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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.54 Belo Horizonte jul./dez. 2020

 

PSICANÁLISE: TEORIA E CLÍNICA

 

Psicanálise e educação à luz de Freud

 

Psychoanalysis on Freud's approach

 

 

Janes Teresinha Fraga Siqueira

I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Freud não pensou a educação como o seu fenômeno de pesquisa, em particular. No entanto, em seus escritos há conceitos que incidem sobre a educação e a pedagogia. Encontrei relevância em suas ideias. Não poderia ser diferente vindo de Freud. Suas reflexões, mesmo esparsas como fenômeno particular, ele relaciona a educação com o desenvolvimento humano, como via importante para que a sociedade atinja outro nível civilizatório. Nas entrelinhas, seus escritos demonstram compreensões apoiadas na psicanálise, que podem colaborar muito com a educação. Freud propõe que a psicanálise pessoal faça parte da formação de professores. Podemos refletir que o psicanalista necessita passar por formação, Isso por si é também educação.

Palavras-chave: Psicanálise, Educação, Pedagogia, Formação, Desenvolvimento humano.


ABSTRACT

Freud did not think of education, as his research phenomenon, in particular. However, in his writings there are concepts that focus on education and pedagogy. I found relevance in his ideas. It couldn't be different from Freud. His reflections, even though sparse as a particular phenomenon, relate to education with human development, as an important way for society to reach another level of civilization. Between the lines, his writings demonstrate understandings supported by psychoanalysis, which can collaborate a lot with education. Freud proposes that personal psychoanalysis be part of teacher training. We can reflect that the psychoanalyst needs to undergo training and that in itself is also education.

Keywords: Psychoanalysis, Education, Pedagogy, Formation, Human development.


 

Em si, a psicanálise não é
nem religiosa, nem irreligiosa.
É um instrumento sem partido,
do qual podem servir-se religiosos e leigos,
desde que o façam unicamente a serviço
do alívio dos seres que sofrem.1

 

Introdução

Este texto traz as ideias de Freud sobre psicanálise, educação e pedagogia. Encontrei-as primeiramente ao ler alguns dos textos curtos que compõem sua obra. Apoiei-me ainda em duas obras de Roudinesco (1998, 2016).

Freud não era homem de simplificar relações dialéticas entre fenômenos relevantes. Atingiu em seus estudos humanísticos a essência e a totalidade (sem significar a soma das partes), de tudo o que se propunha a refletir, debater, propor. Tomou conhecimento das contradições sociais, mas dedicou-se com afinco ao seu projeto fundamental: sistematizar os conhecimentos sobre os processos psíquicos, pesquisar o inconsciente e deu prioridade a ele.

No entanto, muitos outros temas interessaram do a ele ponto de vista filogenético, ontogenético, histórico, antropológico e cultural, entre eles, a educação humana. Considero que, ao escrever e pensar sobre o fenômeno educação, Freud encontrou importantes relações com a psicanálise.

 

Palavras iniciais

Entendo que educar não é a mesma coisa que transmitir o que foi pr e estabelecido pelas instituições que planejam as escolas, mesmo considerando que elas têm extrema importância numa sociedade letrada. Porém, seu nível de qualidade poderia ser mais elevado.

Ao reconhecer que a psicanálise toca em várias esferas do conhecimento, Freud reconhece os vínculos que começaram a ser forjados entre sua ciência e as outras esferas do conhecimento.

Parece-me que Freud não se refere apenas à educação escolar. Ele vai além e fala na educação como um todo. Colocado como prioridade em várias promessas, o fenômeno educação é considerado utopia quando a proposta é educação igual para todos independentemente de classe social.

Os meios de comunicação veiculam ideias de outros profissionais sobre educação e não dos estudiosos dessa área. O que pouco se ouve e quase não se vê é a presença de pesquisadores da educação, apresentando suas práticas, às vezes inovadoras. As pesquisas existentes nas universidades são quase invisíveis.

Os próprios professores parecem invisíveis à sociedade. Podem ser chamados de 'tias' ou 'tios', o que gera não reconhecimento profissional. Desses profissionais se espera amor e o cumprimento de uma 'missão' que não se sabe, ou não se quer saber, a quem serve. A menos-valia de seu trabalho os coloca quase como desnecessários. São considerados reprodutores, adaptadores quando, na verdade, seu papel principal deveria ser planejar seu trabalho, promover formação de qualidade e dar limites com amor a seus educandos.

Colocamos em relevo neste texto as interessantes ideias de Freud sobre psicanálise e educação, e em seu próprio dizer, "inesperadas relações".

 

Freud e o interesse psicanalítico pela educação

Em seus escritos, Freud demonstra que aceita o interesse das outras ciências pela psicanálise, que considera natural.

No texto O interesse psicológico da psicanálise, Freud ([1913] 1974, p. 199) explica que a psicanálise é

[...] um procedimento médico que visa a cura de certas doenças nervosas (as neuroses) através de uma técnica psicológica.

Freud cita exemplos de distúrbios que considera acessíveis ao tratamento psicanalítico, tais como convulsões histéricas, paralisias e neuroses obsessivas. Pensa que essas doenças são condições sujeitas à recuperação e dependem da influência do médico.

Freud ([1913] 1974, p. 199) ressalta a importância da psicanálise para a medicina, no entanto acredita que não se justificaria trazê-la "[...] à apreciação de um círculo de savants interessados na síntese das ciências". Na sua opinião, seria prematuro devido à oposição ao novo método terapêutico por parte de psiquiatras e neurologistas, que rejeitaram seus postulados e suas descobertas.

Ao discorrer sobre essa experiência e considerando-a legítima, Freud expressa que a psicanálise pode pretender também o interesse de outras pessoas além dos psiquiatras. Em sua visão, a psicanálise toca em várias outras esferas do conhecimento revelando "[...] inesperadas relações entre estas e a patologia da vida mental". (FREUD [1913] 1974, p. 199)

E prossegue:

Consequentemente, neste artigo deixarei de lado o interesse medico da psicanálise e ilustrarei com uma serie de exemplos o que acabei de afirmar sobre a jovem ciência. (FREUD, [1913] 1974, p. 200)

Na parte II desse artigo, Freud ilustra os exemplos da aceitação científica da psicanálise para as ciências não psicológicas:

• O interesse filológico da psicanálise;

• O interesse filosófico da psicanálise;

• O interesse biológico da psicanálise;

• O interesse da psicanálise de um ponto de vista do desenvolvimento;

• O interesse da psicanálise do ponto de vista da história da civilização;

• O interesse da psicanálise do ponto de vista da ciência da estética;

• O interesse sociológico da psicanálise;

• O interesse educacional da psicanálise.

Freud ([1913] 1974, p. 226) ressalta que:

[...] seu ganho terá sido atingido se tiver deixado claras as muitas esferas do conhecimento em que a psicanálise é de interesse e os numerosos vínculos que começou a forjar entre elas.

Sobre o interesse da psicanálise do ponto de vista do desenvolvimento, escreve:

A psicanálise foi obrigada a atribuir a origem da vida mental dos adultos à vida das crianças e teve que levar a sério o velho ditado que diz que a criança é o pai do homem. [...] há uma continuidade entre a mente infantil e a mente adulta. (FREUD, [1913] 1974, p. 217)

Segundo Freud, a psicanálise

[...] observou também as transformações e os remanejamentos que ocorrem no processo. (FREUD, ([1913] 1974, p. 218)

Em relação ao interesse educacional da psicanálise, Freud ([1913] 1974, p. 224) reconhece "[...] o interesse dominante que tem a psicanálise para a teoria da educação". Destaca o fato 'evidente' no qual esse interesse se baseia:

[...] somente alguém que possa sondar as mentes das crianças será capaz de educá-las e nós, pessoas adultas, não podemos entender as crianças porque não mais entendemos nossa própria infância. (FREUD, [1913] 1974, p. 224)

Freud esclarece que a psicanálise trouxe à luz os desejos, as estruturas de pensamento e os processos de desenvolvimento da infância.

Destaca que:

Quando os educadores se familiarizarem com as descobertas da psicanálise será mais fácil se reconciliarem com certas fases do desenvolvimento infantil e entre outras coisas, não correrão o risco de superestimar a importância dos impulsos instintivos socialmente imprestáveis ou perversos que surgem nas crianças. (FREUD, [1913] 1974, p. 225)

Ao se referir a esses impulsos, Freud elucida que eles não devem ser suprimidos pela força.

Expressa que:

[...] esforços desse tipo com frequência produzem resultados não menos indesejáveis que a alternativa desejada pelos educadores de dar livre trânsito às travessuras das crianças. (FREUD, [1913] 1974, p. 225)

Esse tipo de supressão não leva os impulsos indesejáveis a se extinguir ou ficar sob controle, mas

[...] conduz à repressão forçada que cria uma predisposição a doenças nervosas no futuro. (FREUD, [1913] 1974, p. 225)

Freud ([1913] 1974, p. 225) entende que a psicanálise pode

[...] demonstrar que preciosas contribuições para a formação do caráter são realizadas por esses instintos associais perversos na criança se não forem submetidos à repressão, e sim desviados de seus objetivos originais para outros valiosos, através do processo conhecido como sublimação.

E ressalta:

[...] nossas mais elevadas virtudes desenvolveram-se, como formações reativas e sublimações, de nossas piores disposições. (FREUD, [1913] 1974, p. 225)

Ao refletir, com base em Freud, é possível dizer que as crianças, com suas perversões polimorfas, poderiam encontrar na escola um ambiente em que seria possível ou talvez adequado sublimar em vez de recalcar suas pulsões.

A crítica de Freud ([1913] 1974, p. 225) à educação refere-se à

[...] severidade inoportuna e sem discernimento na produção de neuroses, ou o preço, em perda de eficiência e capacidade de prazer, que tem de ser pago pela normalidade na qual o educador insiste.

Aconselha a educação

[...] a abster se de soterrar essas preciosas fontes de ação e restringir-se a incentivar os processos pelos quais essas energias são conduzidas ao longo de trilhas seguras. (FREUD, [1913] 1974, p. 225)

Na década de 1920, Freud foi convidado a escrever o prólogo do livro de um educador e diretor que considerou ter uma experiência de sucesso em educação assistencial com crianças e jovens. Sua esperança se deposita numa educação nas mãos de pessoas psicanaliticamente esclarecidas. Essa visão aparece de forma mais nítida na escrita do pequeno texto Prólogo a "Juventude abandonada de August Aichhorn".

Freud ([1925] 2011, p. 347) reafirma sua compreensão de que:

Nenhuma das aplicações da psicanálise gerou tanto interesse, despertou tantas esperanças e, em consequência, atraiu tantos colaboradores capazes como seu emprego na teoria e na prática da educação de crianças.

Freud ([1925] 2001, p. 347) diz que isso é fácil de compreender quando retoma a afirmação de que a criança se tornou o principal objeto da pesquisa psicanalítica. Explica que, nesse sentido, a criança tomou o lugar do neurótico, com o qual essa pesquisa tivera início.

Freud ([1925] 2011, p. 349) escreve que a psicanálise mostrou que a criança continua a viver no enfermo, no artista e na pessoa que sonha. Também lançou luz sobre as forças motrizes e as tendências que dão ao pequeno ser o seu cunho próprio, e seguiu os percursos do desenvolvimento que o levam à maturidade do adulto.

Para Freud não foi surpresa que o

[...] trabalho psicanalítico com crianças beneficiaria o trabalho pedagógico, cuja intenção é guiar, estimular e proteger de equívocos a criança, em seu caminho até a maturidade. (FREUD, [1925] 2011, p. 347)

Imagino um Freud modesto ao dizer que sua contribuição pessoal nessa aplicação da psicanálise à educação foi bastante pequena. Lembra o "gracejo" que adotou e que segundo o qual "[...] as três profissões impossíveis são educar, curar e governar". Reconhece que "[...] já era suficientemente tomado pela segunda dessas tarefas". E ressalta que não desconhece: "[...] o alto valor social que o trabalho de meus colegas pedagogos pode reivindicar" (FREUD, [1925] 2011, p. 347-348).

Ao falar de August Aichhorn e de sua ocupação de uma parte do grande problema, e da influência educacional sobre a juventude desamparada, conta que durante anos o autor dirigiu instituições municipais de assistência social, antes de conhecer a psicanálise. Sua atitude se originava de um vivo interesse pelo destino desses jovens e se guiava por uma percepção intuitiva de suas necessidades psíquicas.

A psicanálise, diz Freud ([1925] 2011, p. 348),

[...] não pode lhe ensinar muita coisa nova em termos práticos, mas deu-lhe uma clara visão teórica das justificativas para seu modo de agir e o colocou em posição de fundamentá-lo perante os demais.

Freud ([1925] 2011, p. 348) entende que nem todo educador tem o dom da compreensão intuitiva, no entanto destaca duas lições que para ele resultam da experiência do diretor. A primeira é "[...] que o educador deve ser psicanaliticamente instruído, senão o objeto de seus esforços, a criança, permanecerá um enigma para ele".

Propõe que "[...] tal instrução é alcançada da melhor maneira quando o próprio educador se submete a uma análise, experimenta-a em si mesmo" (FREUD, [1925] 2011, p. 348).

Freud ([1925] 2011, p. 348) compreende que

[...] aprendizado teórico em psicanálise não vai suficientemente fundo e não produz convicção.

Ao prosseguir em suas argumentações sobre as lições aprendidas com o diretor Aichhorn, coloca que:

[...] a segunda lição tem um matiz um tanto conservador; ela diz que o trabalho da educação é algo sui generis, que não pode ser confundido com a influência mediante a psicanálise nem ser substituído por ela. A psicanálise infantil pode ser utilizada pela educação como recurso auxiliar; mas não tem condições de tomar o lugar dela. Não somente razões de ordem prática o impedem, mas também considerações teóricas o desaconselham. A relação entre educação e tratamento psicanalítico será provavelmente objeto de exame aprofundado num futuro pouco distante. (FREUD, [1925] 2011, p. 349)

Freud ([1925] 2011, p. 348) traz uma importante reflexão sobre a educação infantil e a reeducação de um adulto.

[...] não nos deixemos levar pela afirmação, de resto plenamente justificada, de que a psicanálise do adulto neurótico equivale a uma reeducação dele. Uma criança mesmo desencaminhada e abandonada, não é um neurótico, e reeducação é algo bem diferente da educação de um imaturo.

Referindo-se ainda à 'situação analítica' e à 'estrutura psíquica', Freud ([1925] 2011, p. 349) explica:

[...] a possibilidade da influência analítica se baseia em premissas bem determinadas, que podem ser resumidas como "situação analítica"; ela requer o desenvolvimento de certas estruturas psíquicas e uma atitude especial para com o analista. Onde essas não existem, como na criança, no menor abandonado e, via de regra, também nos criminosos por instinto, é preciso fazer outra coisa que não seja a análise, mas que venha a corresponder a ela na intenção.

Freud acrescenta ser relevante para a posição do educador a aprendizagem da análise mediante a experiência em sua própria pessoa.

[...] se está em condição de aplicá-la em casos fronteiriços e mistos, como ajuda em seu trabalho, então se deve permitir a ele o exercício da psicanálise e não lhe por nisso obstáculos por motivos mesquinhos. (FREUD, [1925] 2011, p. 350)

Seu interesse pela educação aparece em outros textos. Em O futuro de uma ilusão (FREUD, [1927] 1974), suscintamente, cita duas características humanas que seriam responsáveis por certo "grau de coerção" que manteriam os regulamentos da civilização.

Os homens não são espontaneamente amantes do trabalho [...] os argumentos não têm valia alguma contra suas paixões. (FREUD, [1927] 1974, p. 18)

Propôs que:

[...] Gerações novas, que forem educadas com bondade, ensinadas a ter uma opinião elevada da razão, e que experimentarem os benefícios da civilização numa idade precoce, terão atitude diferente para com ela. (FREUD, [1927] 1974, p. 18)

Compreende que as novas gerações

[...] senti-la-ão como posse sua e estarão prontas, em seu benefício, a efetuar os sacrifícios referentes ao trabalho e a satisfação instintual que forem necessários para sua preservação. (FREUD, [1927] 1974, p. 18)

Freud fala não apenas da escolarização, mas também da educação como uma prática que se relaciona à vida familiar e comunitária.

Em O mal-estar na civilização, Freud ([1930] 1974) retoma uma passagem escrita em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD, [1905] 1974).

Fala da

[...] relação inversa que existe entre a civilização e o livre desenvolvimento da sexualidade. (FREUD, ([1930] 1974, p. 76)

E comenta sobre as barreiras opostas ao instinto sexual surgidas no período de latência:

Tem-se das crianças civilizadas uma impressão de que a construção dessas barreiras é um produto da educação, e sem dúvida, a educação muito tem a ver com ela. Mas na realidade, este desenvolvimento é organicamente determinado e fixado pela hereditariedade, e pode ocasionalmente ocorrer sem qualquer auxilio da educação. (FREUD, ([1930] 1974, p. 76)

Livros, conferências, cartas e textos breves aparecem em sua obra. Freud também viveu momentos em sua vida em que a relação com a educação se fez presente através de cartas. Destaco sua relação com o Dr. Oskar Pfister, pastor e educador de Zurique, seu amigo íntimo por trinta anos e com quem manteve correspondência dirigindo se a ele como "Caro homem de Deus".

Freud fez a Introdução a The Psycho-Analytic Method, de Pfister (1913), em que escreve seus pontos de vista sobre a responsabilidade do médico e do educador. E sustenta:

A educação e a terapêutica acham-se em relação atribuível uma com a outra. (FREUD, [1913] 1974, p. 417)

Destaca que um médico

[...] tem como regra lidar com estruturas psíquicas que já se tornaram rígidas e encontrará na individualidade estabelecida do paciente um limite ao seu próprio êxito, mas ao mesmo tempo, uma garantia da capacidade do paciente de resistir sozinho. (FREUD, [1913] 1974, p. 417)

Quanto à responsabilidade do educador, ressalta:

O educador, contudo, trabalha com um material que é plástico e aberto a toda impressão, e tem de observar perante si mesmo a obrigação de não moldar a jovem mente de acordo com suas próprias ideias pessoais, mas, antes, segundo as disposições e possibilidades do educando. (FREUD, ([1913] 1974, p. 417)

Freud também aceitou ter um encontro com Vera Yanitskaia Schimidt, pioneira da psicanálise na Rússia. Apoiada pelo movimento psicanalítico russo, Vera Yanitskaia criou em Moscou a instituição pedagógica Lar Experimental de Crianças, onde acolheu cerca de trinta filhos de dirigentes e funcionários do partido comunista. Sua ideia era criá-los segundo métodos que combinavam princípios do marxismo e da psicanálise.

Na obra de Roudinesco (2016, p. 401), encontramos detalhes dessa experiência. No lar experimental, foi abolido o sistema de educação tradicional baseado em repreensões e punições corporais. A utopia era a possibilidade de abolir a família patriarcal em prol de métodos educativos que privilegiam o coletivo e as trocas igualitárias. Os educadores deviam fazer análise e não reprimir as brincadeiras sexuais das crianças. O sonho era uma possível fusão entre liberdade individual e social.

No contexto da pós-revolução russa, Vera viajou em 1921 a Berlim e Viena, junto com seu marido, o matemático Otto Schimidt, para obter o apoio de Freud e Karl Abraham em favor do Lar.

A discussão incidiu essencialmente sobre a maneira de tratar o complexo de Édipo no âmbito de uma educação coletiva. (ROUDINESCO, 2016, p. 401)

A experiência não combinava com os princípios da psicologia edipiana, conta Roudinesco. Pelas mesmas razões, Vera Yanitskaia era severamente criticada pelos funcionários do Ministério da Saúde soviético. "Somente Freud se dispunha a ajudar os Schimdt" (ROUDINESCO, 1998, p. 690).

Ao voltar a Moscou e relatar a discussão, "[...] pensaram que o apoio do Comitê Secreto estava garantido. O Comitê ficou dividido quanto à atitude a adotar" (ROUDINESCO, 1998, p. 690).

Ferenczi

[...] não queria mais ouvir falar, depois do fracasso da Comuna de Budapeste da menor experiência em terreno comunista. (ROUDINESCO, 1998, p. 690)

Ernest Jones, segundo Roudinesco (2016, p. 401), "[...] como bom discípulo pragmático, militante da concepção médica da prática de análise" preferiu apoiar, na contramão da linha de Moscou, o grupo psicanalítico de Kazan. Esse grupo pregava "[...] uma política favorável aos médicos, neutra com relação ao marxismo".

Entre os médicos de Kazan, estava Luria, neuropsicólogo que pertenceu ao grupo de Vigostski. Após longo processo e mesmo com o apoio de Nadja Krupskaia, mulher de Lenin, a experiência foi cancelada. A experiência terminara em 1927.

Na Conferência XXXIV: Explicações, aplicações e orientações, Freud ([1932] 1974) fala das dificuldades da infância e apresenta de maneira mais clara e elaborada sua ideia sobre educação.

Diz Freud:

[...] percebemos que a dificuldade da infância reside no fato de que, num curto espaço de tempo, uma criança tem de assimilar os resultados de uma evolução cultural que se estende por milhares de anos, incluindo-se aí o controle de seus instintos e a adaptação à sociedade-ou pelo menos o começo dessas duas coisas. (FREUD, ([1932] 1974, p. 180)

Ao se referir à educação, escreve:

Só pode efetuar uma parte dessa modificação através do seu desenvolvimento; muitas coisas devem ser impostas à criança pela educação". Freud se refere à educação em seu sentido amplo que inclui "criação" no sentido genérico. Diz não ser surpresa que "muitas vezes as crianças executam tarefas de modo muito imperfeito. Durante esses primeiros anos muitas delas passam por estados que podem ser equiparados a neuroses. (FREUD, [1932] 1974, p. 180)

A neurose pode se manifestar antes da puberdade. Na época, a discussão sobre prevenir e salvaguardar a criança com atendimento antes da manifestação da doença era uma discussão de interesse apenas acadêmico.

Explica que:

[...] a iniciativa para a aplicação da psicanálise à educação deve ser buscada em outra área. Vamos tornar claro para nós mesmos qual a tarefa primeira da educação. A criança deve aprender a controlar seus instintos. É impossível conceder-lhe liberdade de pôr em prática todos os seus impulsos sem restrição. Fazê-lo seria um experimento muito instrutivo para os psicólogos de crianças, mas a vida seria impossível para os pais, e as próprias crianças sofreriam grave prejuízo, que se exteriorizaria em parte imediatamente, e, em parte, nos anos subsequentes. Por conseguinte, a educação deve inibir, coibir, suprimir, e isto ela procurou fazer em todos os períodos da história. (FREUD, [1932] 1974, p. 182)

Ressalta que,

[...] na análise temos verificado que essa supressão dos instintos envolve o risco de doença neurótica. Assim a educação tem de escolher seu caminho entre o Sila2 da não interferência e o Caríbdis3 da frustração. Ou descobrir um ponto ótimo que possibilite atingir o máximo com o mínimo de dano. (FREUD, [1932] 1974, p. 182)

Para Freud ([1932] 1974, p. 182), a educação "[...] até agora cumpriu muito mal sua tarefa e causou às crianças grandes prejuízos". Freud sugere à educação "descobrir o ponto ótimo e executar suas tarefas de maneira ideal". Assim, ela pode esperar "[...] eliminar um dos fatores da etiologia do adoecer – a influência dos traumas acidentais da infância".

Porém, a educação

[...] não pode, em caso algum suprimir o outro fator – o poder de uma constituição instintual rebelde. (FREUD, ([1932] 1974, p. 183)

O educador se defronta com difíceis problemas:

[...] reconhecer a individualidade constitucional da criança, de inferir, a partir de pequenos indícios, o que é que está se passando na mente imatura desta, de dar-lhe a quantidade exata de amor e, ao mesmo tempo, manter um grau eficaz de autoridade. (FREUD, ([1932] 1974, p. 183)

Reitera o que diz na Conferência XXXIV:

[...] haveremos de dizer a nós mesmos que a única preparação adequada para a profissão de educador é uma sólida formação psicanalítica. (FREUD, ([1932] 1974, p. 183)

Faria parte da formação à análise pessoal do educador "[...] de vez que o certo é ser impossível assimilar a análise sem experimentá-la pessoalmente" (FREUD, ([1932] 1974, p. 183). A análise de professores e educadores

[...] parece ser uma medida profilática mais eficiente do que a análise das próprias crianças, e são menores as dificuldades para pô-la em prática (FREUD, [1932] 1974, p. 183).

Freud defende que os pais que tiverem a experiência da análise em si mesmos deverão a ela a compreensão interna das falhas havidas na sua própria educação. Compreenderão seus filhos e lhes pouparão do que não foram poupados.

 

Considerações finais

O interesse da psicanálise para com a educação, em Freud, se deve a algumas possibilidades que o professor tem em relação às crianças, por exemplo, a convivência contínua. Esse trabalho leva os educadores a sondar as crianças durante uma parte considerável do dia. Freud aconselha aos educadores suprimir certos comportamentos não pela força, mas por um caminho que leve à sublimação dos instintos associais.

Sugere a instrução psicanalítica do educador, assim como ao aspirante a psicanalista. Ao experimentar uma análise do objeto de seus esforços, a criança deixará de ser um enigma para ele. Trata a psicanálise como um recurso auxiliar sem tomar o lugar da educação.

Considero relevante a compreensão de Freud sobre a diferença que existe entre a educação infantil e a reeducação de um adulto neurótico. Reeducação para o criador da psicanálise "[...] é algo bem diferente da educação de um imaturo" (FREUD, [1923] 2011, p. 349).

Na terceira parte de seu texto Sobre o narcisismo: uma introdução, ao explicar sobre ego ideal como alvo do amor de si mesmo, Freud ([1914] 1974) diferencia o ego infantil e o ego de um adulto.

Destaca que:

Como acontece sempre quando a libido está envolvida, o homem se mostra incapaz de abrir mão da satisfação que outrora desfrutou. Ele não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância; e quando se vê perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma de seu ego ideal. (FREUD, ([1914] 1974, p. 111)

Compreendo que essa seria a base da diferenciação apontada por Freud entre educar na infância e reeducar um adulto.

É nesse ponto que Freud ([1914] 1974, p. 111) diz

[...] ser levado a examinar a relação entre essa formação de um ideal de ego e a sublimação.

Sobre o trabalho dos analistas de investigar a educação bem como outros temas "[...] quanto à origem e à prevenção da delinquência e do crime", Freud ([1932] 1974, p. 184) diz estar abrindo a porta aos analistas [...] e mostrando-lhes os compartimentos que se situam detrás dela, sem conduzi-los para dentro".

No entanto, sugere que os analistas permaneçam leais ao seu interesse pela psicanálise, para que possam aprender coisas novas e valiosas a respeito desses temas.

Entretanto não devo abandonar o assunto da educação sem me referir a um seu aspecto especial. Tem-se afirmado – e certamente com razão que toda educação possui um objetivo tendencioso, que ela se esforça por fazer a criança alinhar se conforme a ordem estabelecida da sociedade sem considerar qual o valor ou qual o fundamento dessa ordem como tal. Se [pergunta-se] uma pessoa está convencida dos defeitos das nossas atuais instituições sociais, a educação segundo uma linha psicanalítica também não pode justificadamente se colocar a serviço dessas instituições: a tal educação deve-se dar finalidades outras e mais elevadas, isentas das exigências reinantes na sociedade. Contudo, em minha opinião, esse argumento não cabe aqui. Tal pretensão está além da função legítima da análise. (FREUD, ([1932], 1974, p. 184)

Freud deixa clara sua posição em defesa do papel da psicanálise. Defende que a educação psicanalítica não deve tencionar transformar seus discípulos em rebeldes. Não foi convidada a assumir essa responsabilidade. Ela desempenhará seu papel "se os tornar tão sadios e eficientes quanto possível".

A psicanálise já encerra em si mesma fatores revolucionários suficientes para garantir que todo aquele que nela se educou jamais tomará em sua vida posterior o partido da reação e da repressão. (FREUD, ([1932] 1974, p. 184)

A psicanálise acolhe o sofrimento psíquico. Seu papel é ajudar na compreensão dos sintomas que decorrem dos instintos que podem passar pelas seguintes vicissitudes: reversão ao seu oposto, retorno em direção ao próprio eu, repressão e sublimação. Freud observa que os dois primeiros convergem ou coincidem.

A escola é defendida não apenas como um lugar adaptativo, mas de formação e desenvolvimento humano. Como tal, pode ser um determinado espaço e um tempo em que podemos aprender a dominar nossos instintos tanto externos quanto internos.

No entanto, são os instintos internos

[...] que exigem muito mais do sistema nervoso, fazendo com que ele empreenda atividades complexas e interligadas, pelas quais o mundo externo se modifica de forma a proporcionar satisfação à fonte interna de estimulação. (FREUD, ([1916] 1974, p. 140)

Ao sugerir, tal como destaquei acima, que os analistas investiguem a educação "[...] quanto à origem e a prevenção da delinquência e do crime" ele diz estar abrindo "a porta". Abrir as portas, contribuir com luzes, considerar possibilidades. Isso faz parte das convicções de um mestre com as qualidades de Freud.

 

Referências

FREUD, S. Explicações, aplicações e orientações (1938 [1932]). In: ______. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos. Direção geral da tradução: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 167-191. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 22).         [ Links ]

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Endereço para correspondência
E-mail: janes.siqueira@hotmail.com

Recebido em: 12/08/2020
Aprovado em: 20/09/2020

 

 

SOBRE A AUTORA

Janes Teresinha Fraga Siqueira
Doutora e mestre em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Licenciada em pedagogia pelo Centro Universitário Franciscano, atual UNIFRA.
Especialista em orientação educacional pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Pós-graduada em Planejamento da Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Orientadora Educacional UFSM. Linha de pesquisa: Educação e Trabalho.
Integrante do Grupo de Pesquisa Internacional de Formação de Professores para o Mercosul-FACED/UFRGS.
Candidata em formação psicanalítica pelo Instituto de Estudos de Psicanálise (IEP) do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).

 

 

1 Resposta de Freud a Oskar Pfister, pastor suíço, que leu o ensaio O futuro de uma ilusão. O pastor propôs a Freud que o título de seu texto fosse trocado por A ilusão de um futuro.
2 Sila na mitologia grega significa Bíblia. No cristianismo primitivo existiu um Sila que acompanhou Paulo a algumas viagens e foi um dos setenta discípulos. Há outros significados. Existem outros significados tais como: o que se deu mal. Encontrei também 'Cila' que seria uma criatura sobrenatural com 12 pés e 6 cabeças de longos pescoços. Faz sons horríveis e devora qualquer marinheiro. Porém no texto de Freud está Sila.
3 Caríbdis na mitologia grega era uma criatura marinha protetora de limites territoriais no mar. Poderia ser também um turbilhão criado por Poseidon o Deus do mar.

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