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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.54 Belo Horizonte jul./dez. 2020

 

PSICANÁLISE: TEORIA E CLÍNICA

 

A subjetividade da psique preta: como uma herança da ancestralidade de sofrimento, ódio e culpa se inter-relaciona com a estrutura sadomasoquista

 

The subjectivity of the black psyche: as an inheritance from the ancestry of suffering, hatred and guilt is interrelated with the sadomasochistic structure

 

 

Hilceia Patriarca

I Círculo Psicanalítico da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo aborda a questão da subjetividade preta no que se refere aos impactos causados na psique preta frente ao racismo, apontando, do ponto de vista econômico do masoquismo, a internalização e a assunção do não lugar, da sua invisibilidade.

Palavras-chave: Racismo, Sofrimento, Psique preta, Sadomasoquismo.


ABSTRACT

This article approaches the issue of black subjectivity and its impact on black psyche concerning to racism revealing, from the economic masochist point of view, the 'non-place' internalization and invisibility.

Keywords: Racism, Suffering, Black psyche, Sadomasochism.


 

À luz do livro Pele negra máscaras brancas (1952), de Frantz Fanon (nascido na Martinica em 1925, psiquiatra, filósofo e influente pensador do século XX sobre temas como descolonização e psicopatologia da colonização) e dos artigos de Freud sobre O problema econômico do masoquismo (1923/1925) e O mal-estar na civilização (1927/1931), pretende-se trazer à tona aspectos relacionados à psique preta, sem a pretensão de preencher as lacunas que porventura esse artigo apresente, de um lado, pela dificuldade em encontrar uma vasta literatura psicanalítica sobre a temática; de outro, pela própria complexidade do tema.

Além dos títulos mencionados, serviram de base teórica outros dois importantes escritos: o livro organizado pelo psicanalista Fábio Belo, Psicanálise e racismo (2018) – interpretações a partir de "Quarto de despejo", de Maria Carolina de Jesus, e Crítica à razão negra, de Achille Mbembe (2014).

O pensamento em torno da psicanálise preta nos leva a empreender um caminho de questionamentos a respeito dessa subjetividade preta e dos meios de que dispõe a psicanálise no sentido de compreender e articular sua prática em favor do tratamento. Em decorrência disso, foi necessário estruturar este artigo como se monta um quebra-cabeça, um esqueleto, cujas peças parecem ainda não se encaixar.

Cinco perguntas poderiam orientar este discurso na tentativa de responder algumas questões ainda silenciadas e, de olho nelas, experimentar um esboço de aliviar a angústia de vê-las minimamente abrindo caminho, para que novas perguntas sejam feitas e novas e melhores respostas sejam dadas, procurando, assim, aproximar a angústia de quem escreve com a de quem ouve.

Advirto a todos que não esperem uma lógica formal que lhes facilite a compreensão, porque, quando tratamos das questões da humanidade, estamos falando de idiossincrasias, de dialética incontornável, de ambivalência. Isto posto, declaro que, das perguntas abaixo, apenas a quinta será objeto de escaneamento, porque é a que mais se aproxima da intenção desta breve análise, no sentido de propor sugestões que poderão ser objeto de investimento por instituições psicanalíticas, como parte do seu compromisso com a saúde mental da sociedade, tal como as elencamos a seguir:

•  O quanto é impactada a psique preta pelo não reconhecimento de sua condição de sujeito numa sociedade racista?

•  Quanto de sua condição de não sujeito afeta a estrutura do masoquismo secundário?

•  O que de primitivo (ancestralidade) poderia constituir ou imprimir algum conteúdo diferente ao masoquismo primário, original?

•  Parafraseando a pergunta de Fanon (2018), até que ponto as conclusões de Freud podem ser utilizadas na tentativa de explicar a visão do mundo do homem de cor?

•  E, por fim, de que forma a psicanálise, nos tempos atuais, em que o racismo parece ter se acirrado, numa sociedade "dita branca", que se mantém à vontade com seu preconceito não mais velado, pode atuar como uma espécie de psicologia preta?

Comecemos pela velha assertiva "você é aquilo que dizem de você", pois é sabido que, a partir de tudo que é dito do outro, antes mesmo do seu nascimento, apoia a sua constituição como indivíduo e sua identificação com os que o rodeiam, inicialmente, no seio familiar e, posteriormente, nos diversos grupos sociais dos quais fará parte.

Ao pensar nessa ideia, imediatamente somos obrigados a nos confrontar com o propósito deste artigo, no que se refere à subjetividade do sujeito preto e sua relação com mundo. Não estar inserido ou não se sentir fazendo parte pode trazer danos importantes, pois não se trata de uma escolha e, sim, de uma imposição, como se inumano ou inadequado.

Nesse sentido, Fanon (2018, p. 16) argumenta que o racismo força um grupo de pessoas a sair da relação dialética entre o Eu e o Outro, uma relação que é a base da vida ética e a consequência é que quase tudo é permitido contra tais pessoas e, como a violenta história do racismo e da escravidão revela, tal licença é frequentemente aceita com um zelo sádico.

Isso nos leva a refletir sobre a impossibilidade de pensar um mundo de um. É a essa tal relação dialética que Fanon se refere. Ela fala do imprescindível respeito à diversidade, da possibilidade de convivência de uns e de outros, o que demonstraria a existência de uma certa liberdade que assegurasse a visibilidade.

Ao sofrimento imposto pela exclusão, Fanon sugere (2018, p. 26) duas razões: uma econômica-social e outra, por vezes consequente da primeira, relativa à epidemização do sentimento de inferioridade, que é sentida pelos pretos como a dor do não existir, em dois aspectos que se complementam: um do ponto de vista narcísico e outro relativo ao pacto social de aceitação, que se reflete na impossibilidade de experimentar o amor. Considera-se, portanto, o não lugar como representado por aquilo que dele é dito, da sua negação, da invisibilização demonstradas em palavras e atos cotidianos.

Ora, é notório que esse sentimento de inferioridade que, tal como uma epidemia, vai sendo transmitido de geração em geração, tem relação direta com o que Freud descreve no O mal-estar da civilização ([1929/1930] 1969), algo como um traço genético, absorvido em razão do estabelecimento de uma cultura, nesse caso, produto de um processo de colonização em que a linguagem assume um lugar preponderante na marcação do papel que é atribuído a cada sujeito falante e não falante.

A tentativa de pertencimento passa pela assimilação dos jeitos e trejeitos do colonizador pelo colonizado, antes para se manter vivo, hoje para garantir estar na vida. Quando falamos de linguagem, estamos ampliando o seu entendimento para tudo o quanto se apresenta numa cultura (a própria linguagem, a história, os traços, as diversas manifestações etc.). A sequela é um sem-número de resultados danosos tanto na sua potencialidade existencial quanto nos aspectos intrapsíquicos e intrasubjetivos, cuja exatidão do que seja experimentado pelos pretos permanece subjacente. Portanto, poderíamos, por exemplo, nos perguntar como uma criança preta, descendente direta de escravos, experimentaria a noção lacaniana do estádio do espelho?

Resta a esse indivíduo sucumbir a um dos papéis possíveis em sua existência, quais sejam, o seu embranquecimento ou seu aniquilamento, este representado por um superego indulgente e uma pulsão de morte calçada pela angústia incessante, como afirmam as mestrandas em psicologia Santos, Almeida e Matos (2018) autoras de um dos artigos que integra o livro Psicanálise e racismo.

No referido artigo intitulado Constituição narcísica, racismo e manejo na clínica psicanalítica, elas refletem sobre como as vias facilitadas de tradução fornecidas pela cultura são utilizadas como caminhos aos quais o sujeito fica submetido, buscando pensar sobre a possibilidade de recursos simbólicos que poderiam servir como mecanismos de defesa contra o ataque interno (o sadismo de que fala Freud e que se volta para dentro) das marcas do racismo introduzidas pelo outro durante a constituição do seu psiquismo (SANTOS; ALMEIDA; MATOS, 2018, p. 223-224).

A identidade do preto no Brasil, naquilo que se refere à sua relação com outro, é muito bem esclarecida no prefácio de Jurandir Freire Costa, para o livro Tornar-se negro, de Neusa Santos Souza (1983). O autor, com base no pensamento de Santos, explica que a violência do racismo é impiedosa em sua dinâmica intrapsíquica, visto que tende a destruir a identidade do sujeito negro, sob o pressuposto de Ideal de Ego branco, abrindo-se, assim, um fosso através da internalização compulsória e brutal a que é submetido tanto psiquica quanto culturalmente.

Ser negro no Brasil é ser violentado de forma constante, contínua e cruel sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de Ego do sujeito branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro. (COSTA, 1983, p. 2)

A relação do sujeito preto com o mundo exterior afeta sobremaneira a forma como se vê. Por conseguinte, os impactos decorrentes dessa leitura enviesada se refletem na forma como vai ao encontro da vida diante de si e em relação aos seus iguais e aos que a ele não reconhece. E um dos principais efeitos rebate diretamente sobre um superego extremamente fortalecido, com destaque para a relação sadomasoquista. Sobre isso, podemos atentar ao que Freud nos revela em seu artigo O problema econômico do masoquismo ([1924] 1969).

Entre as três formas de masoquismo descritas por Freud ([1924] 1969, p. 179), por afinidade ao tema, iremos nos concentrar na moral. Para ele, esse tipo de masoquista sempre oferece a face onde quer que tenha a oportunidade de receber um golpe. Essa é a condição dos pretos, por imposição de uma sociedade supostamente branca, que os coloca no lugar de culpados por uma existência indesejada e fadada a manchar um modelo estabelecido por um grupo reprodutor de uma prática sociocultural aceita em tempos idos, mas mantido, sem qualquer discrição, no momento presente.

Ao não ser capaz de se reconhecer a partir do seu narcisismo, sobra um superego que é instigado por um instinto destrutivo que se volta para dentro e se enfurece contra o eu (self), segundo Freud ([1924] 1969, p. 183). Adoecido, esse sujeito desfere contra si golpes que implicam sofrimento silencioso e com uma força destrutiva, cujos desdobramentos são impossíveis de ser mensurados. É evidente que devem existir aqueles que conseguem, embora não seja possível comprovar no momento, manejar esse superego, destinando a sua agressividade para fora; contudo, também não sabemos se o esforço é premiado.

Freud ([1924] 1969, p. 185) nos fala da origem desse superego severo advertindo-nos que reteve características essenciais de pessoas introjetadas ? a sua força, sua severidade, a sua inclinação a supervisionar e punir, acrescentando que o superego é a consciência em ação no ego – podendo se tornar dura, cruel e inexorável contra o ego que está a seu cargo.

Essas figuras são representadas pelo pai ou pela mãe (ancestralidade), que reproduzem um modelo de inferioridade, pelas condições de trabalho a que estão sujeitos, pelas autoridades governamentais, representadas por instâncias do judiciário, entre outras. É com esse opressor que ele se identifica, incorporando-o, engolindo-o e deixando que se instale no superego, como se preenchesse o vazio da individuação.

É imprescindível reiterar o quanto esse mecanismo se estrutura na pulsão de morte, operação que se mostra resistente à superação pelo fortalecimento do ego, sobretudo no que se refere à potência do narcisismo, importante nesse processo de autorreconhecimento. Freud ([1924] 1969, p. 188) reforça esse fator afirmando que o perigo do masoquismo moral reside no fato de ele se originar do instinto de morte e corresponder à parte desse instinto que escapou de ser voltado para fora.

Enfim, pode-se inferir que, no que tange à repetição e à autodestruição, seja da ordem da ancestralidade, seja do ponto de vista das experiências de vida, ambas imprimem a necessidade de autopunição como se esses sujeitos ainda se vissem atados a grilhões no pelourinho eterno, num ambiente que podemos denominar de quilombos urbanos.

Diante disso, cabe refletir, em termos de linhas psicanalíticas, qual deve melhor servir a esse sujeito, considerando que o método criado por Freud não contemplava esse estado de coisas. Podemos começar por transitar num outro espaço de vivências, pouco exploradas pela psicanálise, mesmo atualmente, como uma espécie de neurose de guerra, procurando desvendar aspectos que afetam as pessoas pretas de forma diferente dos brancos, certos de que a ação do negro estará sempre no Outro (sob a forma do branco). Portanto, é imprescindivel, em primeiro plano, que os psicanalistas reservem sua cota de entendimento da dor de existir do preto diferentemente das dores de uma pessoa branca que vai a seu consultório.

É também urgente que se pense em formas para ampliar, em suas estruturas institucionais, uma maior presença preta de maneira a diversificar as discussões ouvindo de quem sente aquilo que fará diferença em suas práticas. Não menos importante está a internalização do tema nos diversos grupos de estudos e, por ora, reconhecer os limites da função do analista.

Isso posto, é fulcral entender que é importante compartilhar suas experiências para além da supervisão, pois não há um único mestre, uma única fonte de informação, o que poderá contribuir para fazer da sua atividade a diferença necessária na busca da cura dessas almas pretas.

Finalizo, entretanto, não concluo, porque esta não é uma reflexão que se esgota, mas se constituiu de muitas nuances e de muitas facetas ainda a serem exploradas, num contexto de construção de identidade muitas vezes forjada em sua realidade psíquica, econômica, sociocultural e mutilada em sua essência, o que exige buscar no âmago dos propósitos e intenções um saber radical em prol de uma verdadeira transformação. Será preciso iniciar um debate profundo sobre como e quando a psicanálise atual irá se apropriar do tema.

Enfim, para contribuir com a reflexão que permeará um possível processo de construção de mudança de padrão de conceitos, encerro, por ora, com trechos de uma citação de Fanon por Mbembe, em seu livro Crítica da razão negra (2014, p. 88):

Em Fanon, o termo "Negro" advém mais de um mecanismo de atribuição do que de autodesignação. Eu não sou negro, declara Fanon, nem sou um negro. Negro não é o meu nome nem apelido, e menos ainda a minha essência e identidade. Sou um ser humano, e isso basta. O Outro pode disputar em mim esta qualidade, mas nunca conseguirá tirar a minha pele ontológica.1 O facto de ser [...] alvo de discriminações ou de toda a espécie de praxes, vexações, privações e humilhações, em virtude da cor da pele, não muda absolutamente nada. Continuo a ser uma pessoa intrinsecamente humana, por mais violentas que sejam as tentativas que pretendem fazer-me crer do contrário. Este excedente ineliminável, que escapa a qualquer captura e fixação num estatuto social e jurídico e que nem a própria condenação à morte conseguiria interromper [...], nenhuma doutrina e nenhum dogma poderão apagá-lo. "Negro" é, portanto, uma alcunha, a túnica com a qual outros me disfarçaram e na qual me tentam encerrar. [...]

 

Referências

BELO, Fábio (org.). Psicanálise e racismo: interpretações a partir de "Quarto de despejo". Belo Horizonte: Relicário, 2018.         [ Links ]

COSTA, Jurandir Freire. Prefácio - Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascenção social. Rio de Janeiro: Graal, 1983. p. 1-16. (Coleção Tendências, v. 4).         [ Links ]

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas (1952). 1. ed. Tradução: Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.         [ Links ]

FREUD, S. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Direção geral da tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1969. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).         [ Links ]

FREUD, S. O problema econômico do masoquismo (1924). In: ______. O ego e o id e outros trabalhos (1923-1925). Direção geral da tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1996. p. 177-188. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19).         [ Links ]

MBEMBE, Achille. Crítica à razão negra. São Paulo: N1 Edições, 2014.         [ Links ]

SANTOS, M.; ALMEIDA, M.; MATOS, V. Constituição narcísica, racismo e manejo na clínica psicanalítica. In: BELO, Fábio (org.). Psicanálise e racismo: interpretações a partir de "Quarto de Despejo". Belo Horizonte: Relicário, 2018. p. 223-230.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: patriarca950@gmail.com

Recebido em: 15/12/2020
Aprovado em: 30/12/2020

 

 

SOBRE A AUTORA

Hilceia Patriarca
Pedagogoga pela Faculdade de Educação da Bahia.
Especialista em recursos humanos, pela Faculdade de Educação da Bahia.
Especialista em gestão pública pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL).
Formação em psicanálise pelo Círculo Psicanalítico da Bahia (CPB).

 

 

1 No heideggerianismo, relativo ao ser em si mesmo, em sua dimensão fundamental, em oposição ao ôntico, que se refere aos entes múltiplos e concretos da realidade.

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