SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue54The Uncanny in Les Contes d'Hoffmann,by Jacques OffenbachUnheimlich and transexualities author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437On-line version ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.54 Belo Horizonte Jul./Dec. 2020

 

SOBRE O ESTRANHO FAMILIAR (DAS UNHEIMLICH)

Tradução e psicanálise: a experiência do intervalo

 

Translation and psychoanalysis: experiencing hiatus

 

 

Manuela Dumans e Mello Costeira

I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho pretende articular noções ligadas à clínica psicanalítica com o ofício da tradução. O objetivo é apresentar a semelhança da "escuta" nessas duas práticas no que se refere tanto à busca da verdade quanto aos limites da interpretação.

Palavras-chave: Psicanálise, Tradução, Escuta, Estranho-familiar, Verdade.


ABSTRACT

In this paper we would like to articulate a few key notions related to psychoanalytic practice with the work of translation. The aim is to unpack the concept of "listening" in each activity with regards to both the search for truth and the limits of interpretation.

Keywords: Psychoanalysis, Translation, Listening, Uncanny, Truth.


 

Introdução

A relação entre tradução e psicanálise vai além dos desafios e das querelas em torno da passagem das obras de Freud de uma língua para outra. Em psicanálise, na prática clínica de todos os dias, lida-se com tradução tanto quanto em editoras de livros. Seja na passagem do recalcado para a consciência, seja na transformação do signo em sofrimento corporal, seja na interpretação do conteúdo manifesto dos sonhos ou de uma fobia, o psicanalista se depara com a necessidade de entrar em comunicação com um idioma estrangeiro. Assim como o tradutor literário, ele trabalha nos deslocamentos. É nessa experiência entre dois meios que se faz possível a criação – a partir das perdas inevitáveis e da singularidade de cada encontro.

A questão da língua e de seu atravessamento de fronteiras gera impasses que ultrapassam um acordo entre as partes. Não se trata de uma cópia fiel com palavras equivalentes. Trata-se de permitir a inclusão desse imigrante, respeitando sua língua e sua cultura de origem bem como as particularidades da língua de chegada.

Quem se interessa pela obra de Freud sabe que conceitos como Trieb, Phantasie, Angst, Verdrängung tiveram uma travessia turbulenta até a chegada na língua portuguesa. Outros, como Das Unheimliche, mesmo em alemão, quando traduzido 'da cabeça de Freud' para a 'teorização escrita de Freud', necessitou de um grande apanhado epistemológico por parte do autor, tanto para justificar a escolha do termo quanto para embasar uma teoria importante para a psicanálise, que ficou conhecida em português como "O estranho", o "Infamiliar", "O inquietante".

Em psicanálise, esse ofício da escuta, a comunicação não se estabelece de forma linear, temporal, transparente. Aquilo a que se chama de interpretação e que está no centro da técnica freudiana, não é tampouco um processo de equivalências, em que se favorece a passagem de uma recordação patogênica de um meio para outro de forma absoluta, ou se decifra um mistério em sua integralidade. O psiquismo inconsciente, entendido como objeto da psicanálise, tem uma linguagem própria e estrangeira à racionalidade. Traduzi-lo demanda sair da opacidade da busca de sentidos e aceitar a etiqueta de traidor, corroborando a conhecida expressão italiana "Traduttore, traditore", em que a infidelidade ao original passa pelo ato de reconstituição de um passado, mais do que sua recuperação idônea.1

Em A interpretação dos sonhos, livro publicado em 1899 com a data 1900, Freud funda a psicanálise através daquilo que chamou de "estrada real que conduz ao inconsciente", referindo-se ao sonho e, com isso, à consolidação dos fundamentos da teoria psicanalítica. Traduzir ou interpretar um sonho significa reconstruir uma linguagem que passou por instâncias psíquicas distintas, ou seja, por "traduções internas", até chegar ao discurso falado pelo sonhante e que agora precisa "fazer o caminho de volta" para ser traduzida. O objetivo da tradução do sonho é chegar à língua de origem, ao conteúdo latente, através de uma fala que descreve um enredo manifesto, cujos elementos principais estão deslocados, condensados ou velados. Assim como na tradução literária haverá sempre uma perda inevitável na passagem de uma língua para outra, em psicanálise haverá sempre aquilo que Freud chamou de "umbigo do sonho", ou seja, o enigmático, o intraduzível. A presença desse desconhecido, ou melhor, desse estranho-familiar sem possibilidade de representação pela palavra é inerente aos processos de tradução. Um elemento que permanece no intervalo e que jamais atravessará a fronteira final.

É relevante pensar que tal elemento "estranho", e verdadeiramente estrangeiro, seja aquilo que a língua veicula de mais autêntico. O tradutor Pedro Heliodoro Tavares, ao comentar justamente a tradução para o português do conceito Das Unheimliche, aponta o aspecto "intraduzível" da palavra e cita um fragmento de Bárbara Cassin (2019, p. 8): "[...] o intraduzível não é o que não pode ser traduzido, mas o que não cessa de (não) traduzir". Para Tavares, o intraduzível é o grande sintoma da diversidade das línguas.

Diante dessas premissas, seria interessante pensar no lugar da verdade da palavra. De que verdade se trata em psicanálise? Qual verdade de um texto original é veiculada em sua tradução para uma língua estrangeira? A intérprete Márcia Atálla Pietroluongo (2013) faz uma sensível descrição de sua experiência profissional que me pareceu pertinente para ilustrar esta questão. Ela diz:

[...] há nesta experiência particular de relação – a interpretação - uma espécie de pequena morte, não tanto no sentido do orgasmo, como a expressão é conhecida em psicanálise, mas no sentido de um intervalo, de um entrelínguas vertiginoso, que é o lugar próprio a que acede o intérprete no instante mesmo de sua escuta, de sua elocução. E há aí um aparente paradoxo, pois quanto ele mais se enraíza no espaço-tempo daquele evento discursivo mais parece se circunscrever num fora, num tempo e espaço outros, cunhados pela vertigem.

A suposta 'verdade', que é não cópia fiel do original, mas uma construção provocada no momento do encontro entre duas subjetividades, manifesta-se na experiência do intervalo, como um espaço de criação. Tal zona de convergência e de circulação parece tão fértil quanto (ar)riscada, já que demanda entrega e abandono mais do que força para irromper uma barreira e se chegar do outro lado. Assim, a proposta deste texto é articular os ofícios da tradução e da psicanálise naquilo que há de 'estranho' e 'verdadeiro' na atividade de deslocar elementos de um mundo e incluí-los num outro.

 

Do estrangeiro ao familiar: uma via de mão dupla

Existem três tipos de estrangeiro: aquele que adentra legalmente um território alheio; aquele que não consegue atravessar a fronteira por seu caráter intransponível, permanecendo do lado de fora; e aquele que deveria permanecer de fora, mas irrompe a barreira e chega ao outro lado clandestinamente. Aqui vamos falar sobretudo dos dois últimos, ou seja, de limites e transgressões.

Tanto a língua de origem quanto a língua de chegada geram resistências numa tradução. Enquanto uma teme dar lugar ao estrangeiro e ter sua integridade identitária ameaçada, a outra resiste em se desvelar (e se perder?) por inteiro. Em psicanálise a resistência também está associada ao atravessamento de uma fronteira, no caso, a do inconsciente. Ela aparece como obstáculo à elucidação dos sintomas e, quanto mais o trabalho psicanalítico se aproximaria do núcleo patogênico, mais defesas são erguidas para impedir essa passagem. No psiquismo, elementos íntimos mas estrangeiros à consciência viverão de forma clandestina nesse limbo entremundos até encontrar (ou não) uma forma de liberdade do lado de fora.

Nesse contexto, conhecido e desconhecido aparecem como opostos. Muitas pessoas que dominam uma língua estrangeira dizem, mesmo assim, preferir ler o texto traduzido para sua língua materna. Podemos atribuir a isso o incômodo que produz o estrangeiro e, por outro lado, o conforto que sentimos diante do que nos soa familiar.

Freud aprofundou a dicotomia estrangeiro/familiar através de um artigo publicado em 1919, no qual apresentou a teoria de que o desconhecido que causa inquietude é justamente o chamado estranho-familiar, ou seja, aquele estrangeiro que há muito habita do outro lado da fronteira e que, repentinamente e sem autorização prévia, irrompe na consciência produzindo a experiência do horror, do medo, da angústia.

O termo Das Unheimliche, que define tal sentimento aterrorizante é, segundo o tradutor Pedro Heliodoro Tavares (2019), o vocábulo freudiano que apresenta o maior número de variantes em traduções. A escolha de Freud por essa palavra-conceito foi laboriosa. Heimlich aponta para o que é íntimo, o que é familiar. Unheimlich, sua negação. E quando admitimos que a negação não opera no inconsciente, Heimlich torna-se aquilo que fora recalcado em Unheimlich. Daí a noção de algo estranho mas conhecido e íntimo, que irrompe na consciência e nos aterroriza.

Ao criar o conceito de Das Unheimliche, Freud tenta nomear e traduzir algo que no sujeito não se faz representar positivamente. Algo da ordem do sobrenatural e que traz também a questão do "duplo" do sujeito. O duplo em psicanálise está associado não só ao narcisismo mas também àquele que nos é oculto dentro de nós. Um desconhecido que nos habita. Um estrangeiro que vive dentro de nós de forma clandestina, e que insiste em romper a fronteira da consciência – quando o faz gera um sentimento aterrorizante, em alemão freudiano, Das Unheimliche.

Tavares e Iannini (2019, p. 23), ao comentar o texto de Freud sintetizaram:

O duplo nos adverte de que nunca somos tão iguais a nós mesmos quanto pretendemos nem tão diversos daqueles que tomamos por distantes, estranhos/estrangeiros.

A noção do duplo também está presente na tradução – tanto na ideia de um espelho que reflete o texto em outro meio, quanto na da intraduzibilidade, referindo-se a uma certa "aura" que está além do sentido, ou do reflexo e é, portanto, intraduzível. Esse duplo infamiliar de um texto é da ordem do silêncio, da obscuridade, da solidão e, segundo Freud, falando de Unheimlich, fazem aparecer a dimensão do desamparo.

O tradutor, assim como o psicanalista precisam de uma capacidade de perder. Freud, já em A interpretação dos sonhos, sabia que haveria perdas na tradução do inconsciente para a linguagem da consciência, sabia que não há tradução sem perdas, sem desvios, sem interesse (TAVARES, 2013).

Pontalis, psicanalista francês, citado por Schiller (2013, p. 22), disse numa entrevista ao jornal Le Monde, em 1967, como enxergava essa situação:

Vejo o tradutor, primeiramente como um ser em sofrimento: perdeu sua língua sem ganhar uma outra [...] O tradutor deve ser dotado de uma capacidade infinita de ser triste: não tem o direito de brincar com suas palavras, e não tem o poder de restituir as palavras do outro. Sorte injusta: quanto mais profunda é sua intimidade com a língua estrangeira, mais ele se detém nela e menos tem os meios de transpor a fronteira.

É nesse hiato, cuja perda do sentido aparece como inevitável, que se faz o encontro com o estranho. É na vivência desse silêncio que não pertence aos meios aos quais parece ligar, que se dá a convergência. Um encontro na dimensão do desamparo. Reter-se a um dos lados da fronteira por temor da vertigem paralisa a passagem e inviabiliza a criação. Aqui, o local de criação está menos ligado à sublimação do artista do que à capacidade de (se) perder para poder reconstruir.

 

Palavra e coisa: a busca da verdade

A linguagem é uma das possibilidades de simbolização. Ela é tanto física quanto psíquica – tanto palavra quanto ideia. Corpo e psiquismo. Na Grécia arcaica, a palavra não valia apenas por seu sentido manifesto, mas trazia consigo um signo a ser decifrado para que um outro sentido oculto pudesse emergir, num processo interminável de decifrações (GARCIA-ROZA, 1990). Ali a palavra era portadora de sua Alétheia, de uma verdade que precisava ser desvelada – manifestada aos olhos do corpo e do espírito. A verdade da palavra era uma busca e não a coisa em si.

Na interpretação dos sonhos, Freud cunhou sua teoria sobre o inconsciente e, com isso, retomou a noção de uma verdade a ser desvelada, visto que tanto o conteúdo manifesto onírico quanto as palavras do sonhante aparecem "codificadas", ou melhor, travestidas. Isso quer dizer que, para tais representações atravessarem a fronteira do inconsciente, foi preciso disfarce. Freud vai falar de recalque, condensação e deslocamento para abordar um processo que implica defesa, descarga (ou satisfação pulsional) e tradução. Defesa através do recalcamento; descarga através da satisfação distorcida do desejo e tradução através da passagem das representações de um meio para outro e da "busca da verdade" na interpretação.

É interessante relacionar a interpretação dos sonhos à Alétheia grega já que a própria etimologia da palavra (a: negação; lethe: esquecimento) sugere a preservação de um conteúdo. Tal noção de verdade se opõe à de opinião ou crença comum, pois sua fonte, interminavelmente decifrável, não está sujeita a uma definição preestabelecida. Ela não é explícita ou evidente nem pretende sê-lo.

Garcia-Roza (1990, p. 36) acrescenta:

Ao contrário da nossa verdade que pretende ser transparente, a alétheia dos gregos era portadora de uma sombra essencial e isto não por defeito ou imperfeição, mas por uma exigência de completude. Ao poeta (aedo, poeta-profeta da Grécia arcaica) não bastava ouvir as palavras, era preciso também ouvir o silêncio.

Nesse sentido, verdade e objetividade não são sinônimos. Como bem representou a intérprete Márcia Atálla Pietroluongo, citada anteriormente, a escuta da verdade está naquilo que se presentifica a partir do encontro de duas subjetividades, mais do que naquilo que se apresenta. Assim, ouvir permite o registro dos sons emitidos, enquanto escutar demanda sensibilidade ao silêncio, ao oculto, àquilo que se presentifica sem se apresentar.

Escutamos mais quando não ouvimos tanto, quando não nos colocamos como pura exterioridade em relação ao que queremos escutar. (GARCIA-ROZA, 1990, p. 45)

Em psicanálise, a noção de verdade acompanha tal premissa, a partir da qual o trabalho está não na busca de uma verdade objetiva, mas na reconstituição do "esquecido". A beleza da alétheia psicanalítica está menos no triunfo da decifração do que na singularidade das distorções e da capacidade de cada sujeito em reconstituir a sua verdade.

Freud, no início de sua teorização, quando realizou um estudo de caso sobre pacientes histéricas, já trabalhava com essa verdade, que logo depois retomaria na interpretação dos sonhos: a tradução do signo em sofrimento corporal ou imagens oníricas é um mecanismo particular (sui generis) e, para interpretá-lo, ou seja, para buscar a verdade neles, é preciso antes de tudo escutar, numa atitude de ignorância quanto ao doxa(senso comum) e de abertura à alétheia (nesse caso, a verdade individual).

O vínculo entre coisa e palavra vai além de uma representação fixa. Tanto para tradução quanto para a psicanálise, a palavra – ferramenta essencial dos dois ofícios – é símbolo. A coisa nunca é a coisa em si, mas o resultado de sua relação com outras ideias. Para o tradutor é importante conhecer a gramática das línguas com as quais trabalha. Ela é um utensílio fundamental. Entretanto, para que o trabalho de tradução aconteça, a justaposição de ferramentas não basta, pois enrijeceria a estrutura a tal ponto de impedir o movimento "da coisa". Tal "coisa", que muitas vezes nem tem palavra para representar, pode ser revelada (ou não) a partir de outros elementos do discurso como ritmo, pontuação, métrica, silêncio.

Aristóteles chamou o termo intermediário entre as palavras e as coisas de "estado de espírito" (GARCIA-ROZA, 1990). Segundo o filósofo, é a semelhança e não a equivalência que habita esse espaço entre coisa-palavra. Nesse caso, o chamado estado de espírito seria o mais próximo de um critério de verdade: aquilo que desponta para além do sentido. Uma experiência do/no intervalo que viabiliza a escuta da coisa no lugar da alteridade.

 

Considerações finais: o espaço de construção

A relação entre língua, tradução e psicanálise chama minha atenção desde as primeiras leituras de Freud, quando me perguntava se algumas palavras conhecidas como desejo, prazer, desprazer, sexualidade e outras significavam aquilo que eu pensava ou se faziam parte de um uso novo dos termos. Hoje entendo que a escolha de Freud por se servir de palavras do senso comum e não de jargões técnicos a partir de línguas clássicas ou de neologismos, vem de um estilo próprio de escrita e sobretudo do bom uso que fez da língua alemã – a tal ponto que, em 1930, recebeu o prestigioso Prêmio Goethe da cidade de Frankfurt, uma das mais importantes premiações culturais da Alemanha.

Se a palavra e as nuances do alemão foram elementos importantes para a construção da teoria psicanalítica, Freud, desde os primeiros escritos chama a atenção para outra comunicação: a do inconsciente.

Em Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico (FREUD, [1912] 2017, p. 99), ele diz:

[...] ele [o médico] deverá dirigir para o inconsciente emissor do doente o seu próprio inconsciente enquanto órgão receptor; deverá sintonizar-se com o analisando, assim como o receptor do telefone se sintoniza com o transmissor. Assim como o receptor transforma novamente em ondas sonoras as oscilações elétricas da linha, originadas por ondas sonoras, da mesma forma o inconsciente do médico é capaz de reconstituir, a partir das ramificações do inconsciente, que lhe são informadas esse inconsciente que determinou as ocorrências trazidas pelo paciente.

Mesmo que o conteúdo da teoria freudiana tenha se desenvolvido alterando certas noções ao longo dos anos, o lugar do "entre" paciente e analista, ou seja, o lugar da transferência, ocupa, desde sua vivência clínica com as mulheres histéricas até o fim de sua obra, um lugar privilegiado: o lugar da verdade. Uma verdade que rima com interpretação, mas que não se limita a uma descoberta. O trabalho psicanalítico, cuja metodologia se baseia numa comunicação entre inconscientes graças a uma relação transferencial, é da ordem do experenciar, do viver, do sentir, do costurar. Uma vivência que vai além da pura descoberta de um segredo. Uma vivência que permite reconstituir uma história a partir da experiência.

O atravessamento da fronteira do inconsciente causa a estranheza, quase hostil, da iminência de um encontro com a diferença. O encontro com o estrangeiro demanda tempo, interesse, curiosidade, abertura, disponibilidade e sobretudo coragem. Tanto a psicanálise quanto a tradução requerem algum tipo de abandono, uma predisposição para a ignorância, no intuito de se deixar surpreender pela comunicação "sem sentido" entre inconscientes.

Traduzir um texto é, antes de tudo, entrar em comunicação com a língua de origem através do som de suas sílabas, do ritmo das frases, da pontuação dos parágrafos, do cheiro das palavras. Tal transferência, tal transposição de uma subjetividade para outra (autor-tradutor) está para além da sintaxe ou de um encaixe numa estrutura já pronta para receber o conteúdo estrangeiro. Trata-se de um trabalho que demanda investimento: lidar com o estranho-familiar e com as incertezas que ele produz.

A psicanálise nasceu na língua e na cultura alemã, na Europa Central, no centro do império austro-húngaro e se desenvolveu sobretudo a partir de intelectuais judeus vindos da Alemanha, de Viena, da Hungria e da Suíça. Essa marca está impressa na teoria de Freud, tanto na forma quanto no conteúdo, e sua tradução para línguas românicas não tem como captar o cerne dessa particularidade.

A importância atribuída à língua alemã e o afeto correspondente ficou clara na leitura de sua biografia (GAY, 1988, p. 572) quando Freud, em 1938, antes de partir para Londres, demonstrou relutância na criação de uma revista de psicanálise aplicada em inglês para substituir a extinta Imago "[...] pois temia que isso significasse o fim de qualquer tentativa de continuar a publicar revistas psicanalíticas em alemão".

Se a produção psicanalítica em alemão diminuiu muito desde a época de Freud, outras línguas não só mostraram fidelidade à psicanálise, reproduzindo e difundindo a obra de Freud, como também vêm contribuindo ao longo dos anos para que tal saber seja desenvolvido e aprimorado.2

Certamente, tradutor e traidor pertencem à mesma família etimológica, ou seja, advêm de uma raiz comum. Traduzir é, de alguma forma, trair o original. Entretanto, aprisionar o saber num meio em nome do purismo e da impossibilidade de lidar com o intraduzível é impedir a comunicação e a vivência do silêncio: um enigma que não requer interpretação, e sim experiência.

 

Referências

FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900). Tradução: Renato Zwick. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.         [ Links ]

FREUD, S. Construções na análise (1937). In: ______. Fundamentos da clínica psicanalítica. Tradução: Claudia Dornbursch. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 365-379. (Obras incompletas de Sigmund Freud, 6).         [ Links ]

FREUD, S. Lembrar, repetir, perlaborar (1914). In: ______. Fundamentos da clínica psicanalítica. Tradução: Claudia Dornbursch. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 151-161. (Obras incompletas de Sigmund Freud, 6).         [ Links ]

FREUD, S. Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico (1912). In: ______. Fundamentos da clínica psicanalítica. Tradução: Claudia Dornbursch. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 93-104. (Obras incompletas de Sigmund Freud, 6).         [ Links ]

GARCIA-ROZA, L. A. Palavra e verdade na filosofia antiga e na psicanálise(1990). Rio de Janeiro: Zahar, 2005.         [ Links ]

GAY, P. Freud: uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.         [ Links ]

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário de psicanálise Laplanche e Pontalis (1982). Tradução de Pedro Tamem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.         [ Links ]

PIETROLUONGO, Márcia Atálla. Experiências subjetivas em interpretação de eventos de psicanálise lacaniana. In: ______. Tradução e psicanálise. 1. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. p. 47-54.         [ Links ]

ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.         [ Links ]

SCHILLER, P. Inconsciente e tradução. In: ______. Tradução e psicanálise. 1. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. p. 17-22.         [ Links ]

TAVARES, P. H.; IANNINI, G. Freud e o infamiliar. In: FREUD, S. O infamiliar. Tradução: Ernani Chaves, Pedro H. Tavares. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 7-25.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: manuela.dumans@gmail.com

Recebido em: 15/12/2020
Aprovado em: 30/12/2020

 

 

SOBRE A AUTORA

Manuela Dumans e Mello Costeira
Bacharel em Comunicação Social pela PUC-Rio.
Pós-graduada em Antropologia Social e Cultural pela Universidade de Estrasburgo (França).
Candidata do curso de Formação Psicanalítica do Centro de Estudos Antônio Franco Ribeiro da Silva do CBP-RJ.

 

 

1 Pode-se falar que tal traição tenha inclusive passado pela tradução do termo Deutung do alemão, que nas línguas românicas ganhou o significado de interpretação . Como citam Laplanche e Pontalis, o termo em alemão aponta para a determinação de um significado, enquanto que "interpretação" abre espaço à subjetividade e até a ideia de arbitrário.
2 Desde 2010 as obras de Freud caíram em domínio público. Até então (70 anos após a morte de Freud), a única tradução autorizada para o português era a tradução de língua inglesa desenvolvida por James Strachey, a  Standard edition of Sigmund Freud complete psychanalytical works, publicada pela editora Imago. A partir de 2010, outras propostas de tradução – diretamente do alemão para o português – foram reconhecidas e publicadas.

Creative Commons License