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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.54 Belo Horizonte jul./dez. 2020

 

SOBRE O ESTRANHO FAMILIAR (DAS UNHEIMLICH)

 

O unheimlich e as transexualidades

 

Unheimlich and transexualities

 

 

Ricardo César GonçalvesI; Paulo Roberto CeccarelliI, II, III

I Círculo Psicanalítico do Pará
II Universidade Federal do Pará
III Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo aborda aspectos da temática das transexualidades e sua relação com o Unheimlich (estranho) apresentado na teoria freudiana. Inicialmente, partimos de uma revisão bibliográfica dos escritos de Freud, buscando conceitos basilares para compreender o masculino e feminino, bem como, os processos identificatórios. Em seguida, analisamos as contribuições teóricas de Robert Stoller ao fenômeno transexual. Concluímos, reiterando que o fenômeno transexual, eventualmente, causa em profissionais especializados um sentimento de estranhamento, por reativar processos anteriormente recalcados. Por fim, entendemos que as transexualidades se mostram como uma "solução", uma forma de "sobrevivência psíquica" (MCDOUGALL, 1997).

Palavras-chave: Unheimlich [estranho], Transexualidades, Clínica.


ABSTRACT

This article addresses aspects of the theme of trans-sexuality and its relationship with Unheimlich (uncanny) presented in Freudian theory. Initially, we started with a bibliographic review of Freud's writings, looking for basic concepts to understand the masculine and feminine, as well as, the identification processes. Then, we analyze Robert Stoller's theoretical contributions to the trans-sexual phenomenon. We conclude by reiterating that the transsexual phenomenon eventually causes a feeling of strangeness in specialized professionals, by reactivating previously repressed processes. Finally, we understand that trans-sexualities are shown as a "solution", a form of "psychic survival" (MCDOUGALL, 1997).

Keywords: Unheimlich (uncanny), Trans-sexualities, Clinic.


 

Espelho, espelho meu
Como reverter
Aquilo que você me deu?
Vou renascer
Desse reflexo que me encara
Essa cara que é minha sem ser

Zênite Astra

 

Um breve percurso histórico sobre as transexualidades

Apesar de sua notória partição nos debates contemporâneos, o "fenômeno transexual" em si, não é novo. Já em meados de 1950, emergiu um número significativo de pesquisas sobre a temática. Provenientes das diversas partes do globo, essas pesquisas não demonstravam uma unanimidade sobre a temática. É válido destacar também, que as diversas áreas do saber se debruçaram sobre o tema, abrangendo desde a medicina positivista até a psicanálise pós-freudiana.

Embora os anos 1950 tenham representado um aumento considerável de indagações sobre a transexualidade, o sentimento de ser do outro sexo é tão antigo como qualquer outra expressão da sexualidade humana. Em seu livro Psycophatia Sexualis, o psiquiatra alemão Krafft-Ebing (1886) relata o caso de um sujeito que afirmava comedidamente que todo seu exterior era "masculino", porém toda sua maneira de sentir e pensar era "feminina".

Evidentemente, a nomenclatura transexual manifestou-se fortemente apenas anos depois, no polêmico artigo denominado Psychopathia Trans-sexualis1 (1949), de autoria do Dr. Cauldwell, o termo "trans-sexualism" é utilizado pela primeira vez (CECARELLI, 2017). Gradualmente, o termo "transexualidade"2 foi ganhando espaço não apenas na pesquisa acadêmica, mas também em diversas áreas da mídia.

Castel (2001) comenta que de uma situação aparentemente "individual", passou-se progressivamente, como atestam todos as estatísticas dos países desenvolvidos, a um crescimento exponencial de demandas por "mudança de sexo".

Stoller (1993, p. 220) reitera que:

Na época de 1950, certos jornalistas, comentaristas de televisão, produtores cinematográficos e editores uniram o exibicionismo de alguns pacientes e dos médicos em shows exóticos.

O debate sobre as transexualidades ganhou ampla repercussão, embora não houvesse consenso entre os teóricos. A forte moralidade religiosa presente nesse período histórico condenava a mudança de sexo, visto que destruiria a capacidade reprodutiva e incentivaria a homossexualidade (STOLLER, 1993). Portanto, tais prerrogativas iriam contra a lei natural de Deus, logo se caracterizariam como pecado.

Novamente, o paradigma sexo e reprodução se faz presente, refletindo também a posição tecnicista e positivista vigente na majoritária classe médica (FOUCAULT, 1985). Em outras palavras, o discurso médico relaciona o termo "sexualidade" com a reprodução biológica, utilizando-se de uma lógica utilitarista como forma de dominação e administração dos discursos sobre a sexualidade.

A psicanálise, em um primeiro momento, empregou a descrição nosográfica da psicose para caracterizar o fenômeno transexual. Stoller (1993, p. 206) comenta que: "Inicialmente, alguns analistas de 1950 descreviam o transexualismo como uma máscara para psicose".

A despatologização das transexualidades se deu de forma lenta e gradativa. Em 2010 o Ministério da Saúde francês retirou o transexualismo da lista de patologias mentais. No Brasil o Sistema Único de Saúde (SUS) passou a realizar cirurgias de redesignação sexual (transgenitalização) a partir de 2008. Além disso, o governou brasileiro também passou a reconhecer o nome social no cartão nacional de saúde e em diversos documentos (CECCARELLI, 2017).

Feitas as considerações iniciais do percurso histórico sobre esse enigma denominado transexualidade, elucidaremos algumas definições teóricas que visem balizar nossa trajetória.

Sendo assim,

[...] em transexualidade, o prefixo 'trans' sugere que se pode atravessar, passar através do corte da sexuação. O transexual seria, então, aquele que 'viaja' através da sexuação. (CECCARELLI, 2017, p. 19)

Contudo, é válido salientar que, diferentemente do mito de Tirésias,3 o transexual não "permuta" seu sexo. Ele troca as insígnias do gênero pelas aparências externas presentes no outro sexo.

Roudinesco e Plon (1998, p. 765) esclarecem:

Somente o transexualismo leva o sujeito não apenas a mudar de estado civil, mas também a transformar, através de uma intervenção cirúrgica, seu órgão sexual normal num órgão artificial do sexo oposto. Assim, o transexual masculino tem a convicção de ser uma mulher, embora anatomicamente seja um homem normal. Do mesmo modo, a mulher transexual está convencida de ser homem, muito embora seja mulher em termos anatômicos.

Ressalta-se que o desejo de mudar de sexo existia bem antes da invenção e do aperfeiçoamento de procedimentos cirúrgicos. Na mitologia grega, três personagens abarcam esse fenômeno: Cibele, Átis e Hermafrodito (ROUDINESCO; PLON, 1998).

Ademais, aquilo atualmente conhecido como transexualidades não é próprio de nossa cultura e de nossa época. O que é novo é justamente a possibilidade de "mudar de sexo", graças às avançadas técnicas de cirurgia e à hormonoterapia constantes (CECCARELLI, 2017). Diante das transexualidades, somos convocados a pensar em suas diversas facetas.

Neste artigo pretendemos analisar, através do arcabouço teórico disponibilizado na teoria psicanalítica, a relação entre as transexualidades e o sentimento de estranheza [Unheimlich], frequentemente sentido por profissionais especializados (psicanalistas, psicólogos e psiquiatras) frente à demanda do transexual.

 

Freud e a esfinge: o enigma dos sexos

Considerado a medula espinhal da psicanálise, o complexo de Édipo ocupa um lugar central das teorizações freudianas. Assim sendo, o mestre de Viena começa a pensar sobre o conceito de Édipo a partir de vivências que experenciou no decorrer da vida e faz paralelos com grandes obras da literatura e do teatro.

De acordo com Moreira (2004), a teorização sobre o complexo de Édipo remete a clássicos da literatura mundial, como Hamlet, de Shakespeare, e à trama do parricídio de Os irmãos Karamazov, obras que reencenaram o mito de Édipo, da tragédia de Sófocles. Essa construção teórica, que começa em uma das inúmeras cartas que Freud trocava com seu amigo Wilhelm Fliess, perpassa por sonhos, sua relação com seus pais e parentes próximos.

Como observado, é lícito adentrar para a íntima ligação da vida pessoal de Freud e sua construção conceitual do complexo de Édipo.

Burker (2010, p. 219) acertadamente afirma:

Édipo incorpora o detetive de seu próprio destino [...] Freud se identificava com Édipo. Ele também era um homem do destino, um herói que vence os obstáculos em seu caminho.

Em suma, a descoberta do complexo de Édipo, na realidade, se trata de sua própria descoberta.

Loures e Borges (2017, p. 582) apontam:

Ao acompanharmos os passos que levaram Freud ao complexo de Édipo, inevitavelmente esbarramos em sua autodescoberta. Não diferente de nós, Freud reencena a trama do herói de Sófocles, cujo desvelamento de sua origem acontece de forma gradativa e engenhosa – assim como percurso de uma análise. Nesse desvelamento, Édipo, que se vê como estranho em Tebas, se descobre, contudo, filho de Laio e Jocasta. E Freud, ao se deparar com o estranho destino de Édipo, encontra na tragédia algo de familiar: uma metáfora de seus próprios desejos infantis (grifo nosso).

Torna-se interessante estabelecer uma analogia entre a figura do herói trágico Édipo e o arqueólogo do inconsciente Freud. Indubitavelmente, como afirma a tragédia grega, Édipo foi capaz de desvendar o enigma da esfinge. Já Freud, por sua vez, caracterizou-se por desvendar os segredos da sexualidade infantil. Ambos, Freud e Édipo, demonstraram ser capazes de resolver enigmas, e segundo as palavras de Sófocles em grego antigo: "Quem desvendou o célebre enigma é um homem poderoso!" (BURKER, 2010).

Freud utiliza-se da peça de Sófocles Édipo Rei como forma de explicar a constituição psíquica humana, sua trajetória, e o vínculo de identificação com os pais se desdobraria a ponto de construir um objeto de desejo na fase adulta. Esse percurso costuma ser tortuoso e estruturante, na medida em que estabelece em grande parte dos casos a neurose no indivíduo (ROUDINESCO; PLON, 1998).

Burker (2010, p. 219) afirma:

Freud encontrara um mito que tornou central para psicanálise e continuou a desenvolver um mito que, para ele, explicava os homens, as mulheres, a família, o sexo e a civilização.

Diante disso, leva-se em conta a tendência universalizante do complexo de Édipo. Nas palavras do pai da psicanálise:

Verifiquei, também no meu caso, a paixão pela minha mãe e o ciúme do pai, e agora considero isso como um evento universal do início da infância. (FREUD, [1887] 1986, p. 272)

O complexo de Édipo constitui-se como uma experiência vivenciada por uma criança por volta dos quatro ou cinco anos de idade, que, motivada por um forte desejo de ordem sexual incontrolável, precisa aprender a lidar e limitar seus impulsos (NASIO, 2007).

Em Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, Freud ([1925] 2011), pela primeira vez, admite que o primeiro objeto de amor da menina é também a mãe. Como veremos, na teoria freudiana, a posição masculina e a feminina não são de simples apreensão.

Em Freud não encontramos o termo "gênero",4 todavia é possível extrair valiosas contribuições para a temática. Sucintamente, podemos dizer que, em Freud, encontramos bases alicerçantes para indagar a questão do gênero.

No texto Sobre as teorias sexuais infantis ([1908] 2015), o intérprete dos sonhos escreve sobre a primeira distinção executada pela criança, isto é, homem/mulher5 ou pai/mãe. De forma análoga, em um primeiro momento a criança não faz correspondência entre sexo e gênero. É somente em um segundo momento, na "primazia do falo", que a criança atribuirá a todos os seres (até as coisas inanimadas) um órgão sexual semelhante ao seu. Nessa etapa, o sexo feminino é definido pela ausência de pênis (FREUD, [1908] 2015).

Ser capaz de distinguir pai/mãe e colocar-se de um lado ou de outro é, sem objeção, uma forma de identificação. Refere-se a uma identificação independente dos conflitos edípicos, que desempenha um papel importante na história pregressa com complexo de Édipo:

É possível dizer que, em Freud, existe uma classificação segundo o gênero, uma distinção que começa em uma etapa anterior à castração, sem levar em conta a anatomia, cuja base é a definição pai/mãe. A apreensão dos gêneros se faz sem levar em conta o órgão sexual. Isso significa que o que distingue os gêneros não é o sexo anatômico, inversamente, o sexo anatômico não garante, a priori, o gênero. A presença ou a ausência do órgão sexual masculino ou feminino não constitui garantia de que o sujeito se coloque ao lado dos homens ou das mulheres [...] trata-se, então, de dois movimentos distintos que ocorrem em momentos diferentes: um, a distinção dos gêneros, outro, a diferença dos sexos. (CECCARELLI, 2017, p. 57)

Apesar da importância atribuída ao período pré-edípico, o período edipiano dará um "acabamento" à identidade de gênero, visto que reforçará as implicações de pertencer a um gênero ou a outro. A angústia de castração, a inveja do pênis, resumidamente, todos os aspectos correspondentes ao complexo de Édipo, ocorrerão apenas depois da consolidação do núcleo da identidade de gênero.

A partir de Freud, os fatores sexuais, sobretudo a sexualidade infantil, passam a ganhar uma autêntica importância na constituição psíquica humana. Suas contribuições teórico-clínicas são magistrais para a compreensão dos fatores inconscientes. O complexo de Édipo6 representa a pedra angular na qual repousa o edifício da psicanálise. Da mesma forma, Freud fez da esfinge o símbolo de representação da psicanálise.

Burker (2010, p. 224) relembra que:

[...] uma pequena gravura de Édipo e a Esfinge [...] se encontrava pendurada no consultório de Freud, próximo ao divã, onde ele poderia contemplá-la enquanto decifrava os enigmas de seus pacientes.

Roudinesco (2016) recorda que Freud foi um homem de sua época, e o complexo de Édipo analisado por Freud corresponde par excellence ao recorte social de seu tempo. A psicanálise pós-freudiana se debruçará a estudar mais profundamente o período pré-edipiano. Entre os diversos teóricos que surgiram, destacaremos as contribuições de Robert Stoller ao fenômeno transexual.

 

Contribuições de Robert Stoller para as transexualidades

Nascido em Nova York, no Bronx, Robert Stoller foi um psiquiatra e psicanalista pertencente à terceira geração de analistas norte-americanos. Stoller obteve seu doutorado em medicina em São Francisco e anos depois, foi nomeado professor de psiquiatria na Universidade da Califórnia de Los Angeles, onde criou a Gender Identify Research Clinic (ROUDINESCO; PLON, 1998).

Além disso, a obra stolleriana é composta de inúmeras publicações, além de participação em eventos os mais diversos. Suas contribuições teórico-clínicas giram em torno de temas tais como sexualidades, perversões, construção da identidade sexual e da identidade de gênero, transexualidades, problemática de gênero, dinâmicas das disfunções e da excitação erótica e outras tantas.

Stoller é considerado um teórico freudiano sui generis, carregando com muita seriedade as contribuições do pai da psicanálise (FERRAZ, 2002). Outrossim, Stoller privilegiou as ideias freudianas não organicistas e, sobretudo, acreditava fortemente que não existiria uma "sexualidade natural" regrada por imperativos biológicos. Ao contrário, para Stoller, a sexualidade se baseia na dinâmica pulsional e na história das relações objetais. No presente escrito, centraremos nossas observações nas contribuições inovadoras de Stoller para a construção da identidade de gênero.

O termo "gênero" é utilizado por Stoller pela primeira vez em 1964, época em que os alunos da escola lacaniana de psicanálise comentavam a teoria clássica de Freud sob nova ótica/perspectiva. Robert Stoller questionou a teoria clássica de ponta a ponta, em especial ao introduzir na psicanálise a noção de diferença sexual e de gênero (gender).

Um dos seus principais trabalhos, Sex and Gender (1968), assim como inúmeros outros escritos, renovariam a abordagem clínica das transexualidades, das perversões e da dinâmica do erotismo (ROUDINESCO; PLON, 1998). Para o autor, "[...] sexo e gênero de modo algum necessariamente estão relacionados" (STOLLER, 1993, p. 21).

A contribuição do conceito de gênero para a psicanálise representa um valor inestimável. A concepção stolleriana parte do pressuposto de que faltava ao freudismo clássico uma categoria que permitisse diferenciar radicalmente a pertinência da anatomia (o sexo) da pertinência a uma identidade social ou psíquica (o gênero), existindo a possibilidade de ambas terem uma dissimetria radical (ROUDINESCO; PLON, 1998).

Assim, a distinção entre sexo e gênero, utilizada para melhor compreensão da psicodinâmica transexual sugerida por Stoller (1993), tem por finalidade isolar, para melhor delimitar, os aspectos da psicossexualidade que são "independentes" do biológico. Em sua obra, o psicanalista norte-americano busca analisar a gênese do fenômeno transexual.

Essa odisseia teórica, por meio das ruínas psíquicas, por assim dizer, levou Stoller a pesquisar profundamente os primeiros anos de infância de seus pacientes. Na concepção do autor, o processo formador da identidade de gênero, ocorre por meio de identificações primárias no período pré-edipiano. Em outras palavras, a gender identity será resultado das aquisições de masculinidade e feminilidade em um momento primordial (STOLLER, 1993).

Stoller argumenta que a primeira forma de identidade de gênero origina-se na simbiose com a mãe na qual não existe fronteira nem anatômica, nem psíquica. Por meio dessa perspectiva, a identificação primeva pré-verbal pode naturalmente incrementar o desenvolvimento da feminilidade nas meninas, porém, para o menino, ela se tornará um obstáculo a ser superado na construção da masculinidade.

Diante disso, para Stoller (1993, p. 37):

A masculinidade nos homens não é simplesmente um estado natural que precisa ser preservado para desenvolver-se sadiamente, ao contrário, ela é uma conquista.

Conforme Stoller (1993, p. 49), "[...] a gratificação não conflituosa pode levar ao impasse no desenvolvimento". Dito de outra forma, uma simbiose mãe-bebê excessivamente estreita e gratificante, não perturbada pela presença de uma figura paterna, pode impedir a construção da masculinidade. Portanto, os eventos relativos ao período anterior ao complexo de Édipo também são imprescindíveis para compreensão sobre as transexualidades.

Ainda sobre o primeiro estágio de identificação o psicanalista norte-americano ressalta: "No estágio pré-edípico existe a protofeminilidade formada pelo abraço da mãe" (STOLLER, 1993, p. 259).

O menino, para entrar no conflito edípico, terá que progressivamente se desidentificar da mãe e paulatinamente se identificar com o pai (temido/admirado) para, assim, ter direito à neurose.

Nós estamos acostumados a encontrar o conflito edípico como uma fonte de patologia. Dessa forma, nós podemos esquecer que nesse conflito – com suas ameaças, invejas, medos e raivas – estão as forças necessárias para produzir as estruturas de caráter, tais como a masculinidade e a feminilidade, que mantêm a sociedade. Os meninos transexuais, contudo, nos lembram de como é necessário o desenvolvimento com sofrimento e sugerem que conflito de menos também pode produzir patologia. (STOLLER, 1993, p. 93)

Em seus estudos sobre Masculinidade e feminilidade(1993) e como citado anteriormente em Sex and Gender(1968), Stoller também traça um breve perfil das mães de crianças transexuais. Em sua concepção, essas mães seriam basicamente bissexuais, apresentando um perfil depressivo. Além disso, não é raro casos em que anteriormente existiu uma criança que veio a falecer (geralmente do sexo oposto ao da criança que nasce).

Essas crianças, verdadeiros falos da mãe, têm seu ‘destino transexual' traçado bem cedo, entre dois ou três anos de idade, às vezes, antes. (CECCARELLI, 2017, p. 44)

Em síntese, a identidade de gênero será resultado das identificações e das aquisições da masculinidade e da feminilidade. Não excluindo também os diversos fatores sociais, comportamentais e imaginários presentes em nossa cultura, a questão do gênero em si é extremamente vasta, e neste trabalho a questão não foi tratada de forma exaustiva.

Adicionalmente, Stoller (1993, p. 28) nos lembra de que:

Masculinidade ou feminilidade é uma convicção – mais precisamente, uma densa massa de convicções, uma soma algébrica.

Por fim, o psicanalista norte-americano conclui que o gênero prima sobre o sexo.

 

Um corpo infamiliar: o transexual e o Unheimlich

Neste tópico abordaremos mais detalhadamente a relação entre as transexualidades e o sentimento de estranheza (unheimlich), frequentemente presente nos médicos e profissionais especializados ao se deparar com a demanda do transexual.

Souza (2015) nos lembra que o Infamiliar, além de ser um trabalho audacioso de Freud ([1919] 2019), pois carrega uma estética literária peculiar, cronologicamente é um escrito na transição da primeira para a segunda tópica do aparelho psíquico. Destarte, através do terreno da psicanálise freudiana, somos convidados a pensar que o humano é regido por algo que lhe é íntimo e estranho, isto é, o inconsciente (SOUZA, 2015).

Os transexuais, por vezes, têm sensação de ser inquilinos em seu próprio corpo. Através do ponto de vista expresso no texto freudiano o Infamiliar (FREUD, [1919] 2019), essa inusitada estranheza, pode ser observado quando se é confrontado à dissimetria entre seu sexo anatômico e seu gênero. Embora o transexual tenha consciência de seu sexo anatômico, ocorre uma familiaridade/estranheza (heimlich/unheimlich) entre seu sentimento de identidade sexual e a imagem que tem de seu corpo. Ou seja, entre seu sexo e gênero. Essa familiaridade/estranheza o acompanha em inúmeras situações ao longo da vida, causando-lhe desconforto e levando-o à demanda da cirurgia de redesignação sexual.

Adicionalmente, o sujeito transexual apresenta aquilo que denominamos de "narcisismo negativo". Por esse conceito, entende-se

[...] uma profunda repugnância pelos órgãos genitais que são percebidos como "estranhos apêndices" destruídos de valor erótico, pois no período autoerótico e do narcisismo primário não foram libidinalmente investidos. (CECCARELLI, 2008, p. 59)

Dito de outro modo, o transexual testemunha um arranjo pulsional muito singular, visto que em sua cartografia erógena certas partes de seu corpo não receberam "informação libidinal" do ponto de vista econômico.

A mesma familiaridade inquietante pode ser igualmente observada em psicanalistas, psicólogos e psiquiatras frente àquele ou àquela [diante daquele ou daquela] que se diz ser portador(a) de um desacordo entre seu corpo anatomobiológico que não apresente nenhuma anomalia e sua identidade de gênero. Não raro, somos tomados por um sentimento de horror, espanto ou até mesmo, em certos casos, rejeição. Além disso, não excluímos as atitudes defensivas contratransferenciais que podem interferir no processo terapêutico.

Pode ocorrer que o sentimento de estranheza produzido frente ao transexual esteja relacionado a complexos infantis que haviam sido recalcados. Essa inabitual estranheza é revivida, mais uma vez, por meio de movimentos que o processo terapêutico suscita. Stoller (1993, p. 223) nos adverte dizendo que: "A moralidade pode ser a mais inflexível das contratransferências".

Ademais, a transexualidade não constitui uma entidade nosográfica fixa (definida), e progressivamente aceita-se que ela seja uma manifestação da sexualidade como qualquer outra. Nesse sentido, não se pode falar de uma transexualidade típica, assim como não é plausível dizer existir uma "heterossexualidade ou homossexualidade típica" (CECCARELLI, 2008).

Sintetizando, enquanto para a maioria das pessoas existe uma correspondência simétrica entre seu corpo anatômico e a representação psíquica (fantasmática) desse corpo, nos transexuais o cenário é diferente. Esses sujeitos, embora reconheçam possuir um corpo anatômico de homem ou mulher, experienciam uma profunda estranheza, uma inquietação, um mal-estar: o corpo lhes parece infamiliar. Para esses estrangeiros de si mesmos, anatomia não é o destino em que desejam pousar.

 

Considerações finais

Em nossa pequena excursão pelo transexual, procuramos demonstrar alguns apontamentos teóricos que consideramos relevantes para uma melhor compreensão da temática. Parece-nos claro que, na realidade, a transexualidade mostra-se como uma 'solução'.

Entendemos solução no sentido matemático do termo, ou seja,

[...] uma equação que comporta diferentes variantes frente às quais, tal como em um sistema vetorial de forças, uma resultante, uma solução, será encontrada. (CECCARELLI, 2008, p. 56)

Frente às múltiplas variáveis possíveis, a transexualidade é um arranjo pulsional singular, que leva o sujeito ao caminho mais radical das identificações.

Ao estudar as dinâmicas pulsionais presentes nas transexualidades, somos convocados a refletir sobre as posições de masculinidade e feminilidade na cultura ocidental: quais as condições para que alguém possa afirmar com segurança ser homem ou mulher? Indubitavelmente, aspectos sociais permeiam essa pergunta, pois as representações simbólicas de masculino e feminino variam de acordo com o tempo e a cultura. É fato que as posições masculinas e femininas sofreram mudanças.

Em A mínima diferença, Maria Rita Kehl (1996, p. 23), reitera que:

Na dinâmica de encontro e desencontro entre os sexos, a intensa movimentação das tropas femininas nos últimos trinta anos parece ter deslocado os significantes do masculino e do feminino.

Dissertando sobre o processo identificatório, Freud ([1923] 2011) ressalta que as primeiras relações com os progenitores são fundamentais para construção do sentimento de identidade. Outrossim, masculinidade e feminilidade seriam pontos de chegada estabelecidos ao longo dos processos identificatórios.

Stoller (1993), utilizando-se de uma contribuição cultural cruzada, busca estabelecer hipóteses acerca das origens da masculinidade. Ao analisar achados etnográficos da Nova Guiné, Stoller (1993) observa que para a tribo dos Sâmbia, a construção da masculinidade requer uma série de ritos, entre eles, um dos procedimentos a que os meninos devem se submeter para se tornarem masculinos é ingerir sêmen via felação. Destarte, através dessa contribuição antropológica, Stoller (1993) procura demonstrar como a masculinidade é uma conquista a ser adquirida progressivamente e, portanto, não é um simples estado natural.

Masculinidade(s) e feminilidade(s) mostram-se como destinos pulsionais, influenciados também pelo imaginário social em que se está inserido.

Ademais,

[...] não se nasce psiquicamente menino ou menina, nasce-se macho ou fêmea, em função da anatomia, e torna-se homem ou mulher, no sentido psíquico. (CECCARELLI, 2017, p. 160)

Tratando-se de transexualidades, muita coisa mudou no decorrer dos últimos anos e, atualmente, o número de procedimentos cirúrgicos para redesignação tem se revelado exponencial em diversos países.

Gostaríamos de terminar enfatizando que não buscamos estabelecer um diagnóstico das transexualidades, pois entendemos que nem as neuroses, nem as psicoses, nem as perversões oferecem uma compreensão satisfatória desta categoria nosográfica. Além disso, toda tentativa de criar um enquadre que lhes fosse próprio mostrou-se impossível.

Concluímos insistindo na colocação de Stoller (1993, p. 26):

Utilize todas as técnicas de coleta de dados que lhe agradem, mas jamais pare de psicanalisar.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Ricardo César Gonçalves
E-mail: ricardo-cesar123@hotmail.com

Paulo Roberto Ceccarelli
E-mail: paulorcbh@mac.com
Homepage: https://www.ceccarelli.psc.br

Recebido em: 10/12/2020
Aprovado em: 28/12/2020

 

 

SOBRE OS AUTORES

Ricardo César Gonçalves
Graduado em Psicologia pela Universidade da Amazônia (UNAMA).
Pós-graduando em psicopedagogia pela Escola Superior da Amazônia (ESAMAZ).
Psicanalista em formação pelo Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA).

Paulo Roberto Ceccarelli
Psicólogo.
Psicanalista.
Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris 7 - Diderot.
Pós-doutor por Paris 7 - Diderot.
Chercheur associé da Universidade de Paris 7 - Diderot.
Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.
Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.
Sócio fundador do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA)
Membro da Société de Psychanalyse Freudienne, Paris.
Pesquisador associado do LIPIS (PUC-RJ).
Professor e orientador de pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFPA.
Professor e orientador de pesquisa no Mestrado Profissional de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência da Faculdade de Medicina da UFMG.
Membro do Programa Antártico Brasileiro.
Diretor científico da Clínica Ampliada de Saúde Mental. (CASM: https://casm.bhz.br). Coordenador do Instituto Mineiro de Sexualidade (IMSEX - www.imsex.com.br).

 

 

1 Vale ressaltar que o título do artigo do Dr. D. O. Cauldwell provavelmente teve como inspiração o célebre trabalho de Krafft-Ebing.
2 "Termo introduzido em 1953, pelo psiquiatra norte-americano Harry Benjamin, para designar um distúrbio puramente psíquico da identidade sexual, caracterizado pela convicção inabalável que tem um sujeito de pertencer ao sexo oposto" (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 764).
3 Tirésias foi um famoso profeta cego de Tebas. Sua particularidade se dá pelo fato de ter passado sete anos transformado em mulher. Ele também é um dos personagens da Odisseia, de Homero.
4 "Não encontramos o termo "gênero", pois em alemão, uma só palavra designa sexo e gênero: Geschlecht" (CECCARELLI, 2017, p. 56).
5 Novamente um problema de tradução: "no original lê-se: Mannilich oder weiblich, ou seja, 'masculino ou feminino'" (CECCARELLI, 2017, p. 58).
6 Outro vetor relevante a ser abordado é o lugar do sujeito no desejo do Outro. Em outras palavras, o que o enigma da esfinge nos diz? Para a psicanálise, o enigma da esfinge nos questiona sobre o nosso lugar no mundo e no desejo do outro. Analogamente, o lugar que Édipo ocupava no desejo de seus pais era o da morte. Édipo literalmente significa "pés inchados", pois seus pais quiseram eliminá-lo quando nasceu. Seu nome representa o desejo de seus pais (QUINET, 2017).

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