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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.55 Belo Horizonte jan./jun. 2021

 

PSICANÁLISE E ODONTOLOGIA

 

Bruxismo em época de pandemia: um diálogo entre a odontologia e psicanálise1

 

Bruxism in time of pandemic: a dialogue between dentistry and psychoanalysis

 

 

Cristina Fontes Puppin

I Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho apresenta um tema relacionado à odontologia e suas relações com o indivíduo. O bruxismo é uma disfunção da ATM (articulação temporomandibular), em que há o movimento de ranger os dentes, provocando consequências no indivíduo. Muitos casos são vistos no mundo atual, e durante a pandemia pelo coronavírus, houve um aumento significativo devido ao estresse. Vários sintomas são relatados pelo paciente, e há inúmeros casos malsucedidos ou ineficazes. Com o conhecimento da psicanálise, a odontologia amplia e melhora a relação com o paciente, sabendo da importância da cavidade oral e proporcionando um melhor atendimento.

Palavras-chave: Saúde, Medicina, Odontologia, Bruxismo, Pandemia, Sintomas.


ABSTRACT

This work, presents a related theme to Dentistry, and its relationships with the individual. Bruxism is a TMJ dysfunction (disorder temporo-mandibular), where there is the grinding movement of the teeth, causing consequences in individuals. Many cases are seen, in the world today, and during the coronavírus pandemic there was a significant increase due to stress. Many symptoms are reported by the the patient, with numerous unsuccessful or ineffective cases. With the knowledge of psychoanalysis, dentistry expands and improves the relationship with the patient, knowing the importance of the oral cavity, providing better care.

Keywords: Health, Medicine, Dentistry, Bruxism, Pandemic, Symptoms.


 

Introdução

Na área da odontologia, têm se manifestado com frequência muitas enfermidades e doenças na cavidade bucal como o bruxismo, que será comentado neste trabalho.

Embora Freud nunca tenha desenvolvido um trabalho específico sobre a odontologia, seus textos mostraram a importância da cavidade oral, que é o primeiro contato do bebê com o mundo. A psicanálise atribui à cavidade bucal termos como fase oral, inconsciente e sexualidade e a ela dedica textos importantes.

O seio é o local não somente de alimento, mas também de prazer. Com o surgimento dos dentes, após os seis meses de vida, se desenvolve a atividade psíquica, com pontos de fixação e de regressão – a fase oral (BARRETO, 2012, p. 135).

Os pacientes relatam medo de ir ao cirurgião-dentista e contam experiências que marcaram sua vida, apesar do avanço, da modernização e das técnicas usadas nos tratamentos odontológicos.

Hábitos orais, como sugar mamadeira, usar chupeta e chupar o dedo por um período maior, podem desencadear problemas dentários, por isso a necessidade de correção ortodôntica.

 

Bruxismo

Trata-se de uma desordem parafuncional, orofacial, associada à disfunção temporomandibular (DTM). Pode ser dividida em dois tipos:

•  funcional, que inclui mastigar, falar, deglutir;

•  parafuncional, que inclui apertar ou ranger os dentes (MORAES et al., 2015, p. 62).

O bruxismo se faz presente na clínica odontológica com muita frequência e em qualquer faixa etária. Adquirido inconscientemente, é um hábito destrutivo, em que há o movimento de ranger os dentes associado aos movimentos mandibulares laterais e protusivos, o que resulta no desgaste anormal dos dentes.

Atualmente há um aumento significativo do bruxismo na população mundial. E na pandemia da covid-19, os casos aumentaram de forma expressiva em decorrência do estresse, da ansiedade, da tensão.

Na internet há uma grande quantidade de reportagens e artigos sobre o bruxismo. Cada dia mais, há estudos direcionados para se entender e explicar o assunto. Psicólogos, psicanalistas, psiquiatras comentam que nem os antidepressivos dão conta dessa disfunção.

O diagnóstico em geral é feito por um cirurgião-dentista mediante consulta. Alguns exames de imagem podem ser solicitados para avaliar a ATM, como ressonância magnética e radiografias.

Diversos fatores como problemas oclusais, estresse, ansiedade, tensão, mudança no estilo de vida, além de problemas neurológicos como doença de Parkinson, depressão e esquizofrenia podem desencadear essa desordem. O clínico deve ter uma atuação de investigação, para saber a origem das situações de estresse ou ansiedade. E o paciente pode ser encaminhado para um tratamento psicológico.

O sono deve ser regular, em ambiente calmo e sem luz. A nicotina pode aumentar a atividade muscular assim como café, chá e refrigerantes, além de bebidas à base de cola. Por isso, recomenda-se evitar a ingestão de bebidas estimulantes ou alcoólicas antes de dormir.

O paciente portador desse hábito parafuncional aperta ou range os dentes durante a noite, fazendo barulho enquanto dorme, podendo despertar a pessoa ao lado. O bruxismo também pode ocorrer durante o dia: é o chamado apertamento, que é percebido pelo paciente.

 

Sintomas do bruxismo

•  Desgaste do esmalte;

•  Dentes lascados;

•  Aumento da sensibilidade dentinária;

•  Dor na face e na mandíbula;

•  Zumbido no ouvido;

•  Estalos ao abrir e fechar a boca;

•  Alterações do sono.

 

Aspectos psicanalíticos do bruxismo

Cada vez mais têm sido feitos trabalhos que mostram a associação entre aspectos psicológicos e o bruxismo. Alguns sintomas psicológicos estão relacionados a essa disfunção orofacial. O cirurgião-dentista pode encaminhar o paciente a um atendimento especializado, a fim de cuidar do estresse associado aos sintomas. (SERRALTA; FREITAS, 2002, p. 20).

O bruxismo é uma expressão de tensão, ansiedade e agressividade. Vários estudos mostram que as emoções reprimidas estariam ligadas à personalidade do paciente.

Várias fases foram vistas por Freud como etapas do desenvolvimento da criança por uma organização de uma zona erógena, e sua relação com o objeto. Essas fases, que ocorrem na infância e na puberdade, são relacionadas com a teoria da sedução e a noção de a posteriori.

Durante o desenvolvimento dessas fases, existe uma organização da vida sexual e não está ligada somente à zona erógena, e sim aos diferentes níveis de relação com o objeto. A cavidade bucal é uma zona importante, pois efetua as trocas afetivas.

A fase oral é a primeira manifestação da sexualidade e da agressividade da criança. É primeira fase da evolução libidinal. A partir da amamentação, o prazer sexual está ligado à excitação da cavidade bucal, que acompanha a alimentação. O bebê se satisfaz através do seio materno, primeiro objeto do instinto sexual. (FREUD, [1905] 1996).

Anzieu (2000) diz que através da boca temos a primeira experiência do contato de um lugar de passagem, de incorporação.

Abraham (1970) subdivide em duas partes: a sucção (fase oral) e a mordedura, quando os dentes aparecem após alguns meses (fase sádico-oral). A atividade oral tem a função vital para o bebê nos primeiros meses de vida. Com o tempo ele adquire autonomia e se satisfaz de forma autoerótica. Através da sucção, essa satisfação fornece a fixação do desejo num objeto. O desejo e a satisfação ficam para sempre marcados por essa experiência inicial entre mãe e bebê.

Abraham (1970) mostra que ocorre um sentido de destruição do objeto e aparecem a ambivalência pulsional, a libido e a agressividade, dirigidas a um mesmo objeto, mordendo com força. A fase oral mostra a importância do desenvolvimento do bebê. Essa região mostra as fontes primárias de prazer, de frustração e de dor. É um local de expressões de hábitos, como roer unha, fumar, morder objetos.

Causado pela má oclusão, o bruxismo é uma disfunção associada a fatores psicológicos. Os pacientes que manifestam esse hábito se mostram ansiosos, depressivos, com uma agressividade reprimida que acabam dirigindo a si próprios.

Esse distúrbio ocasiona o aperto involuntário dos dentes associado aos movimentos mandibulares laterais ou protusivos, o que provoca o desgaste anormal dos dentes. As tensões emocionais acabam se manifestando no próprio corpo, o que alguns autores denominam como autoagressão.

 

Caso clínico

Mediante avaliação no consultório odontológico, a paciente foi diagnosticada com bruxismo. Sua queixa principal eram dores de cabeça e no pescoço. Várias vezes acordava no meio da noite, com insônia, mesmo usando analgésicos fortes, relaxantes musculares e antidepressivos. À noite usava uma placa de acrílico para dormir ou ver televisão e, assim, evitar o atrito entre os dentes.

Várias vezes se comunicava com seu dentista através de mensagens, consultas e e-mail. Sentia-se muito incomodada, inclusive iria procurar um especialista em placas, para ver se melhorava. Ao longo de meses, vários medicamentos eram utilizados. Ela relatou que houve mudanças no seu estilo de vida, que sempre cuidou da sua saúde física, que atualmente se diz estressada, mas não fazia tratamento psicológico.

Como era um consultório odontológico, só tivemos dados referentes às suas queixas e sua saúde em geral. O tratamento do bruxismo é feito por meio de avaliação geral, com o uso de medicamentos, como antidepressivos, analgésicos e anti-inflamatórios. É recomendado o uso diário de uma placa de acrílico confeccionada com base no molde da arcada dentária do paciente.

Essa placa tem a função de restringir os movimentos dos músculos mastigatórios, reduzindo o atrito entre os dentes. O tratamento mostra alternativas, mas é impossível garantir a cura total. A acupuntura e a fisioterapia podem ajudar no atendimento do paciente.

A aplicação da toxina botulínica (botox) tem sido usada pelos profissionais, para bloquear a liberação de acetilcolina na junção neuromuscular, mas diversos casos não se resolvem com essa aplicação.

É difícil descobrir a etiologia do bruxismo e não existe um tratamento padronizado. Cada caso deve ser avaliado de forma individual, e uma equipe multidisciplinar pode pensar e contribuir para a melhoria da qualidade de vida do paciente.

A psicanálise nos ajuda a entender o nosso sofrimento, trazendo mais alegria, possibilitando uma visão mais clara e serena das coisas, mesmo com os inúmeros acontecimentos ao longo da vida. O indivíduo deve ser avaliado de forma conjunta. E com a integração das áreas da saúde certamente podemos melhorar a qualidade de vida ao paciente, e não ser diagnosticado somente com um sintoma.

O paciente deve ser visto de forma ampla incluindo seu estado psicológico. Com um atendimento psicanalítico bem conduzido, ele recupera seu estado de amar permitindo voltar à criança que foi e que vive em sua essência.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: cpuppin@yahoo.com.br

Recebido em: 15/06/2021
Aprovado em: 30/06/2021

 

 

SOBRE A AUTORA

Cristina Fontes Puppin
Psicanalista e Membro Efetivo do Círculo Brasileiro de psicanálise – Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Cirurgiã-dentista pela Universidade Unigranrio.
Especialista em Periodontia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO).
Especialista em dentística pela Associação Brasileira de odontologia – Seção Rio de Janeiro (ABO-RJ).

 

 

1 Trabalho apresentado na V JORNADA DAS MONOGRAFIAS do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro, em 24 abr. 2021.

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