biógrafos, de Antonio ter se casado já na meia-idade. Desposou Lucia, a filha de um notário (BRAMLY, 1989, p. 52-54).

Quando o pai de Leonardo nasceu, Antonio teria mais de cinquenta anos. O avô de Leonardo teve mais dois filhos: Violante, da qual nada se sabe e deve ter falecido muito jovem, e Francisco, que tinha apenas quinze anos quando Leonardo nasceu, e que lhe seria muito próximo na infância. Embora viesse a casar, não teve filhos e Francisco adotou Leonardo como seu herdeiro. Antonio teria oitenta anos e Lucia cinquenta e um quando o neto nasceu. Isso facilmente explica que, apesar de sua bastardia, Leonardo, como o primeiro e único neto, foi muito bem recebido pelos avós. Piero viria a casar-se mais três vezes, mas só no terceiro casamento, e quando Leonardo já estava com 24 anos, nasceu-lhe outro filho. E os avós Antonio e Lucia já tinham falecido há havia muito.

A afirmação de que o menino foi viver com os Vinci logo depois do nascimento foi reforçada por Rouanet (2003), que relata a descoberta feita em 1931 pelo historiador Emil Möler. O historiador encontrou uma crônica familiar redigida por Antonio da Vinci, na qual o avô de Leonardo registrou cuidadosamente o nascimento e o batismo do menino, além do nome do padre e dez testemunhas.

Tudo indica que o contraste entre a origem de Leonardo e a distinção de seu batizado deveram-se a Antonio e Lucia. Relata o mais recente biógrafo de Leonardo:

Leonardo nasceu num sábado e, no dia seguinte, foi batizado pelo padre local na igreja paroquial de Vinci. A pia batismal ainda está lá. Apesar das circunstâncias de sua concepção, a cerimônia foi um enorme evento aberto. Havia dez padrinhos servindo de testemunhas [...] e um público presente muito acima da média da igreja, com membros da nobreza rural entre os convidados. Uma semana depois, Piero da Vinci abandonou Caterina e o filho pequeno, onde, já na segunda-feira, retornou ao escritório a fim de atestar a autenticidade de documentos para os clientes. (ISAACSON, 2019, p. 33)

Rouanet (2003) defende que o reconhecimento tão formal da existência do neto sugere uma solicitude inesperada do avô. Antonio teria assumido a responsabilidade por Leonardo desde o início, e o menino foi viver na casa dos Vinci imediatamente, e não depois, entre três ou cinco anos, como afirma Freud. De fato, tudo indica que o avô tivesse assumido plenamente a responsabilidade pelo neto. Mas levá-lo logo após o nascimento para sua casa provavelmente implicaria contratar uma ama de leite para Leonardo desde o início. E o próprio Rouanet coloca sua opinião: "Não conheço nenhuma prova de que Caterina não tivesse amamentado o filho (ROUANET, 2003, p. 221)".

A tese de Freud de que Leonardo teria sido amamentado por sua mãe biológica permanece plausível, assim como a de que permaneceram em outro local que a residência dos avós do menino. Permanece aceitável a imagem freudiana da jovem mãe com seu primeiro filho, isolados do resto do mundo, em uma relação idílica. Resta debater se os três ou cinco anos defendidos por Freud, ou pelo tempo bem menor, entre oito a dezoito meses.

Nos anos seguintes ao nascimento de Leonardo, Piero e Albiera frequentemente iam a Vinci. Mas com o pai morando em Florença e a mãe, apesar de morar próximo, se ocupar do marido e seus filhos, Leonardo tinha como lar a casa dos avós.

O primeiro documento após o batismo é a declaração feita em um recenseamento tributário de 1457, documento mencionado por Freud na citação mais acima. Além de possuir uma informação muito sucinta, Freud deixa transparecer que lhe era pouco claro se a casa é do avô ou do pai de Leonardo. Hoje temos certeza de ser a residência do avô, a qual Piero e Albiera visitavam com frequência, mas nela não residiam. No documento tributário, Antonio incluiu Leonardo na lista dos dependentes que moravam com ele:

Leonardo, filho do citado Ser Piero, non legittimo, nascido dele e de Caterina, que agora é mulher de Accattabriga. ISAACSON, 2019, p. 34).

A infância de Leonardo aparenta ter sido bastante despreocupada na companhia de avós de idade avançada. Em especial um avô muito despreocupado com a vida. E com a parceria de um tio apenas quinze anos mais velho que o garoto, também tão desprovido de ambições quanto Antonio. Se isso não fosse o bastante, de Leonardo foi exigida pouca educação formal.

Ser bastardo trazia algumas vantagens. A guilda de tabeliões de Florença barrava os non legittimo. Assim, Leonardo não foi enviado para uma das 'escolas de latim' que à época ensinava os clássicos e as humanidades para os candidatos a comerciantes e outras profissões. Exceto por algumas poucas lições de matemática comercial, que era conhecida como 'escola de ábaco', Leonardo foi um autodidata (ISAACSON, 2019, p. 36). E manteve essa liberdade pelo resto da vida.

Apesar de residirem em Florença, as visitas do pai e da madrasta a Vinci eram constantes. A tese freudiana de uma segunda mãe é bastante plausível. Tanto poderia ter sido a avó, quanto a madrasta, ou ambas. A análise dos quadros de Leonardo adulto, inclinam mais para ter sido o papel da madrasta. Sem filhos, é bastante provável que Albiera tenha se afeiçoado muito ao enteado. E Leonardo a ela.

Aos doze anos a livre e despreocupada infância de Leonardo desabou: seu avô faleceu. Albiera morreu no parto, junto com um bebê, que seria seu primeiro filho. E Piero levou o filho consigo para Florença.

 

As duas mães de Leonardo – uma versão mais atual

Os biógrafos mais recentes de Leonardo colocam a separação de Caterina, sua mãe biológica, bem mais cedo do que menciona Freud. Em vez de entre três e cinco anos, que teria ocorrido entre oito e dezoito meses de idade. Já a informação mais precisa sobre a morte de Albiera coloca um matiz mais trágico ao final da infância de Leonardo. Permanece válida a interpretação de Freud de que Maria e Ana do quadro A Virgem com o Menino e Sant'Ana, que se encontra no Museu do Louvre. representam as duas mães de Leonardo. E pode ser aprofundada.

Pode-se imaginar que Caterina, uma jovem de 16 anos, originária de uma família local de boa origem porém empobrecida, tenha se apegado ao seu primeiro filho. Pelo menos durante os primeiros meses. No quadro, o olhar terno de Maria para seu filho é, de fato muito sugestivo de ser uma lembrança da infância de Leonardo. Porém, o relato dos fatos que se sucederam leva a crer que Caterina precisou, para seu próprio bem, precocemente desinvestir do bebê. O casamento próximo já estava marcado. É pouco crível que seu futuro marido aceitasse Leonardo. E mesmo que o fizesse, o interesse dos avós, pelo menos do avô, em criar seu único neto, assim que terminasse o desmame, implicava a separação entre Caterina e seu filho.

O desinvestimento precoce da mãe no bebê traz certa semelhança com a descrição clínica da mãe morta por André Green, que curiosamente não menciona essa hipótese em seu pequeno, mas denso livro sobre Leonardo e o cartão de Burlington (GREEN, 1994). Mas o desinvestimento, um luto precoce de Caterina que tornasse tolerável seu afastamento do bebê, pode ter sido vivido por Leonardo do mesmo modo que a descrição clínica de Green.

O complexo da mãe morta constitui, na obra de André Green, um ponto de cruzamento teórico-clínico entre narcisismo e estado-limite, formando um núcleo traumático precoce no qual

[...] uma imago se constitui na psique da criança, em consequência de uma depressão materna, transformando brutalmente o objeto vivo, fonte de vitalidade da criança em figura distante, átona, quase inanimada, impregnando muito profundamente [...] pesando sobre o destino libidinal objetal e narcisista. A mãe morta é, ao contrário do que poderia se crer, uma mãe que permanece viva, mas que está, por assim dizer, morta aos olhos da pequena criança de quem ela cuida (GREEN, 1988, p. 247).

A perda do amor é uma perda do sentido, pois o bebê não possui nenhuma explicação para o que aconteceu. Ele busca o pai, mas este não responde a seu apelo. "Eis o sujeito preso entre uma mãe morta e um pai inacessível" (GREEN, 1988, p. 257).

Para sua sobrevivência, o bebê desinveste a figura materna e o seio, e se identifica com a mãe morta. Mas a perda sofrida fica marcada como uma perda padecida no narcisismo do bebê, parcialmente compensado pela exacerbação da fantasia de cena primária tamponando as falhas materna e paterna. Contudo, o luto inconcluso ao longo da vida se manifesta como uma depressão branca.

Uma depressão sem seus sintomas clássicos, mas produzindo

[...] impotência para amar, para tirar partido de seus dotes, para aumentar suas aquisições, ou quando isto ocorreu, insatisfação profunda frente ao resultado (GREEN, 1988, p. 255).

Na descrição dessa síndrome descoberta em sua clínica, Green também destaca a neurose de caráter, o homoerotismo e a hipertrofia da fantasia e dos dons artísticos. O conjunto dos achados de Green nos faz visualizar Leonardo, sem reduzir o artista de Vinci a apenas um retrato da descrição clínica do psicanalista francês.

Com o afastamento de Catarina, não apenas físico, porque continuava a residir próximo, mas principalmente afetivo, a tese de que Albiera tenha se afeiçoado ao menino e ela a ela, é mais do que provável. A trágica morte de Albiera quando Leonardo tinha doze anos certamente evocou e reavivou a perda afetiva da primeira infância. A complementaridade das perdas, os traumas e os restos melancólicos, sem que Freud soubesse desses fatos, perfeitamente amolda-se ao que fora por ele descrito como "equação etiológica".

Os biógrafos de Leonardo penam para descobrir informações e opiniões mais pessoais em seus cadernos. A partir do livro do romancista Merezhkovsky, em Uma lembrança da infância, Freud garimpa e, um século antes de informações mais precisas serem descobertas, corretamente interpreta um acontecimento importante na vida de Leonardo. Freud transcreve por inteiro o que biógrafos de Leonardo encontraram em um dos famosos cadernos: a extensa lista de gastos para o funeral de uma Caterina Um dos autores que Freud utiliza em seu livro, Edmondo Solmi, em Leonardo da Vinci, Conferenze Fiorentine, torna Caterina uma meretriz que administrara a casa de Leonardo certo tempo (FREUD, [1910] 2015, p. 122). Mas Freud discordou e conclui:

O novelista Merezhkovsky foi o único escritor que pode nos dizer quem era essa Caterina. A partir de duas outras anotações, ele conclui que em 1493 a mãe de Leonardo, a pobre camponesa de Vinci, veio a Milão para ver seu filho, agora com 41 anos, e que lá adoeceu. Leonardo a colocou em um hospital, e quando ela morreu, a honrou com tão custoso funeral (FREUD, 2003, p. 78, tradução nossa).

Alguns acadêmicos acreditavam que essa Caterina era uma serva. Apesar da extensa lista de gastos, consideravam muito baixa a despesa total. Pesquisas mais recentes, incluindo a descoberta da declaração de um hospital do falecimento de 'Caterina de Florença', demonstraram que de fato era a mãe de Leonardo.

O biógrafo mais recente, Isaacson (2019, p. 320-321), cita por extenso a anotação de Leonardo quanto chegada de sua mãe à Milão: "No dia 16 de julho. Caterina chegou no dia 16 de julho de 1493". Aqui temos o que Isaacson rotula como "tique de tabelião ao repetir a data" e que onze anos mais tarde Leonardo repetirá em seus cadernos ao anotar a hora de falecimento de seu pai. Freud desconhecia este detalhe na anotação sobre Caterina, mas da anotação de Leonardo sobre Piero discorreu longamente em seu livro. Para Freud o sintoma obsessivo mostra a ambivalência e a competição de Leonardo com pai.

Em 1493 o marido de Caterina já tinha falecido há algum tempo e único filho homem desse casamento fora morto pelo disparo de uma arma, provavelmente numa guerra. Tudo indica que Caterina morreu em Milão dias depois de sua chegada. Um registro nos arquivos públicos de Milão informa que Caterina faleceu de malária. Subsidia a informação de Issacson (2019, p. 321) que as despesas de Leonardo tinham sido adequadas para o funeral de sua mãe, que contara com quatro padres e foi planejado e registrado para a posteridade.

Ao considerar a lista das despesas com o funeral de Caterina um dado relevante e alta a quantia, demonstrando o afeto que Leonardo lhe guardava, as informações mais recentes demonstram que Freud estava correto. Freud interpretara a ausência de qualquer comentário pessoal como sintoma de que conscientemente negava o luto e a importância afetiva de sua mãe biológica e que, provavelmente, o amamentara. Era uma "inclinação tingida de erotismo" (FREUD, [1910] 2015, p. 124) mas recalcada sob a forma de sintoma de uma neurose obsessiva e a repetição numérica dos dias, que Freud desconhecia, redobra a importância do recalcado e seu retorno através do sintoma. Freud associa essa lista de despesas com outra, que mencionara antes, de roupas e adornos caros que Leonardo comprara para seu discípulo e provável amante, Salai.

Isso exige uma tradução: por meio dessa relação erótica com a mãe tornei-me homossexual (FREUD, [1910] 2015, p. 124).

Pode-se acrescentar um pouco além da interpretação de Freud. A morte de Caterina foi mais trágica do que Freud poderia saber. A malária era uma doença crônica e endêmica na época. Caterina deveria padecer da doença há algum, ou mesmo muito, tempo. É compatível com o sintoma da neurose obsessiva de Leonardo que a negação de seu afeto e seu luto ao falecimento de Caterina também revele a depressão branca sintomática da síndrome da mãe morta descrita por Green. Conscientemente Leonardo não demonstrava seu afeto e talvez para si mesmo não a tivesse em grande apreço. Mas acolhê-la quando do falecimento de seu meio irmão e do padrasto, era necessário a Leonardo como forma de reparação à relação ambivalente com sua mãe. E defesa ao seu próprio desamparo. Uma luta inconsciente contra o reforço de sua pulsão de morte, exacerbada pelo abandono da mãe quando bebê.

O desenho a lápis de 1501/10, Estudo da Virgem com a Criança e Santa Ana, hoje na Gallerie dell'Accademia de Veneza (Fig. 1), há uma terceira cabeça, entre a Virgem e Sant'Ana, figura que mais parece um crânio desnudo simbolizando a morte. Além de desvelar a pulsão de morte, a terceira cabeça parece segurar, com um pedaço de pano entre os dentes, que o menino se aproxime mais do cordeiro. animal que morde a mão de Cristo. Considerando que o cordeiro simboliza a paixão e a morte de Cristo, ou como diria Freud, o sacrifício da versão humanizada do animal totêmico, é a própria morte que ambivalentemente freia a si mesma.

Figura 1

 

Leonardo e seu avô Antonio

É atraente pensar na identificação de Leonardo com seu avô. Tudo indica que tenham sido ele e sua mulher quem por mais tempo e mais diretamente participou da infância de Leonardo.

Freud percebeu, entre os escassos dados biográficos de que dispunha, a confusão entre a residência de Leonardo na casa do pai ou a do avô: "a casa paterna, ou melhor dizendo, na casa do avô" (FREUD, [1910] 2015, p. 106). O que hoje se sabe da declaração feita ao recenseamento tributário feita em 1457 por Antonio, o avô de Leonardo, indica que o menino residiu em sua casa e foi seu dependente. O pai de Leonardo, Piero, e sua esposa, Albiera, faziam seguidas visitas à vila de Vinci, mas residiam a em Florença a maior parte do tempo.

Apesar da dificuldade com os dados de que dispunha, Freud confundiu a casa do avô com a do pai do menino, mas intuiu a importância ao menos da avó de Leonardo:

Na casa de seu pai, ele encontrou Dona Albiera, a boa madrasta, mas também a avó, a mãe de seu pai, Mona Lucia, a qual, devemos supor, não era indelicada em relação a ele, como avós costumam ser. (FREUD, [1910] 2015, p. 132-133)

Por ser filho ilegítimo, a carreira hereditária de notário lhe era vedada a Leonardo. Um dado claramente objetivo. Residindo a maior parte do tempo em Florença , Piero, além da distância física, exercia uma profissão que era proibida ao filho. Carreira que o avô de Leonardo, Antonio, parece jamais ter ambicionado, ou que, até mesmo, ativamente recusou. Passou sua longa e aparentemente feliz existência sem quaisquer ambições de galgar prestígio ou aumentar seu patrimônio. E sendo confirmado que Antonio teria sido mercador na Espanha e norte da África, poderia ser aventada a ideia de que Leonardo, a partir da meia-idade, recusou a identificação com seu sedentário pai e passou a assemelhar-se mais com o avô quando jovem. Tornou-se viajante contumaz, algum tempo na companhia de Cesar Borgia e Maquiavel, por fim terminando seus dias na França.

Os biógrafos mencionam o jovem tio de Leonardo, Francisco, em tudo parecido com Antonio, como o companheiro dos passeios de Leonardo pelos campos e montes da Toscana. Quem lhe fez dedicar-se à contemplação da natureza. Parte ou muito deste dom pode ter sido dada pela convivência com o avô. Os cadernos de Leonardo, que lhe ocuparam mais que a pintura, com milhares de páginas, ilustrações e anotações, e uma multidão de interesses, podem ter sido o compromisso entre a identificação com o avô Antonio e o tio Francisco, e com seu pai Piero. Leonardo tornou-se o inventariante dos seres humanos, da natureza e de suas próprias invenções: um despreocupado e sonso notário do universo. Aliada à tese de Freud de que do mesmo modo que Piero não completara sua função de paternidade, Leonardo também não conseguia terminar e se separar de suas obras.

 

Algumas Madonas dos desenhos de Leonardo

Em Leonardo da Vinci - Obra completa de pintura, Frank Zollner (2018) enumera em trinta e quatro as obras pictóricas que ostentam o nome de Leonardo da Vinci. Contudo, muitas hoje são tidas como quadros atribuídos a discípulos de Leonardo que teriam pintado a partir de cartões desenhados pelo mestre. Algumas vezes provavelmente com retoques do próprio Leonardo. Vários dos quadros listados como autênticos são conhecidos apenas por relatos fidedignos, mas hoje são tidos como perdidos. Ainda há na lista atribuições contestadas. E a lista de Zollner curiosamente inclui o cartão de Burlington, que é um desenho e não uma pintura. Mas dado seu tamanho, impacto artístico e cultural, é listado entre as pinturas. Resultado: mesmo contando com o cartão de Burlington, só podem ser vistos dezenove quadros, em parte ou no todo, incontestavelmente da mão de Leonardo.

Uma vez que é controversa a atribuição ou não a Leonardo de algumas das Madonas, usaremos a primeira lista de trinta e quatro obras. Nessa lista, sejam apenas mãe e filho ou haja outro ou outros personagens, onze quadros mostram Maria e seu filho. Quanto aos desenhos, não foi possível precisar quantos teriam o mesmo tema. Consultando vários livros de arte, há pelo menos uma dúzia. Ao menos três, datados de 1478-1480, nos quais a Madona olha seu filho que se distrai abraçando um gato. Em um deles, ela carinhosamente olha para seu filho. Em outro, hoje no Museu Britânico, Leonardo desenhou uma Madona com as duas cabeças (Fig. 2), onde podemos utilizar a mesma interpretação de Freud de que representam as duas mães de Leonardo.

Figura 2

O próximo desenho de Leonardo que selecionamos corrobora um pouco além da tese freudiana clássica. Uma folha de desenhos, hoje na biblioteca do castelo de Windsor, contêm vários esboços, dos quais o maior é o da Madona e seu filho, desenhos também datados de 1478- 1480. A Virgem não olha para seu filho, apesar de ele a olhar atentamente enquanto se amamenta. Maria aparenta um rosto de muita tristeza, e olha na direção de outra criança, ligeiramente maior que seu filho (Fig. 3). Logo acima, à esquerda, há o rosto de duas mulheres: uma mais jovem, outra bem mais velha. Abaixo, ainda à esquerda há o desenho de um jovem e um homem bem mais velho. Sem dúvida uma folha de exercícios de Leonardo. Mas nada impede que se interprete o olhar para outra criança como Catarina encarando seu destino, as duas mulheres como sendo Albiera, a esposa de Piero, e Lucia, a avó de Leonardo, o jovem sendo Accatabbriga, seu futuro marido e o homem mais velho como Antonio, o avô de Leonardo. A expressão do bebê ao seio não é de êxtase. Sugere apreensão.

Figura 3

Segundo a sequência cronológica dos autores consultados, esses três desenhos feitos na juventude de Leonardo antecipam dez anos ou mais o primeiro desenho, hoje em Veneza, descrito e interpretado mais acima. Realizado entre 1501-1510, quando Leonardo já estava na meia-idade e após a morte de Caterina. No desenho em que há três cabeças, a do meio é um crânio que pelos dentes segura o bebê. Representação necessária a Leonardo como meio de exteriorizar e reparar o desamparo, reforço contra a sua pulsão de morte, exacerbada pelo abandono da mãe quando bebê e revivida quando ele a ajudou em seus últimos dias.

Contudo, nessa sequência de desenhos há mais um. Um quinto desenho, muito mais importante por seu valor artístico e para as teses de Freud: o desenho que ele nomeia de cartão de Londres em seu livro sobre Leonardo.

 

O cartão de Burlignton ou, como Freud o chama, o cartão de Londres

O cartão da Casa de Burlington é um desenho de 1,415 m por 1,065 m feito a carvão, realçado com giz branco sobre papel tingido de castanho. A data mais provável do desenho é 1499-1501, segundo Zollner (2017, p. 391). Possui esse nome por ter sido adquirido em 1779 pela Academia Real de Arte, mais tarde sediada na Casa Burlington em Londres. Em 1962 foi vendido à National Gallery, também em Londres. Alguns como Isaacson consideram o cartão de Burlington uma obra superior ao quadro da Virgem com a Criança e Santa'Ana, que se encontra no Museu do Louvre – "nessa versão parece haver uma profundidade emocional maior do que se vê na pintura final" (ISAACSON, 2017, p. 350).

Em seu livro sobre Leonardo, Freud o nomeia de cartão de Londres. Há uma cópia em sua sala de atendimento, colocada numa das paredes do arco que a divide em dois ambientes. (FREUD MUSEUM LONDON, 2020). Não há, no endereço londrino de Freud, uma reprodução do quadro da Virgem com a Criança e Sant'Ana do Louvre, ao qual dedicou a maior parte de seu livro.

A tese mais aceita é a de que o cartão de Burlington seja a primeira versão do quadro exposto hoje no Louvre. Essa obra foi iniciada quando do retorno de Leonardo a Florença e datada próximo da Mona Lisa. Mas assim como a Mona Lisa, também não foi entregue a quem encomendou, no caso, os monges da basílica da Santissima Annunziata. E ambos os quadros ficaram com Leonardo até sua morte.

No cartão a Virgem está sentada com cabeça e tronco na mesma altura que sua mãe, e São João Batista está no lugar do cordeiro. Em um segundo cartão, hoje desaparecido, a Virgem se inclinaria para baixo e o cordeiro já teria sido substituído São João Batista, tal como é visto no quadro exposto em Paris.

Sobre o cartão de Londres escreve Freud em nota acrescentada em 1923:

É particularmente interessante comparar ao trio de Sant'Anna do Louvre o famoso cartão de Londres, que apresenta outra composição do mesmo tema. Nele as duas figuras maternas estão ainda mais intimamente reunidas, seus limites são ainda mais incertos, de modo que houve observadores, alheios a qualquer empenho de interpretação, que afirmaram ser "como se duas cabeças saíssem de um só corpo".

A maioria dos autores concorda em que esse cartão de Londres é o trabalho mais antigo, [...]. Combina muito bem com nossa argumentação, se o desenho for uma obra bastante anterior. Também não é difícil imaginar como o quadro do Louvre teria se originado do cartão, enquanto o oposto não faz sentido. Se partirmos da composição do cartão, parece que Leonardo sentiu a necessidade de cancelar a onírica fusão das duas mulheres, que corresponde à sua relação de infância, e afastar fisicamente as duas cabeças. Isso ele fez separando a cabeça e o tronco de Maria da figura de sua mãe e inclinando-os para frente. Para motivar este deslocamento, teve de passar o menino Jesus para o chão, não havendo mais lugar para João Batista menino, substituído então pelo cordeiro (FREUD [1910] 2013, p. 187-188).

Freud utiliza o cartão de Londres para reforçar a tese da dupla maternidade de Leonardo representada no quadro do Louvre. Nele a fusão das duas mães se torna clara em um corpo com duas cabeças. O cartão mistura partes extremamente bem acabadas com outras só no esboço. Como não era para ser visto pelo público, o recalque se retirara bastante de cena. A semelhança do desenho do cartão com as imagens de um sonho é muito forte. Com todo o sentimento de estranheza que aquilo muito mais próximo ao inconsciente, quando de pleno funcionamento do processo secundário, parece-nos ao mesmo tempo familiar e desconhecido.

Freud não utiliza mais elementos do cartão de Londres para reforçar outras teses de seu livro sobre Leonardo. Nem para comentar o estranho, senão sinistro, olhar de Sant'Anna sobre sua filha. Mas entre a primeira publicação do livro sobre Leonardo e o acréscimo da extensa nota sobre cartão de Londres, Freud havia escrito o texto O estranho (Das Unheimlich).

 

O estranho Leonardo e a genealogia do estranho em Freud

Na nota preliminar ao O 'estranho', a tradutora Alix Strachey informa que, em uma carta de 12 de maio de 1919, Freud escrevera para Ferenczi dizendo "[...] que tirou um papel velho de uma gaveta e o está reescrevendo".

Contudo, ela também informa que nada se sabe do texto original e o quanto ele poderia ter sido modificado, mas que em O estranho, duas notas de rodapé mencionam Totem e tabu, e servem de evidência de que Freud já teria pensado sobre o tema em 1913 (STRACHEY in FREUD, [1919] 1978, p. 2018). De fato, a maior dessas notas de rodapé de Freud conecta um dos temas de O 'estranho' com o terceiro ensaio de Totem e tabuAnimismo, mágica e onipotência de pensamento. A informação da tradutora é correta, mas profundamente incompleta.

Até 1919 a palavra "estranho" aparece dezesseis vezes na edição standard brasileira, mas traduzindo do alemão seltsam ou frendem, palavras de uso habitual em alemão. Ao contrário do termo pouco usual unheimlich, "estranho familiar" ou, se traduzido ao pé da letra, "infamiliar".3 Mas o significante unheimlich já ocorrera várias vezes em alemão nos escritos de Freud.

Alix Strachey parece ter esquecido que, na tradução das obras de Freud por ela e seu marido, o termo alemão unheimlich já aparecera em muitas ocasiões. Primeiro no texto mais conhecido como Caso Dora, escrito em 1901, mas só publicado em 1905. Nesse texto Freud discorre sobre a sexualidade infantil afirmando que, ao escutar o ato sexual de adultos, "[...] as crianças pressentem algo sexual no ruído inquietante" (unheimlichen Geräusche) (FREUD, [1905/1901] 2016, p. 266). Aqui ainda estamos no uso de uma palavra pouco usada em alemão, mas perto de seu sentido habitual.

Em Notas sobre um caso de neurose obsessiva, mais conhecido como O homem dos ratos, de 1909, o casal Strachey novamente encontrara o termo "o estranho" (unheimlich). Mas agora numa acepção diferente do uso habitual, em que algo pode ser estranho, mas só produz curiosidade. Agora o termo sugere algo angustiante e ameaçador, que suscita algo vindo de dentro de nós mesmos e, ao mesmo tempo, não se sabe bem de onde nem quando, nem por quê. Unheimlich, já como "estranho familiar", parece quatro vezes em O homem dos ratos e em todas foi traduzido para "estranho" (uncanny). Ernest Lanzer, nome real do paciente de Freud, aparece como o criador desse novo uso da palavra, pois foi ele quem chamou a atenção de Freud para um uso diferente, um novo conceito.

Palavras de Lanzer:

[...] Mas com esses desejos [ver nuas moças que passavam na rua e pelas quais sentia-se atraído] eu tinha uma sensação inquietante ['unheimlich Gefühl'] de que algo aconteceria, se eu pensasse tais coisas, e eu deveria fazer tudo para evitá-lo. [...] Por exemplo, que meu pai morreria (FREUD, [1909] 2013, p. 21).

De 1909 a 1910, ao caso clínico de O homem dos ratos, seguiram-se as Cinco lições de psicanálise e em seguida Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci. Sobre o sorriso de Mona Lisa, o mais icônico dos sorrisos das personagens de Leonardo, Freud se utiliza as palavras do escritor e crítico de arte do século XIX, Walter Pater "[...] que o insondável sorriso, sempre possuía algo de sinistro" (FREUD, [1910] 1978, p. 110).

Alguns parágrafos adiante, Freud compara o enigmático sorriso de Mona Lisa com os sorrisos da Virgem e de Sant'Ana em Sant'Ana com a Virgem e o Menino.

Embora o sorriso que paira nos lábios das duas mulheres indubitavelmente seja o mesmo do quadro da Mona Lisa, ele perdeu seu caráter estranho ['uncanny/unheimlich'] e misterioso, o que expressa é um sentimento íntimo e de silenciosa felicidade (FREUD [1910] 1978, p. 112, tradução nossa).

O uso do termo "estranho" no caso O homem dos ratos poderia ser característica pessoal de um neurótico. Mas no livro sobre Leonardo da Vinci o sorriso de Mona Lisa produz um sentimento de mistério, de algo sinistro inqualificável, mas também de irresistível fascínio. Qualidades do 'estranho', que são despertadas por alguma coisa que vem de fora, mas produzem uma reação interior simultânea de familiaridade e de estranheza, agora universalizada pela obra de arte.

Contudo, mais uma vez Freud usou do termo "estranho" no livro sobre Leonardo, além de Mona Lisa, para caracterizar o próprio artista em uma frase que é usada como epígrafe ou citação em livros de arte sobre Leonardo e sua obra.

Sem dúvida, o grande Leonardo permaneceu uma criança por toda sua vida, em mais de um aspecto. Se diz que todos os grandes homens precisam conservar uma parte infantil. Mesmo quando adulto ele continuou a brincar, e este era outro motivo pelo qual frequentemente se mostrava como estranho [unheimlich] e inquietante para seus contemporâneos. (FREUD [1910] 1978, p. 127, tradução nossa)

E não é apenas em Freud que o homem Leonardo produz tanta fascinação quanto sua obra. Fascinação, palavra cuja origem vem do latim fascinatio: encantamento, bruxaria, feitiços, encantamento que entra pelos olhos.4

Ainda em 1910, quase em seguida ao livro sobre Leonardo, Freud publicara O sentido antitético das palavras primitivas, pequeno tratado de filologia. Provavelmente também fascinado com a descoberta dos diferentes sentidos do significante "estranho".

Dois anos após o livro sobre Leonardo, Freud aprofunda o uso do termo "estranho" em Totem e tabu. Discorrendo, entre outros tópicos, sobre onipotência de pensamentos e animismo, Freud cria uma ponte entre arte, magia e religião.

Apenas em um único campo de nossa civilização permaneceu a onipotência de pensamentos, e isso no domínio da arte. [...] As pessoas com justiça falam da 'mágica da arte' e comparam os artistas com os mágicos. (FREUD, [1912/1913] 1978, p. 90, tradução nossa)5

Publicado por partes entre 1912 e 1913, e por completo em 1913, Totem e tabu traz seis vezes a palavra "estranho" (unheimlich) na acepção do artigo de 1919. No início da terceira parte do terceiro ensaio - Animismo, mágica e onipotência dos pensamentos – Freud elogia e agradece a Ernst Lanzer por ter cunhado a expressão "onipotência dos pensamentos", que adotou. Ao final do parágrafo, Freud acrescentou uma nota de rodapé:

Parece que atribuímos uma qualidade 'estranha' [as aspas são de Freud; 'uncanny', unheimlich] às impressões que buscam confirmar a onipotência dos pensamentos e o modo animista de pensar em geral, depois de atingirmos um estágio em que, a nosso ver, tínhamos abandonado tais crenças. (FREUD, [1913] 1978, p. 86, tradução nossa)

E ao final dessa nota, o tradutor James Strachey faz uma observação direcionando a leitura do artigo de 1919, O 'estranho' (Das Unheimlich). Um texto que se caracteriza por possuir várias formas de leitura. Mais que a interpretação dos sintomas de pacientes, mais do que um artigo de filologia ou da análise psicopatológica de um conto de Hoffmann, mas também um outro complexo escrito sobre psicanálise e filosofia da arte.

 

O cartão de Burlington e o 'estranho familiar'

O cartão de Londres, certamente foi feito por Leonardo para seu uso pessoal. Há evidências de um segundo cartão, em tudo semelhante ao quadro do Louvre e que o teria originado. Há cópias por discípulos de Leonardo do hoje desaparecido segundo cartão ou do quadro no Louvre, mas não do primeiro cartão. E esse uso particular permitiu a Leonardo que seu inconsciente ficasse mais a céu aberto, mas como tudo que acessa a parte do pré-consciente mais próxima do inconsciente, já possui algum grau de recalque. O que é uma das características do estranho familiar: [...] o prefixo de negação "in-" [un] é a marca do recalcamento (FREUD, [1919] 2019, p. 95).

Em sua maior parte, o cartão apresenta o desenho cuidadosíssimo de um grande artista. Em outros detalhes menores, traços ou contornos inacabados e toscos, em tudo 'primitivos'. Um deles é a mão direita de Sant'Ana levantada, com o dedo indicador apontando para o céu. No desenho um simples esboço, mas assim mesmo caracteristicamente leonardesco. O gesto que aparece em vários quadros de Leonardo. Mais nítido nos quadros posteriores, em que Sant'Ana foi substituída por um andrógino São João Batista, tão pagão que no último foi repintado com os atributos de Baco. Teologicamente, o gesto de Sant'Ana indica o céu e Deus como destino do menino. Freudianos verão um símbolo fálico. Sem dúvida a imagem da mãe de Maria no desenho de Burlington é um tanto masculinizada e inquietante, até mesmo sinistro, o olhar sobre sua filha.

Outro atributo deixado apenas como esboço é o pé direito de Maria, do qual só há um contorno disforme e fendido em apenas dois grandes e grotescos dedos. E o terceiro pé, mais inacabado ainda, a contar da esquerda se parece com um casco equino. Atributo de sátiros, que dera, origem à figuração de demônios cristãos? No artigo do "estranho familiar", Freud retorna várias vezes ao animismo e à onipotência de pensamento como característica do "estranho" [unheimlich] e seu retorno. Características que se escondem por detrás do monoteísmo e do pensamento científico. Enquanto o cristianismo de Leonardo era um tanto sofrível, seu panteísmo era bastante dissimulado. Mas, como todo recalcado, sempre tende a retornar.

Giorgio Vasari, primeiro biógrafo de Leonardo, escreve na primeira edição de Vidas dos artistas (1550) que no espírito de Leonardo

[...] nasceu um conceito tão herético, que ele não se ligava a nenhuma religião, considerando mais estimável ser filósofo que cristão (VASARI, 2011, p. 444-443).

Prudentemente Vasari omitiu esse trecho quando da segunda edição de seu livro dezoito anos depois. O cartão serve como mais uma evidência do que levou olhos mais atentos a transformar um de seus São João Batista em um Baco.

No cartão de Londres, Maria e sua mãe formam um único corpo, possuidor de duas cabeças, quatro braços e quatro pernas. Freud concorda com a interpretação de que colocar Maria com o tronco e cabeça voltados para baixo no quadro do Louvre foi a solução de minorar a confusão de corpos. Mesmo assim, no quadro, ainda há certo efeito de uma figura combinada.

Sem o artefato da cor para facilitar a distinção, no desenho é difícil discernir de quem são as quatro pernas e

[...] o corpo das duas mulheres abaixo da cintura, expõe um centro de atração que gera inquietude (GREEN, 1988, p. 27).

Maria e Sant'Ana estão uma do lado da outra e Maria está sentada sobre a perna esquerda de sua mãe. Ou ambas com pernas abertas e Sant'Ana sentada sobre a perna direita de Maria?

Nessa segunda interpretação, Green (1994, p. 9) destaca a imagem de um pênis entre as pernas de Sant'Ana. O desenho em tudo leva a pensar, não em uma, mas várias das figuras combinadas criadas pelo bebê kleiniano. Retorno de fantasias e imagens assustadoras do início da primeira infância e recalcadas por todos, que, se no cartão de Londres trazem o 'estranho', também deslumbram o olhar.

O braço de Maria segura seu filho, que se direciona ao outro menino, São João Batista. Mas o desenho do braço e do menino permanecem inacabados. O que se vê é uma forma contínua em que o braço da mãe se metamorfoseia até se transformar no corpo do menino. Leva-se algum tempo até o olhar discernir em que momento o braço de Maria torna-se uma forma separada que, com sua mão direita, segura o bebê entre suas pernas até o ventre. A mãe não apenas passa seu braço sobre o pênis do filho, como o bebê literalmente se torna falo da mãe. E com o braço direito o menino abençoa seu primo. Mas o braço esquerdo é apenas um esboço que segura o queixo do outro menino. Esboço que tem exatamente a forma de um pênis ereto.

 

Criatividade na obra de Leonardo: o estranho, o sinistro, a androginia

Em Criatividade, um de seus artigos mais lidos, Winnicott (2019, p. 115) se refere a Leonardo da Vinci e ao livro de Freud. Critica que a psicanálise seja usada para desvendar traços da personalidade e sua relação com a infância de artistas, irritando as pessoas criativas em geral, sem chegar o que realmente importa, "o tema central ficou de lado: o próprio impulso criativo" (WINNICOTT, 2019, p. 115). A partir de um viés psicanalítico, a mesma crítica do historiador da arte Shapiro.

Sobre Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci, desde a descoberta em 1923 do erro da tradução para a língua alemã da palavra "abutre" foi colocada em vez de de "milhafre", não faltaram críticas. De fato, embora o trecho sobre mitologia e androginia escrito por Freud seja excelente, sua associação de Leonardo com uma lembrança da infância ficou invalidada. Mas pode ser que Freud, por vias tortas, tenha acertado.

Segundo Winnicott, a criatividade é essencial para a existência humana. O autor ressalta que não é preciso ser um artista para criar, que se trata de um dom universal capaz de tornar nossa existência valer a pena ser vivida. Criar vai desde o brincar, a invenção de modos de relacionamento afetivo e sexual diferentes para cada ser humano e, portanto, também possibilita a relação psicanalítica até de como conceber novos meios de cuidar ou ensinar, ou de fazer uma torta, ou gerar e educar filhos, ou outros infinitos exemplos. O impulso criativo fornece à nossa existência o sentimento de continuidade e de que a vida vale a pena ser vivida. O oposto é a submissão, que traz consigo o sentimento de futilidade e de que a vida não é digna de ser vivida. Condição da maior parte da humanidade.

Ao longo de sua obra, Winnicott nomeia e conceitua de diferentes formas a região intermediária entre a realidade subjetiva e a realidade compartilhada, entre o sonho noturno e o trabalho diurno: espaço potencial, brincar, objeto transicional, religião, arte. Cabe à mãe ou substituta(o) de sua função fornecer ao bebê um ambiente razoavelmente seguro e de satisfação para as necessidades biológicas básicas, de modo que possa germinar e frutificar neste espaço o dom do impulso criativo. Tendo ao início ainda um incipiente, ou mesmo nenhum teste de realidade, o bebê possui até mesmo a ilusão, ou alucinação, de que é o criador do seio. Um ambiente suficientemente bom que permita "[...] que o bebê fique louco da maneira própria dos bebês" (WINNICOTT, 2019, p. 118).

Essa criação dá ao bebê o sentimento de SER, elemento feminino puro, ao qual só depois será acrescido do FAZER, elemento masculino puro. Conceitos perigosamente próximos dos de animus e anima de Jung, além da concepção das divindades primordiais egípcias e gregas como andróginas. Tal como Freud dissertara em seu livro sobre Leonardo. Divindades encontradas também em outras religiões antigas, tal o orfismo, que em décadas posteriores ao livro de Freud foi interligado ao nascimento do pensamento filosófico grego (GUTHRIE, 1993).

Ao também comentar sobre Leonardo da Vinci e o livro de Freud, em Análise precoce, Klein (1975, p. 86-89) comenta que o sucesso da sublimação se funda em fixações precoces que não devem ter sofrido um recalque muito cedo, o que impediria a possibilidade de seu desenvolvimento e que fossem assimiladas ao eu. Se o recalque for precoce, as características diretamente sexuais da pulsão não serão sublimadas e se tornarão sintomas neuróticos. Só que quando se fala em fixações muito precoces assimiladas ao eu, pensamos em outro tipo que as neuroses transferenciais, as neuroses de caráter. O que talvez explique um homem como Leonardo, que transita entre a grande sensibilidade e a brutal indiferença.

Outro fator que contribui para a sublimação, segundo Klein (1975, p. 87), parece ser a capacidade de manter a libido em um estado de suspensão, de tal modo que possa ser deslocada para caminhos mais sutis e não condensada como em sintomas histéricos. O deslocamento permite a transformação das pulsões, domesticando também a pulsão de morte. Klein retoma um dos temas do livro de Freud, sobre o relato de Leonardo da lembrança de que, quando bebê, um pássaro batera muitas vezes com sua cauda em seus lábios, e concorda que representa uma fantasia de felação.

Contudo, os caminhos do deslocamento de uma rudimentar fantasia sexual permitiram que fosse se metamorfoseando no interesse pelos pássaros, na curiosidade de como voavam, de como isso poderia ser feito por seres humanos por meio de engenhos e, finalmente, ter o dom das aves de ver de cima a natureza e de imaginar como seria o mundo visto desse modo. Todos os biógrafos copiam o relato de Vasari (2011, p. 444) de que Leonardo possuía o hábito de comprar aves em cativeiro e as "[...] soltava no ar, restituindo-lhes a liberdade perdida".

Contudo, a obra de arte não se destina apenas à contemplação passiva. Ela dispara o gatilho do impulso criativo, que inconscientemente a reconstrói no espaço entre o subjetivo e o objetivo. No espaço transicional eclode a criação, que evoca o seio materno e segue por infinitas associações conscientes e inconscientes. Sujeito e objeto, corpo e mente perdem sua dualidade cartesiana e se fundem.

Mesmo "sobre a solidão, o silêncio e a escuridão", dos quais "nada podemos dizer a não ser que esses são realmente os fatores ligados à angústia infantil", palavras de Freud (2020, p. 115) ao último parágrafo de seu texto sobre O infamiliar [Das Unheimlich], por meio do impulso criativo se tornam conscientemente ou não, associações de palavra, som e luz. E deste modo se tornam as associações que também serão trazidas pela obra de arte. Na leitura literária e poética, por meio dos incessantes fluxos de significantes, construindo pontes entre palavras e imagens, e libertar um pouco à consciência, e muito mais ao inconsciente, um mundo de afetos, personagens e histórias. Na música, por meio da pulsão invocante, construir os contrastes do som infinito, que no bebê é expresso por movimentos com o corpo todo, originando também a dança. Nas artes plásticas, por meio da pulsão escópica, expandir as variações de luz, sombra e cor sobre os contornos das formas.

Deixando à parte as peculiaridades dos traços de caráter e das perguntas sobre a vida sexual de Leonardo, há algumas outras contribuições para a compreensão de sua obra do fenômeno estético. Sua ligação com processos psíquicos muito precoces, hoje inconscientes em crianças maiores e adultos, que quando, mesmo levemente, intuídos produzem sentimento de estranheza.

Contudo, a intuição benigna desses processos reconduz à experiência do fascínio tanto dos sorrisos misteriosos quanto da natureza fantástica das paisagens de fundo dos quadros de Leonardo. E apesar da escassez de sua obra pictórica, o tornaram o pintor mais famoso do Ocidente.

A descrição do quadro clínico da mãe morta, que, mesmo para quem não passou por algo tão dramático como a história de Leonardo bebê, evoca a perda da imago do seio e da mãe idealizadas, e a passagem da posição esquizoparanoide para a depressiva. Essa passagem consigo traz, ao contemplar a obra de arte, algo de sinistro e evoca a última das figuras femininas estudadas por Freud no texto do Tema dos três escrínios: a morte. Além disso, remete a uma androginia e bissexualidade anterior ao que hoje denominamos escolha objetal e identidade de gênero, que evoca a escolha objetal recalcada oposta e, por que não, uma identidade de gênero oposta também recalcada. O momento em que Winnicott (2019, p. 121) se surpreendeu e disse para seu paciente, homem heterossexual: "Estou ouvindo uma menina [...] e digo a ela: Você está falando da inveja do pênis".6

O estranho, o sinistro, a androginia, tornados pelo dom do artista em gozo estético. Mais que a contemplação do belo, algo além, por meio de algo como a contemplação da natureza, que ameaça nos destruir e não o faz, a vivência do sublime.

 

Conclusão

Freud visitou Londres duas vezes, em 1875 e 1908, antes de escrever seu livro sobre Leonardo da Vinci. Iniciou a escrita do livro em 1909. Mas sua admiração e identificação com o polímata italiano vinha de longa data. Teria Freud visto o cartão da Casa de Burlington, ainda na Academia Real de Arte? A nota acrescida ao livro sobre Leonardo em 1923 dá a entender que não. Mas teria sido um esquecimento ou ocultamento quando de sua redação?

Sobre a viagem de 1908 Green comenta:

[...] Jones, de quem tiramos estas informações, só menciona o Britsh Museum e a National Gallery. É lamentável que não disponhamos das seis longas cartas que escreveu neste período (GREEN, 1988, p. 120)

Se porventura Freud também contemplou o cartão de Burlington, as interpretações sobre a homossexualidade de Leonardo e uma cena de felação tornam-se mais claras. Porém, se Freud não viu o cartão e com a audácia com a qual acessava o inconsciente, pode muito bem ter interpretado os mesmos temas a partir do quadro hoje no Louvre.

Entre 1919 e 1923, Freud acrescentou, formando um mesmo bloco, três notas de rodapé. Na primeira, de 1919, Freud assinala a fusão dos corpos de Maria e Ana e a semelhança com a cena de um sonho. Em 1923 coloca outra nota, já citada acima quase na íntegra, sobre o cartão de Londres. Mas deve ser assinalado que essa nota, apesar de datar de 1923, foi colocada por Freud antes da nota sobre a observação de Oskar Pfister, sobre a descoberta da forma de um abutre na vestimenta de Maria, nota que, como a primeira, também data de 1919. E a nota de 1923, assim como a primeira, de 1919, não é referida como sendo observação de outra pessoa, mas do próprio Freud.

No cartão de Burlington o feroz olhar de Sant'Ana sobre sua filha, desenhado em tons mais escuros, gera estranheza. Seguindo a genealogia dos esboços de Leonardo, a Sant'Ana do cartão teria incorporado o crânio desnudo do desenho a lápis hoje na Gallerie dell'Accademia de Veneza (Fig . 1). Sant'Ana assimilada à figura da morte. No cartão o rosto de Maria é o exato oposto, de uma beleza, felicidade e serenidade plenas. A imago da mãe morta em oposição à mãe que representa a pulsão de vida. A privacidade do cartão de Londres permitiu a Leonardo, através do desenho, a expressar com bem menos recalque a cisão do eu. Cisão que, ao final de mais um ou dois desenhos, mais voltados ao público, acabaria sendo atenuada, até quase desaparecer no quadro do Louvre.

Freud caracterizou o misterioso sorriso leonardesco, que se tornou um símbolo universal a partir do quadro da Mona Lisa, como estranho [unheimlich]. Entretanto, Freud assinala que esse sorriso inquietante desaparecera no quadro do Louvre. Ao comentário de Freud acrescentamos que o quadro do Louvre tornou mais equilibrada a cisão do cartão de Burlington.

No quadro hoje no Louvre, o olhar de Sant'Ana à filha perde sua sinistra e forte estranheza. Olha complacentemente Maria. Em oposto, o rosto de Maria perde o ar de extrema beleza e felicidade do cartão. Torna-se o olhar de alguém que já sente a saudade de algo que ainda não foi completamente perdido. Completando o movimento de integração, a figura de São João Batista foi substituída pela de um cordeiro. O animal totêmico que representa o sacrifício é facilmente dominado pelo bebê. E permitiu que o filho de Maria dobrasse o pescoço e voltasse seu olhar, que era precoce e de reprovação no cartão, completamente em direção e adoração à sua mãe.

No quadro, o sorriso de Sant'Ana é belo, possui um ar superior, mas é sereno e de aprovação a sua filha e neto. Já o sorriso de Maria também é belo, mas, ao contrário do cartão, demonstra certo ar de tristeza, de melancolia. O que permite que em vez do desenho do cartão, onde um bebê de rosto estranhamente maduro e sério benze seu primo, se transforme no quadro do Louvre no bebê mais belo e inocente de todos que Leonardo desenhou ou pintou. E que no quadro contempla sua mãe de modo absolutamente terno e infantil.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: anchyses@terra.com.br

Recebido em: 13/10/2020
Aprovado em: 23/10/2020

 

 

SOBRE O AUTOR

Anchyses Jobim Lopes
Médico e bacharel em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Mestre em medicina (psiquiatria) e em filosofia pela UFRJ.
Doutor em filosofia pela UFRJ.
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Professor do curso de formação psicanalítica do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do CBP-RJ.
Supervisor clínico do Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP) do CBP-RJ.
Coordenador do Grupo de Trabalho Sobre Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ.
Ex-professor assistente do quadro principal do Departamento de Psicologia da PUC-RJ.
Ex-professor adjunto da Faculdade de Educação da UCP.
Professor titular III dos cursos de graduação em psicologia e de especialização em teoria e clínica psicanalítica da UNESA.
Um dos editores da revista Estudos de Psicanálise, publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP).
Presidente do CBP-RJ 2000-2004, 2008-2012 e 2014-2018. Presidente do CBP 2004-2006 e 2017-2021.
Delegado do CBP para a International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS).
Um dos editores regionais para a América do Sul da revista International Forum of Psychoanalysis.

 

 

1 Não ilustraremos o texto com imagens do quadro A Virgem com o Menino e Sant'Ana que se encontra no Museu do Louvre ou do desenho conhecido como Cartão de Burlington que se encontra na National Gallery em Londres por ambos serem facilmente encontráveis pelos mecanismos de busca na internet.
2 Edição original em inglês de 2017.
3 Ao colega psicanalista Michell Alves de Mello, que estudou por anos na Alemanha e é fluente no idioma germânico, agradecemos por esta informação.
4 SANTOS SARAIVA, F. R. Novíssimo dicionário latino-português. 12. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 2006. p. 475.
5 Ao final do parágrafo de onde retiramos esta citação, Freud coloca uma extensa nota de rodapé sobre a origem da arte a partir da religião, e a origem de ambas documentada pelas pinturas pré-históricas em cavernas europeias. Para o aprofundamento deste tema sugerimos nosso texto "Arte da era glacial – arte das cavernas – e o primeiro totem da humanidade (ou, não é que Totem e tabu pode estar certo?)", Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 45, p. 15-36, jul. 2016.
6 Aqui citado a partir de A criatividade e suas origens, capítulo 5 de O brincar e a realidade, livro de 1971, mas publicado primeiramente no somatório de clínica e teoria colhido e comentado entre 1959 e 1969 - Sobre os elementos masculinos e femininos ex-cindidos (split-off) - artigo publicado postumamente em Explorações psicanalíticas (WINNICOTT, 1994).

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