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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.54 Belo Horizonte jul./dez. 2020

 

PSICANÁLISE: TEORIA E CLÍNICA

 

A psicossomática, laços da teoria de Pierre Marty e André Green

 

Psychosomatics, ties of Pierre Marty and André Green theory

 

 

Celso Perez Melgaré

I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
II Hospital Nossa Senhora da Conceição

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo aborda os fundamentos principais da psicossomática psicanalítica de Marty. que representou um avanço na compreensão e no tratamento psicoterapêutico dos somatizadores na segunda metade do século passado. Na virada para este século, a pesquisa de André Green estabeleceu as bases teóricas para melhor entendimento das patologias não neuróticas, entre as quais colocou a psicossomática. Esse grupo de psicopatologias apresenta fragilidade egoica, falhas no processo de simbolização e tendência à atuação, em que a ação da função desobjetalizante e o trabalho do negativo são elementos fundamentais.

Palavras-chave: Psicossomática psicanalítica, O trabalho do negativo, Patologias não neuróticas.


ABSTRACT

This article addresses the main foundations of Pierre Marty's psychoanalytical psychosomatics, which represented an advance in the understanding and psychotherapeutic treatment of somatisers in the second half of the last century. At the turn of this century, Andre Green's research established new theoretical basis for a better understanding of non-neurotic pathologies, among which he included psychosomatics. The group of non-neurotic psychopathologies is characterized by presenting egoic fragility, flaws in the symbolization process and a tendency to act, in which the action of the deobjectalizing function and the work of the negative are fundamental elements.

Keywords: Psychoanalytical psychosomatics, The work of the negative, Non-neurotic pathologies.


 

Origens históricas

No início da década de 1950, Pierre Marty e seus colegas da Escola Psicossomática de Paris tiveram o mérito de identificar nos pacientes somatizadores, com queixas de cefaleia, um funcionamento psíquico diferente daquele dos neuróticos. Até então, as somatizações eram vistas como um sintoma semelhante às neuroses, fruto do recalcamento.

As neuroses atuais de Freud, identificadas em 1895, foram as primeiras observações psicanalíticas das patologias que se manifestavam com sintomas preferencialmente somáticos. Freud atribui como causa a ausência ou inadequação da satisfação sexual. A libido acumulada transformava-se diretamente em angústia sem mediação psíquica. Acreditava que a causa se devia a uma substância química, que seria identificada mais adiante.

Esses pacientes não eram acessíveis ao tratamento analítico, pois as neuroses seriam de causa orgânica, diferentemente das psiconeuroses. Os pacientes apresentavam sintomas inespecíficos como pressão intracraniana, dores vagas, fadiga crônica, cefaleias, cansaço. O coito interrompido, a masturbação e a continência sexual seriam as origens do problema. Como se sabe, no fim do século XIX, eram características desse período a repressão sexual e a dominação do patriarcado. O grupo das neuroses atuais foi perdendo importância no trabalho de Freud enquanto a psicanálise prosperou na investigação das patologias decorrentes do recalcamento e suas manifestações simbólicas.

Ferraz (2010) aponta que a volta do interesse pelas neuroses atuais se deveu ao trabalho Além do princípio de prazer, na virada de 1920, quando Freud introduziu o conceito da pulsão de morte e retomou o tema de uma psicologia do traumático, ou seja, do não representável. Ferraz (2010) prioriza, entre os elementos da pulsão de morte, aquele que se define fundamentalmente como um dispositivo do não representável. Nesse sentido, o retorno ao estado inorgânico poderia ser visto mais como um retorno ao pré-representacional, que remete ao corpo biológico primordial.

 

O pensamento operatório

No XXIII Congresso de Psicanalistas de Línguas Romanas em Barcelona, em 1962, Pierre Marty e Michel de M'Uzan apresentaram uma comunicação original com o título O pensamento operatório, dos conceitos seminais da psicossomática psicanalítica.

Os fundadores da Escola Psicossomática de Paris apresentaram, nesse estudo, um pensamento clínico original, rompendo com o pressuposto médico da psicossomática ao introduzir a ideia da participação da função psíquica na doença orgânica. Sua investigação e tratamento se voltavam para o funcionamento psíquico. Seus conceitos fundamentais, além do pensamento operatório, eram a depressão essencial, a mentalização, as regressões, as desorganizações e as somatizações.

O pensamento operatório é um pensamento consciente destituído de subjetividade e desejo, sem ligação com o fantasiar ou o simbolizar, como se tivesse perdido a ligação com a fonte pulsional. Um pensamento de sobrevivência. Esse pensamento está submetido ao "de fora", voltado para a realidade exterior, ligado a coisas e não a conceitos abstratos. Esse conceito sugere precariedade da função psíquica, indicando um processo de investimento de nível arcaico.

No seu livro A psicossomática do adulto ([1990] 1993), Pierre Marty afirmava que a psicossomática provém diretamente da psicanálise. O método e o sentido geral do tratamento modelam-se sobre os padrões da psicanálise. Na prática, difere dela quanto aos pacientes que trata, com problemas somáticos. A técnica indicada é aquela que respeita as insuficiências do funcionamento psíquico desses pacientes.

Hanna Kamieniecki (1994 apud Ferraz, 2010, p. 2), psicanalista e historiadora da psicossomática, sintetiza as características que os autores da Escola de Paris atribuem ao paciente somatizador:

• É bem adaptado socialmente, até mesmo sobreadaptado aos seus padrões culturais;

• não deixa transparecer manifestação afetiva quando em contato com o investigador;

• julga que tudo vai bem em sua vida, apesar de suas dificuldades ou dos dramas que sua história revela;

• apresenta uma vida onírica pobre, que traduz o bloqueio da atividade fantasmática;

• sua vida mental consciente, de qualquer nível intelectual ou cultural, parece estar separada das fontes vivas do inconsciente, reduzida ao factual e ao atual, como um pensamento pragmático (pensamento operatório);

• revela uma pobreza da expressão verbal;

• tem a necessidade de ver no outro um duplo de si mesmo; mecanismo de reduplicação projetiva.

Essas descrições traduzem um bloqueio dos investimentos libidinais e agressivos que limitam a ação funcional da atividade mental. Assemelham-se aos pacientes normopatas descritos por Joyce McDougall (1983).

Pierre Marty (1993), no seu L'ordre Psychosomatique, substituiu o pensamento operatório pela noção de vida operatória para melhor dar conta da redução do pensamento em relação à valorização do comportamento e à inclusão da depressão que a ela se associava.

O quadro depressivo chamado de depressão essencial define-se pela falta, pelo apagamento em toda escala da dinâmica mental. Não aparecem o sentimento de culpa nem as auto acusações. Não se encontra nela a relação libidinal regressiva e ruidosa das outras formas de depressões neuróticas ou psicóticas. Esses autores constataram que a depressão essencial precedia o adoecimento somático. Por ser um quadro silencioso em seus sintomas, muitas vezes não era percebido nem pelos familiares.

 

Mentalização

O conceito de mentalização, criado por Pierre Marty na década de 1970, corresponde a todo o campo de elaboração psíquica, que consiste nas operações de representações e simbolizações por meio das quais o aparelho psíquico busca regular as energias instintivas, pulsionais e agressivas. São atividades essenciais na regulação do equilíbrio psicossomático.

Pierre Marty (1993, p. 25) define as representações no sentido freudiano como uma "[...] evocação de percepções que foram inscritas, deixando traços mnêmicos". Acrescenta que "[...] a inscrição das percepções e sua evocação posterior são acompanhadas de tonalidades afetivas agradáveis ou desagradáveis que deixam pontos de fixação". Um pré-consciente rico em representações é característica das psiconeuroses, as neuroses mentais como chamava Pierre Marty. No caso do paciente somatizador, encontra-se uma pobreza de simbolização que não possibilita a elaboração psíquica, o que ele chamava de má mentalização.

Para descarregar o afluxo de excitações ao psiquismo, o organismo conta com três vias: a via orgânica, a ação e o pensamento. São os recursos disponíveis para dar conta dos estímulos internos ou externos a que é submetido. A ordem mais evoluída é a do pensamento, seguido pela ação e, por último, a via orgânica.

A economia psicossomática de Pierre Marty se apoia em duas teorias: a dos instintos de vida e de morte e a do evolucionismo. No curso da evolução individual (como na teoria freudiana), se estabeleceria um ir e vir do sistema evolutivo e regressivo, que produziria pontos de fixação capazes de deter os movimentos regressivos no psicossoma. Os conflitos entre as pulsões são os motores do confronto entre os movimentos evolutivos versus os movimentos regressivos.

 

Regressões, desorganizações e somatizações

"Os fenômenos de fixação e regressão ocupam o lugar central em nossa concepção psicossomática", dizia Pierre Marty (1993, p. 24).

Freud escreveu, em Sobre o narcisismo: uma introdução, que o aparelho psíquico funciona como um meio cujo papel é dominar as excitações que, em caso contrário, provocariam as sensações penosas ou efeitos patogênicos. Damásio, neurobiologista contemporâneo, citado por Aisenstein (2004), vai no mesmo caminho e qualifica o psiquismo como uma espécie de filtro para lidar com as excitações.

Quando a experiência traumática pulsional supera a defesa psíquica, faz com que a economia psicossomática reaja através da regressão e da desorganização. O movimento regressivo, encontrando pontos de fixação, tem uma possibilidade de se reorganizar e se reequilibrar, como é o caso das fixações no nível mental. Assim, um neurótico teria a vantagem de reagir aumentando seus sintomas neuróticos, evitando a somatização.

O movimento regressivo, na hipótese de só encontrar um ponto de fixação mais arcaico, ocasionaria inicialmente traços de depressão, depois perturbação do funcionamento do pré-consciente e, se não puder ser contido, vai adiante até a desorganização, que é chamada de progressiva, porque não consegue ser contida. Segue rumo ao campo somático, sob a força da pulsão de morte.

O pensamento de Pierre Marty punha ênfase na falha do aparelho psíquico, traduzido na pobreza das representações e simbolizações, também na escassez ou ausência de sonhos. Essa falha se devia às vicissitudes da relação precoce mãe-bebê no desenvolvimento do psiquismo. Mais adiante, ao descrever o trabalho do negativo, veremos que a descrição teórica dos somatizadores de Pierre Marty se assemelha à descrição que Green fazia das psicopatologias não neuróticas.

Ferraz (2010) pensa que o corpo em psicanálise se trata de um resto. Resto da teoria, aquilo que foi abandonado como objeto psicanalítico e "resto" do próprio sujeito que fica aquém da formação de um sujeito psíquico fundado na linguagem e, portanto, marcado pela simbolização. O corpo libidinizado é o corpo da conversão. A libidinização do corpo é fenômeno que ocorre durante a relação inicial mãe-bebê. É ideia freudiana de que os cuidados de higiene do corpo e os toques carinhosos estimulam as zonas erógenas. A pulsão sexual, apoiando-se nas pulsões de autoconservação, vai chegar até os órgãos-alvo ocasionando a libidinização do corpo. Fora do alcance da ação do Anlehnung [apoiar-se em, deitar sobre] permanece o corpo somático propriamente dito, que não se converteu em corpo erógeno. Déjours (1991 apud FERRAZ, 2010, p. 4) chama esse processo de subversão libidinal do corpo biológico pelo corpo erógeno.

O corpo somático ou anatomofisiológico é aquele que ficou aquém da linha de apoio (Anlehnung), não convertido à sexualidade psíquica. É o corpo não representado. Em síntese, o processo da conversão histérica opera sobre o corpo representado, a somatização recai sobre o corpo biológico ou somático.

 

A obra de Marty e a visão de André Green

Green era conhecedor da psicossomática de Pierre Marty, valorizava o seu trabalho e a originalidade de suas ideias. Analisando sua obra, no livro Psichosomatics today (2010), considera que a teoria psicossomática é uma tentativa para descrever o que é algo anterior ao psíquico [avant psychique].

Green diz que suas relações com Marty foram muito simples e, ao mesmo tempo, muito complicadas. Marty recusou o convite para discutir seu trabalho em psicossomática na Sociedade Psicanalítica de Paris que, na época, era presidida por ele. Green afirma não saber qual o motivo de ele não ter aceitado o convite.

Na Revue Française de Psychosomatique n.° 52/2017, número em homenagem a Green, estava o motivo, em resposta a Claude Smadja sobre a relação dele com Marty. Respondeu Green: "Nós somos os dois 'filhos' de Maurice Bouvet, ele foi meu analista e Pierre Marty era seu filho espiritual". Essa ligação produzira uma rivalidade duradoura que nunca permitiu que eles discutissem pessoalmente seus trabalhos.

Para Green, Pierre Marty empreendeu uma reformulação da teoria psicanalítica, procurando na mente ou no corpo biológico o que vem antes. Qualifica que a natureza do fenômeno psicossomático que Pierre Marty propõe diz respeito ao pré-psíquico.

Green (2010, p. 259) segue:

[...] a tarefa é de imaginar um domínio anterior ao psíquico, uma mente nativa cujas qualidades específicas ainda não floresceram e ostentam a marca do biologismo do qual está escassamente separada.

Pensa que há, por parte de Pierre Marty, uma imaginação biológica. Green aponta que Pierre Marty usou o modelo da neurose como único termo de comparação com a práxis psicossomática e que não levou em consideração as estruturas das patologias não neuróticas, talvez porque tenha construído seu sistema antes que autores como Winnicott e Bion surgissem no panorama teórico da França. E que faltou também a Pierre Marty o olhar sobre os casos borderline, que eram objeto de investigação por diversos analistas entre os quais o próprio Green. Salientou que o trabalho de Marty se baseou nos conceitos da primeira tópica freudiana, que ele não valorizou a segunda teoria das pulsões nem a segunda tópica de 1923.

André Green, considerado o mais importante psicanalista na transição para este século, foi um fiel defensor do legado freudiano. Ele liderou o movimento que produziu uma revalorização da metapsicologia com contribuições das obras de Winnicott, Bion e Lacan, fazendo uma articulação entre a dimensão pulsional e a dimensão relacional e objetal. Também contou com a colaboração de psicanalistas seus contemporâneos como Pontalis, Laplanche, Ogden, Bollas, Roussillon e Antonino Ferro, que contribuíram para criar uma visão pluralista do que Green chamou de "psicanálise contemporânea". Isso o levou a afirmar, nos anos 1980, que a grande novidade nas últimas décadas era Freud e que, embora seus textos fossem os mesmos, mereceram uma cuidadosa releitura apoiada nas novas tradições filosóficas e hermenêuticas do século XX.

Foi também Green (2002 apud Minerbo, 2009) quem descreveu o quadro teórico das psicopatologias não neuróticas, que se caracterizavam por apresentar problemas na constituição do Eu, fragilidade narcísica, falhas nos processos de simbolização, além da tendência à atuação e à compulsão. Incluiu nesse grupo as somatizações, a síndrome do pânico (a antiga neurose de angústia), as adições, os estados limites. Esses casos são ainda um desafio à psicanálise porque colocam em xeque suas premissas fundamentais, tais como a associação livre, a transferência, a manutenção do setting.

A aproximação teórica entre os fatos psicossomáticos e os estados-limite, especialmente o conceito do trabalho do negativo, levou-o a considerar a hipótese da ação da pulsão de morte no processo de somatização. O desenvolvimento do trabalho do negativo levou-o à busca de uma teoria geral da constituição do aparelho psíquico.

O modelo teórico que Green criou em 1975 considerava a mente em torno de suas fronteiras, entre os limites da atividade psíquica. Dentro do campo psíquico, Green valoriza dois mecanismos fundamentais: depressão e splitting [clivagem]. Depressão primária que ele define como a baixa do tônus psíquico, semelhante à depressão essencial de Marty e diferente da depressão neurótica ou psicótica. Considera o splitting [cisão] como uma atividade fundamental na vida mental. A possibilidade de dividir o universo em dois é o primeiro ato psíquico pelo qual pode ser significado o bom/mau, o dentro/fora. Considera que a pulsão de morte, a partir do desinvestimento dos objetos, é um conceito fundamental para a compreensão das psicopatologias não neuróticas.

A natureza complexa do objeto psicanalítico levou Green a recorrer, no final dos anos 1990, à noção de pensamento hipercomplexo de Edgar Morin para dar conta dos novos elementos das psicopatologias.

Morin (2020, p. 15) alertou que

[...] a dificuldade com a patologia moderna da mente está na hipersimplificação que não deixa ver a complexidade do real.

Era ideia do autor que

[...] essa complexidade advém do fato de que a observação psicanalítica vai além do manifesto, inclui os efeitos que a observação produz no analista e as fantasias que paciente e analista constroem conjuntamente na sessão.

 

O trabalho do negativo

Mais uma vez, Green parte de conceitos freudianos: alucinação negativa, transferência negativa, neurose como negativo da perversão e o artigo A negativa [Verneinung] de 1925 para descrever as operações psíquicas relativas à temática do negativo.

Analisando o trabalho de 1920, no qual Freud lançou o conceito da pulsão de morte, Green propõe associar as pulsões de vida e de morte e suas atividades de ligação e desligamento com suas funções quanto à relação com os objetos. Chamou de função objetalizante a ação exclusiva de ligação das pulsões de vida a seus objetos e nomeou de função desobjetalizante a operação psíquica de desligamento a cargo da pulsão de morte.

Considerando a capacidade das pulsões de vida e pulsões de morte de atuar associadas por meio da intrincação e também a capacidade de sofrer uma desfusão de modo a atuar de forma isolada, Green levanta a hipótese de que a função objetalizante da pulsão de vida, além de efetuar laços de ligações, poderia desfazê-los, isto é desligar, desobjetalizar.

Assim expressou Green (2018 apud KOTTLER; ZORNIG, 2018, p. 224):

A pulsão de vida pode muito bem admitir nela a coexistência destes dois mecanismos de ligação e desligamento, de maneira que pode absorver nela uma parte da pulsão de morte e assim se capacitar a também determinar um desligamento. Assim a pulsão de vida além da sua função objetalizante passaria a acumular em si as duas atividades opostas de ligar e a de desligar.

Green acrescenta que o desligamento efetuado pela pulsão de vida não pode ser tomado como um desligamento mortífero, como seria se fosse causado pela pulsão de morte, pois esse/o desligamento não mortífero é promovido pela própria pulsão de vida. Essa forma cuidadosa, não traumática de desligamento seria operada pela função desobjetalizante, acionada pela pulsão de vida do objeto primário (mãe), ou seja, pela sustentação materna.

O efeito para o sujeito (o bebê) do desligamento, operado pelo objeto primário (a mãe) sob a égide da pulsão de vida se relacionaria a uma ausência sobre um fundo de presença potencial, tendo efeito estruturante para o sujeito-bebê.

Ao contrário, se ocorrer a perda súbita e inesperada dos investimentos que o sujeito bebê recebe do objeto (mãe) resulta em empobrecimento do Eu. Esse Eu empobrecido, desorganizado e desagregado, deixa-o numa condição de intensa vulnerabilidade psíquica, podendo ocorrer a instalação de um quadro patológico que Green designa por "caso-limite". Na origem desse quadro, o objeto materno não pode efetuar uma retirada de maneira cuidadosa dos investimentos no sujeito (bebê), isto é, efetuar um desligamento de forma que ele, o sujeito-bebê, possa assimilá-lo.

Quando as condições são favoráveis à inevitável separação entre a mãe e a criança, ocorre no seio do Eu uma mutação decisiva. O objeto materno se apaga. Mas esse apagamento da mãe não a faz desaparecer verdadeiramente. O objeto primário torna-se estrutura constituinte do Eu (GREEN, 1980 apud KOTTLER; ZORNIG, 2018, p. 246).

O apagamento do objeto mãe resulta de um trabalho psíquico: trabalho do negativo. O termo "trabalho" deixa claro que essa operação psíquica de apagamento do objeto não se dá de forma espontânea, ao acaso. Pelo contrário, trata-se de uma tarefa psíquica em que a dupla de protagonistas, sujeito (bebê) e objeto primário (mãe) precisa se envolver ainda que em posições diferenciadas e mesmo assimétricas. O sujeito e o objeto se colocam em trabalho psíquico de ligação e desligamento dessa relação nos primórdios da constituição psíquica.

Importante é o papel do objeto primário (mãe) no contexto da constituição psíquica do sujeito: a mãe deve produzir um desligamento de seu investimento para que o sujeito (bebê) possa efetuar outro trabalho? o trabalho do luto primordial, isto é, o de elaboração psíquica de sua primeira perda objetal. Desse modo, o objeto primordial, a partir de sua pulsão de vida, tem uma função desobjetalizante a cumprir: promover o desligamento do vínculo inicial, isto é, apagar essa ligação.

Winnicott (1968 apud Rocha, 2006, p. 88) afirmou que a ausência prolongada do objeto materno no contexto da dependência absoluta, por um tempo maior do que o sujeito bebê pode tolerar, provoca um sentimento de ruptura na continuidade da existência, causando, desse modo, um trauma. Por outro lado, a incapacidade desse objeto de "se apagar" dificultará o estabelecimento da estrutura enquadrante. Dessa forma, acontece o "aprisionamento" do sujeito por esse objeto que tem o potencial de prejudicar as demais etapas do processo.

Essa falha no processo terá repercussões na constituição da estrutura enquadrante, deixando marcas sob a forma que Green chama de buracos psíquicos. Buracos que guardam a relação com a ausência de sentido diante da retirada súbita do investimento e o desligamento de uma mãe de condição suficientemente boa. A existência de um Eu esvaziado levou Green a deduzir a instalação de patologia que chamou de clínica do vazio ou clínica do negativo.

Essa descrição teórica de Green lembra o que Joyce McDougall (1983) tinha por pressuposto, que a vida começa com a experiência de fusão, a sensação de que existe apenas um corpo e um psiquismo para dois. Para o bebê, a mãe não é um "objeto" distinto. Ela é um ambiente total, a mãe universo. O bebê não reconhece a mãe como outro, pois está a ela fusionado.

Nessa fase, o bebê não tem condição de identificar se os estímulos provêm do exterior ou do interior do seu corpo. As frustrações decorrentes da alternância de presença e ausência da mãe são necessárias para permitir a alucinação do objeto primário indispensável para formar representações. Num dado momento, o bebê se encontra em dupla busca psíquica: fundir-se com o objeto mãe e, ao mesmo tempo, ser dela diferenciado.

Em síntese, Green afirma que, para a instauração da estrutura psíquica, é necessário que o próprio objeto (mãe) realize o seu apagamento, apagando o vínculo inicial, isto é, a própria ligação.

Winnicott (1949 apud ROCHA, 2006, p. 9) com o conceito de mãe suficientemente boa, aquela que atende as necessidades do bebê e também o frustra, foi um dos primeiros autores a hierarquizar o papel da mãe no funcionamento mental da criança. Ele considerou que a mãe intervém como ativa construtora do espaço mental da criança. Na teoria psicanalítica de Winnicott, o ser humano é apresentado não como um objeto da natureza, mas sim como uma pessoa que, para existir, precisa de outro psiquismo, do cuidado e da atenção de outro ser humano.

 

Para concluir

Claude Smadja, psicossomaticista da segunda geração da École Psychosomatique de Paris, diz que o trabalho André Green

[...] favoreceu uma mudança conceitual fundamental que enriqueceu a teoria psicossomática com o aporte da segunda tópica e o dualismo pulsional freudiano. Esta evolução contribuiu para situar mais nitidamente a teoria da psicossomática no seio da psicanálise. Que os avanços teóricos e clínicos dos estados limite permitiram considerar certos tipos de funcionamento mental, como o pensamento operatório, não mais como mau funcionamento, mas como uma questão de mecanismos sofisticados de defesa contra o retorno do traumatismo precoce impensável. (SMADJA; AISENSTEIN, 2017, p. 44)

As teorias de Marty e André Green, oriundas do pensamento freudiano, apresentam convergências e divergências em sua construção e mostram a importância do encontro da psicossomática e da psicanálise na busca de novas linhas de trabalho e pesquisa.

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: celsomelgare@gmail.com

Recebido em: 12/08/2020
Aprovado em: 20/09/2020

 

 

SOBRE O AUTOR

Celso Perez Melgaré
Psicanalista.
Médico (UFCS, Porto Alegre).
Membro do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).
Membro do Comitê de Bioética do Hospital Nossa Senhora da Conceição - Porto Alegre.

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