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Estudos de Psicanálise

versión impresa ISSN 0100-3437versión On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.55 Belo Horizonte ene./jun. 2021

 

PSICANÁLISE E ODONTOLOGIA

 

As histéricas de Freud, a dor orofacial e a histeria na clínica psicanalítica atual

 

Freud's hysterics, orofacial pain and hysteria in current psychoanalytic clinic

 

 

Marcelo Daniel Brito Faria

I Faculdade de Odontologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
II Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo tem por objetivo estimular os leitores a uma reflexão sobre a interlocução de casos clínicos de histeria relatados por Sigmund Freud com a dor orofacial crônica na odontologia. Inicialmente revisou-se na literatura alguns conceitos preliminares que percorrem a odontologia, a psiquiatria e a psicanálise. Nosso trabalho faz uma correlação dos casos clínicos relatados por Freud em seus Estudos sobre a histeria (1893-1895), em coautoria com Josef Breuer, com os casos clínicos do Núcleo de Radiologia e Atendimento a pacientes com necessidades especiais da Policlínica Piquet Carneiro da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), com sintomatologia de dor crônica orofacial. Posteriormente, relatou-se os casos clínicos atuais encaminhados pelo Centro de Apoio Psicanalitico (CAP) do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP – Seção RJ) para o consultório e que apresentaram em sua estrutura psíquica traços histéricos com conversão. Finalmente, uma conclusão de como os casos clínicos relatados por Freud, bem como os casos tratados pela clínica odontológica e os relatados pelos analisandos de nossa clínica psicanalítica podem nos falar dessa relação da histeria de conversão com a clínica odontológica. Nos casos de ausência de qualquer sinais clínicos orgânicos, o cirurgião-dentista deve pensar em encaminhar seus pacientes para um espaço psicanalítico, para a escuta de uma dor que se origina no psíquico e é convertida em uma linguagem corporal, que só o sujeito que sente pode relatar no processo de análise, ter o reconhecimento e a ressignificação dessa dor, que é singular e pertence ao sujeito que a sente.

Palavras-chave: Histeria, Odontologia, Dor orofacial, Conversão, Dor crônica.


ABSTRACT

This conclusion work aimed to encourage readers to reflect on the interlocution of clinical cases of Hysteria reported by Sigmund Freud with Chronic Orofacial Pain in Dentistry. Initially, some preliminary concepts that run through Dentistry, Psychiatry and Psychoanalysis were reviewed in the literature. Our work reported the relationship of the founder of Psychoanalysis with Dentistry, and made a correlation with the clinical cases reported by Freud in his studies on Hysteria from 1893-1895 coauthored with Josef Breuer with clinical cases from the Radiology and Patient Care Center with special needs at the Piquet Carneiro Polyclinic, Faculty of Medicine, State University of Rio de Janeiro UERJ, with symptoms of chronic orofacial pain. Subsequently, current clinical cases were reported, referred by the Psychoanalytical Support Center (CAP) of the CBP - Section RJ to the Brazilian Psychoanalysis Circle, which presented in their psychic structure hysterical traits with conversion. Finally, a conclusion of how these clinical cases reported by Freud, the cases treated by the Dental clinic and those reported by the analysands of our Psychoanalytical clinic can tell us about this relationship of Conversion Hysteria with the Dental clinic, owing to the dentist in cases of absence of any organic clinical signs, think about referring their patients to a psychoanalytic space, to listen to a Pain that originates in the psychic and is converted into a body language, which only the subject who feels can report in the analysis process, have the recognition and the resignification of this Pain, which is unique and belongs to the person who feels.

Keywords: Hysteria, Dentistry, Orofacial pain, Conversion, Chronic pain.


 

Introdução

Nossa reflexão é pensar a histeria de Freud a partir de um recorte fenomenológico e ampliar a reflexão do limite tênue da neurose histérica com a dor ororfacial crônica, que tem alta prevalência na clínica odontológica. Os dois processos apresentam uma condição de grande sofrimento psíquico, cuja representação é dada no corpo, no EU corporal.

Apesar de não haver nenhuma evidenciação de sinais clínicos presentes, a sintomatologia de dor, em geral crônica, está presente no relato do paciente. A dor é relatada pelo paciente e, sem que o profissional médico ou dentista possa verificar qualquer evidência clínica, o diagnóstico está presente na fala do paciente.

O saber está com o paciente, invertendo o modelo nosológico de Descartes da medicina clássica em que, por meio de sinais e sintomas clínicos, elabora-se um diagnóstico nosológico e um tratamento específico para o caso clínico.

É nesse contexto que Freud resolve dar escuta às falas das histéricas. Após uma passagem por Paris com o médico e psiquiatra Charcot, que, por meio da hipnose, mostra a Freud que todas aquelas sintomatologias presentes nas histéricas estavam armazenadas em memórias anímicas e, na maioria, eram psicogênicas.

Imagine-se a excitação de Sigmund Freud, em pleno século XIX, com a cátedra de Vienna e toda a sua medicina, neurologia e psiquiatria no modelo binário, cartesiano, que considera que toda dor corporal tem uma fundamentação clínica e que a medicina entendia como sendo também convertida para o estado psíquico do paciente.

Porém, nesse momento Freud, já pensa de forma bem psicanalítica: será possível seguirmos a direção oposta desse modelo? Será possível uma dor psíquica de origem ser convertida para o corpo como representações de afetos, os quais o sujeito ainda não era capaz de suportar tal excitação pulsional?

Freud estava com esses pensamentos no caminho para fundar sua teoria chamada psicanálise. Já entende que não é possível pensar num corpo sem psiquismo e num psiquismo sem corpo. Corpo e psíquico são o sujeito. Sujeito que sente dor, sente angústia, sente o corpo inibir. Esse sujeito é o sujeito de desejo, do desejo inconsciente, que foge de nossa consciência, mas que rege a maioria de nossas representações. Logo, Freud afirma que somos sujeitos onde não pensamos e, sendo assim, apresenta à humanidade nossa terceira ferida narcísica, depois de Copérnico e Darwin.

Momentos difícieis foram vividos por aqueles estudiosos que permitiram a escuta de tais pensamentos freudianos na época, tais como Josef Breuer, Carl Gustav Jung, Ferenczi, Otto Rank e outros. Esses grupos de estudiosos, na maioria médicos e cientistas, não estavam com a intenção de destituir o ato médico, mas de relatar à classe que muitas das doenças mentais da época não eram de origem orgânica e cerebral. Essas doenças eram originárias de um psiquismo que possui suas próprias instâncias, sua topografia e um funcionamento que tem sua formação desde o nascimento do sujeito e sua relação com o mundo externo. Ou seja, um nascimento biológico e um nascimento psíquico.

Freud é categórico ao afirmar que o biológico não está atrelado ao sujeito psíquico e suas subjetivações. Logo, precisamos sempre pensar em uma clínica do sujeito, do sujeito que é um corpo que apresenta seus sinais e sintomas clínicos. Um sujeito que fala, que relata sua dor sem que algo esteja justificável e representado no corpo.

Assim, é preciso uma reflexão ampla e irrestrita das áreas clínicas tanto da medicina e sua psiquiatria, quanto das áreas paramédicas, como a odontologia, que tende a resistir e a buscar sempre uma significação orgânica e clínica para justificar a forte medicalização, sem de fato ter uma escuta para além desses modelos psicóticos de fragmentação do corpo e do psiquismo.

Nosso artigo passa por conceitos e críticas à psiquiatria, à odontologia com sua especialidades dor orofacial, da histeria de Freud e a discussão de casos clínicos atuais, com o objetivo de neurotizar o discurso, tornando mais integrados o corpo e o psiquismo, conforme o modelo proposto pelo fundador da psicanálise Sigmund Freud.

 

1 A psiquiatria: seus transtornos e controvérsias

Quando iniciamos as buscas para os estudos na psiquiatria, nos deparamos com uma surpresa em relação ao Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 4.ª edição ou DSM-IV, em comparação com o DSM-V.

Verificamos que, no DSM-V, uma extensa parte dos transtornos somatoformes foi excluída e renomeada como "transtorno de sintomas somáticos" e "transtornos relacionados". Ao comparar o DSM-IV com o DSM-V, certifica-se que essa parte foi extensamente reduzida para intencionalmente colocar e inserir definitivamente todo esse capítulo como de origem puramente orgânica.

Sendo assim, a psiquiatria legaliza e legitima o uso de uma forte medicalização para a histeria, tornando o enfoque mercadológico mais evidente. Interesses comerciais das grandes indústrias de medicamentos ganham destaque no mundo empresarial, concorrendo com os mercados atuais de cosméticos e telefonia móvel. É uma das indústrias de maior taxa de retorno (TR) e lucro no mercado mundial.

Ao revisar o primeiro capítulo da DSM-V, logo nos deparamos com esta afirmativa: "Não é adequado dar a um indivíduo o diagnóstico de transtorno mental unicamente por não se conseguir demonstrar uma causa médica".

Com isso, se abrem plenas condições para medicalizar qualquer sujeito, mesmo que não apresente nenhum sinal clínico orgânico que justifique o uso da medicação e sua dosagem, que em geral também é indiscriminadamente excessiva, já que drogatiza o sujeito, descentra dele a possibilidade de lidar com suas angústias e suas frustrações. Assim, impede o sujeito de lidar com seu complexo de castração, resultando numa sociedade e toda uma geração de adictos e investidos narcisicamente.

Diante disso, muitos países não aderiram nem aceitaram o DSM-V, entre eles, a Bélgica, que recomenda que as categorias do DSM-V não estejam no planejamento da assistência de saúde mental. O conselho superior de saúde da Bélgica documenta numerosos problemas com base de evidências nos manuais usados para diagnosticar doenças mentais e alerta para seu uso indiscriminado. A reação internacional para a publicação do DSM-V gerou bastante insatisfação por diferentes grupos na Europa e nos países escandinávos.

Primeiramente vimos, segundo o DSM-IV, que a caracterisitica comum dos transtornos somatoformes é a presença de sintomas físicos, que sugerem uma condição médica geral (daí o termo somatoforme), mas que não são completamente explicados por uma condição médica geral, pelos efeitos diretos de uma substância ou por um transtorno mental (por exemplo, o transtorno de pânico).

Os sintomas devem causar sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes. Em comparação com os transtornos factícios e a simulação, os sintomas físicos não são intencionais.

Os transtornos somatoformes diferem dos fatores psicológicos que afetam a condição médica, na medida em que não existe uma condição médica geral diagnosticável que explique plenamente os sintomas físicos. O agrupamento desses transtornos em um único capítulo fundamenta-se mais na utilidade clínica (isto é, na necessidade de excluir condições médicas gerais ocultas ou etiologias induzidas por substâncias para os sintomas físicos) do que em premissas que envolvem uma etiologia ou um mecanismo em comum.

Na segunda busca bibliográfica para psiquiatria, na comparação do DSM-IV com o DSM-V, vimos que todos os seus diagnósticos foram definidos e relacionados em transtorno de sintomas somáticos e em transtornos conversivos. (Transtorno de ansiedade de doença é o nome agora dado para hipocondria.)

Engloba-se, aglutina-se, reduz-se e, definitivamente, exclui-se a neurose histérica do contexto da psiquiatria. Generaliza-se os transtornos com a possibilidade de uma forte medicalização, sem nenhuma evidência clínica provável e sem nenhum diagnóstico complementar ou clínico para tratar uma doença.

Em todos os casos descritos por Freud e Breuer em 1895, assim como atualmente, nos casos clássicos de conversão histérica em nossa clínica, a escuta do sujeito que fala de sua doença e seus sintomas tem apresentado uma alta incidência de melhora em 96% dos casos, sem a necessidade de qualquer intervenção medicamentosa para transtornos somáticos, relacionados e conversivos.

 

2 A dor orofacial na odontologia e a histeria de Freud

Genericamente, a denominação dor orofacial se refere às condições álgicas relacionadas às estruturas da boca e da face propriamente dita. Entretanto, tanto as estruturas do crânio quanto as da região cervical também podem causar dores faciais.

De acordo com a Academia Americana de Dor Orofacial, o campo de atuação nessa área inclui as condições álgicas decorrentes dos diferentes tecidos da cabeça e do pescoço, inclusive todas as estruturas que formam a cavidade bucal.

O diagnóstico diferencial abrange um grande número de doenças ou afecções que afetam primária ou secundariamente esse segmento corpóreo. Portanto, a dor orofacial pode ser o principal sintoma das inúmeras doenças que acometem diretamente as estruturas orofaciais. Além do mais, pode ser o sintoma de doenças alojadas nas regiôes adjacentes da cabeça e do pescoço, ou em regiões mais distantes, como tórax e abdômen.

Todas as potenciais fontes de dores orofaciais podem cruzar as fronteiras de muitas disciplinas médicas ou odontológicas, o que faz com que a abordagem multidisciplinar seja frequentemente necessária para estabelecer tanto o seu diagnóstico quanto o seu tratamento.

O estudo deste tema possibilitou o reconhecimento gradativo e científico de que os dentes fazem parte do ser vivo e a ele estão incorporados. Como já descrito, doenças comuns da boca, como a cárie e as doenças periodontais, têm implicações locais e distantes, além de comprometer a saúde do indivíduo.

Este estudo permitiu ainda compreender que nem toda dor de dente é de origem dentária, pois doenças como neuralgia do trigêmeo, tumores, leucemia ou artrite reumatoide também podem afetar a boca e os dentes. Além disso, levou ao estudo das dores da boca e da face, integrando a boca ao corpo e contribuindo para integrar profissionais de diferentes áreas da saúde, levando-os a entender melhor os pacientes com dor crônica ou persistente nessa região do corpo.

Atualmente é muito discutida a formação dos profissionais médicos e dentistas no Brasil que tratam de pacientes com dor crônica na região facial. E está cada vez mais claro que as formações curriculares precisam ser homogêneas a fim de contemplar a complexidade da área, pois, independentemente do tratamento pertinente a cada especialidade ou profissão, é necessário o reconhecimento das condições álgicas que afetam a cabeça e podem se manifestar como dor orofacial.

Portanto, o atendimento de pacientes com dores orofaciais indica a necessidade de conhecer não só anatomia e fisiologia mas também os aspectos psíquicos do sujeito envolvidos.

E nesse ponto do nosso trabalho, encontramos autores de renome na área como Katznberg et al., que afirmam que não há casos clínicos de dores orofaciais isoladamente psicogênicos. Há sempre uma causa orgânica presente.

Fico sempre reflexivo nessas abordagens. Se há um corpo que afeta as instâncias psíquicas por alguma debilidade e inibição de uma função orgânica, de origem puramente orgânica, por que não há sequer um caso clínico na odontologia de que o contrário seja possível?

Elaboro aqui um pensamento puramente freudiano, como nas Conferências introdutórias à psicanálise (FREUD, 1916-1917): Por que uma alteração puramente psíquica não pode afetar e ser convertida para o espaço orgânico sem apresentar evidências clínicas?

Lacan também deixaria muitos clínicos odontólogos desacreditados ao falar para um grupo de dentistas clínicos que eles não saberiam do diagnóstico de seu caso clínico, já que eles não estão com o saber do diagnóstico, pois o diagnóstico é o próprio sintoma do paciente, e que os dentistas clínicos teriam somente o "suposto saber da dor", que é do sujeito que fala.

Em se tratando de dor, podemos didaticamente dividi-la em duas modalidades: dor aguda e dor crônica, diferenciadas pelo tempo de ocorrência desde os primeiros sintomas. São fenômenos diferentes.

A dor aguda é um processo de defesa do organismo e alerta para alguma doença preexistente. Já a dor crônica é definida como aquela cuja ocorrência ultrapassa os seis meses. A dor crônica é a própria doença, ou seja, apresenta-se como uma doença.

Os mecanismos da dor crônica são bem diferentes dos encontrados na dor aguda. Na dor aguda a interpretação é de uma ameaça à integridade do organismo afetado. Gera atitudes de escape, proteção, busca de apoio, medo e ansiedade. É um sintoma de alerta, que apresenta fisiologia bem estabelecida. Sua etiologia é de fácil compreensão, seu tratamento é estabelecido e seu agente causal é eliminado para obtenção da cura da doença.

A dor crônica é aquela que persiste além do prazo previsto para a cura da lesão ou que está associada a afecções crônicas. Não tem a mesma função de alerta da dor aguda. A dor crônica é vivida como perda e gera depressão, choro e lamento, comportamentos que objetivam a reintegração.

Estresse físico, comprometimento do desempenho físico e mental e outras repercussões negativas prolongadas na vida de relação, nas atividades laboriais, sociais, familiares e de vida diária e prática são marcantes em tais doentes.

A dor crônica é menos delineada no tempo e no espaço. Sua etiologia é mais difícil de ser estabelecida, a condição nosológica não é necessariamente vinculada à sua existência, e seu tratamento é mais complexo. Mais que um sintoma, a dor crônica se torna a doença, e o seu controle, mais do que a eliminação do elemento causal, é o objetivo primordial do tratamento.

Os componentes emocionais envolvidos na experiência da dor crônica podem ser mais significativos do que sensitivos. Sujeitos com dor crônica apresentam elevada prevalência de transtornos depressivos. São ansiosos, somatoformes, factícios, conversivos, apresentam transtorno de sexualidade, transtorno do sono, transtornos relacionados com uso de substâncias, transtorno de ansiedade, hipocondria e simulação.

Toda essa linguagem na odontologia é seguida de uma linguagem médica, no intuito de classificar nosologicamente os sintomas e, posteriormente, medicar e tratar o paciente com dor crônica. É assim que tanto a medicina quanto a odontologia tratam esses casos sem destituir o ato médico. Há casos em que a evidência clínica justifica a intervenção de uma terapêutica mesmo em casos crônicos. O fato é que também em muitos casos não há nenhuma evidência clínica que justifique a intervenção de terapêutica medicamentosa. Cabe ao clínico realizar a correlação orgânica e psíquica do sujeito.

Nesta revisão literária, apresento as abordagem psíquica do sujeito com dor orofacial. Uma breve introdução é necessária para o entendimento e posterior discussão do tema.

A dor, seja aguda, seja crônica, gera no sujeito muito sofrimento físico e psíquico, pois suas consequências incluem incapacidade temporária ou permanente em diferentes aspectos da vida do sujeito. As ações psíquicas devem auxiliar na modulação e na percepção do estímulo doloroso, inclusive no sistema supressor da dor, além de habilitar o sujeito para o melhor enfrentamento.

Na dor crônica, diferentemente da dor aguda, há uma relação inversamente proporcional entre fatores sensitivos e psicocomportamentais em função do tempo. A ansiedade surge com frequência, como resultado da dor aguda. Entretanto, no processo de cronificação, os estados dela decorrentes, como elevação dos índices de preocupação e focalização somática, aumentam a probabilidade de percepção da dor e da tensão muscular, e atuam por meio do mecanismo de estresse.

No transtorno do pânico, parte da sintomatologia se constitui de queixas dolorosas especialmente no tórax. Quanto maior o número de sintomas somáticos inexplicados, maior a morbidade psíquica, resultando em aumento da incapacidade funcional, do uso do sistema de saúde, do uso de medicação e da constância de transtornos psiquiátricos.

Este momento da literatura é de reflexão psicanalítica. No caso de sintomas organicamente inexplicados, o dentista e o médico deveriam considerar a incerteza de sinais clínicos compatíveis com o quadro clínico do sujeito. Diversos pacientes com vários exames complementares laboratoriais e exames por meio de métodos de diagnóstico por imagem, à procura de um diagnóstico definitivo para dar nome a essa dor e poder se apaziguar em um diagnóstico para aplacar uma forte medicalização, para se descentralizar da sua própria dor e se preparar para receber alguma terapêutica protética, para justificar o saber do outro médico e ou dentista, sem saber que sabem que o saber é não saber que sabem.

A dor é do sujeito. O saber do sintoma é do outro (paciente). É preciso somente ouvi-lo contar a sua história diante de si para que ele próprio se aproprie de sua dor e faça suas escolhas de sua relação sujeito-dor, e se livre nesse momento de uma indústria farmacêutica e de uma prótese que será meramente como um apêndice de sua dor inominável.

Somente o sujeito pode nominar a sua própria dor. Esse olhar psicanalítico é extremamente indicado para os casos em que em nenhum desses métodos de alta tecnologia há sinais e evidências que justifiquem a dor crônica.

A psicanálise leva em consideração a compreensão dos ganhos secundários e do funcionamento psíquico do sujeito, acompanhado ou não da compreensão dos mecanismos de manutenção da dor e dos comportamentos dolorosos.

A utilização do método psicoterápico mais apropriado depende do diagnóstico psicológico e psicopatológico minucioso e específico. É fundamental a habilitação do profissional para o desempenho na área, o que exige formação detalhada e específica. Quando essa formação não está presente, há risco de grave processo iatrogênico.

Esse enfoque para enquadramento na medicina e na odontologia para também centralizarmos e controlarmos o saber na figura do profissional de saúde, pode ser um fortalecimento do recalque, um não reconhecimento de que todo saber é da ordem de não reconhecer a impossibilidade de tudo saber. No caso da dor crônica sem evidências clínicas, o saber pode estar do outro lado.

Diante do médico, do dentista e de psicólogos comportamentais, não há possibilidade de saber o diagnóstico de uma dor que está nas reminiscências mais remotas da vida do sujeito, que está nas profundezas de seu ser em si, no inconsciente do sujeito, que desconhece seu ganho secundário de sua dor, desconhece a repetição, desconhece o além do princípio de prazer, que o faz repetir o sintoma.

É preciso dar a esse sujeito a possibilidade de poder contar a sua história diante do analista para que ele possa nominar sua dor e ressignificar suas escolhas. Isso pode dar ao sujeito um lugar de sujeito que sente dor e alívio sem precisar de próteses ou medicamentos para viver sem dor, enquanto faz uso deles, já que seriam somente um deslocamento, um uso de um objeto transicional para não enfrentar realmente sua própria dor.

 

3 Casos clínicos: a histeria de Freud e Josef Breuer (1893-1895)

A histeria não deu apenas origem à psicanálise. Ela é, por assim dizer, sua marca registrada. A clínica psicanalítica é regida por um príncipio fundamental – o tratamento de qualquer neurose não é outra coisa senão a instauração de uma neurose histérica.

O analista histericiza a transferência identificando-se com seu analisando até partilhar sua angústia e excitação. Nós, analistas, somos todos histéricos que têm, cada um seu próprio conceito, imagem ou sensação da histeria.

Seguimos para analisar os casos clínicos de Freud e suas relações interdisciplinares.

 

3.1 Primeiro caso clínico: Srta. Rosalie H.

Estudante de canto lírico, 23 anos. Sua voz não obedecia a alguns registros musicais. Sensação de atresia, ou seja, estrangulamento e compressão na garganta, embora essa imperfeição afetasse somente os registros e as notas musicais médias. Freud já notara a conversão histérica. Em outro episódio, ele havia observado que a contratura dos músculos masseteres da analisanda tornara impossível o exercício de sua arte. Em um ensaio em Roma, ela cantava com grande excitação quando teve um quadro de subluxação (impossibilidade de fechamento bucal) e tombou desfalecida ao chão. O dentista acionado na ocasião comprimiu violentamente os maxilares gerando trismo, ou seja, a impossibilidade de abertura bucal além de 1,5 cm . E a Srta. Rosalie teve que renunciar à profissão.

Quando anos mais tarde retornou a Freud, aplicaram-se hipnose e leve massagem na face, e a paciente retornou a abrir amplamente a boca. Rosalie ficou órfã em tenra idade, foi acolhida por uma tia, mãe de numerosos filhos. O marido da tia apresentava uma personalidade patológica, tratava mulher e filhos de maneira brutal e tinha uma franca preferência sexual pelas criadas e babás da casa.

Quando a tia faleceu, Rosalie se tornou a protetora das crianças oprimidas pelo pai. Ela despendia um tremendo esforço para reprimir a expressão de ódio pelo tio. Nessa época apareceram seus sintomas. Freud observou uma forte relação entre o canto e a parestesia histérica.

Posteriormente Rosalie abandonou a casa do tio e foi hóspede na casa de outro tio, que a recebeu amigavelmente, mas justamente por isso suscitou o desagrado da tia. A mulher supunha em seu marido um interesse mais profundo pela sobrinha.

E em uma de suas sessões, Rosalie relata a Freud que um dia seu tio, que sofria de reumatismo, havia exigido que ela lhe massageasse as costas. Deitado na cama, de repente ele se livrou das cobertas, se levantou e quis agarrá-la e deitá-la. Após alguns dias aparecem os sintomas de estremecimento e formigamento das extremidades dos dedos.

No mecanismo dos casos de histeria, Freud observa que as dores orgânicas assumem a representação da dor psíquica. Afirma que, na maioria dos casos de algias histéricas, sempre havia no começo uma dor orgânica. As dores mais comuns, as mais disseminadas na humanidade, que com mais frequência parecem destinadas a ter um papel na histeria, sobretudo as dores periosteais e nevrálgicas nas afecções dentárias, reumáticas, cefaleias e musculares.

 

3.2 Segundo caso clínico: Sra. Cacilie M.

Trata-se de um dos mais intricados nós dessa espécie a desatar na época: a conversão por simbolização requerendo um grau mais elevado de modificação histérica.

A Sra. Cacilie sofria de uma nevralgia facial extremamente violenta duas a três vezes ao ano, que persistia de cinco a dez dias consecutivos e desafiava toda análise, para em seguida cessar abruptamente. Limitava-se ao segundo e terceiro ramos do nervo trigêmeo. Os dentes foram dados como a origem. Foram sete extraídos sob narcose. Foram extrações difíceis, pois os dentes estavam firmemente implantados, então optaram por uma extração somente das coroas dentárias (coronectomia parcial). A cada crise, o dentista era acionado.

Foi a observação deste caso notável, justamente com Breuer, o motivo imediato para a publicação desta comunicação preliminar. Freud estava curioso para saber se neste caso se revelaria uma causa, uma etiologia psíquica.

Quando tentou evocar as cenas traumáticas, Cacilie relatou uma forte suscetibilidade emocional para com seu marido. Em uma conversa ela se sentiu ofendida e, em seguida, na sessão, tocou subitamente a própria face, proferiu um grito de dor e disse: "Isso para mim foi como um golpe no rosto!".

Freud notara que essa nevralgia se tornara, pela via habitual da conversão, a marca de uma excitação psíquica determinada. Existe neste caso a gênese dos sintomas histéricos por simbolização mediante a expressão linguística. Este caso é mais emblemático, com expressões linguísticas diversas, tais como pontada no coração, golpe no rosto, tenho que engolir isso, tenho algo martelando na minha cabeça. Segundo Freud, a histeria de conversão – a excitação proveniente da ideia afetiva – é convertida num fenômeno corporal.

 

3.3 Terceiro caso clínico

Paciente atendido no Centro de Atendimento a Pacientes com Necessidades Especiais e Sistemicamente Comprometidos da Policlínica Piquet Carneiro da Universidade Estadual do Rio de Janeiro PPC-UERJ. Os diagnósticos constam nos prontuários desses pacientes.

Jovem de 15 anos, solteiro, estudante, vive com os pais e irmão mais velho. Queixa-se de dor orofacial, intercalada por crises frequentes e piora na mastigação. O tratamento recebido constava de medidas físicas, uso de fármacos e placas miorelaxantes. A melhora foi insuficiente. O paciente apresentava cefaleia, fadiga muscular e insônia. Faltava-lhe interesse pelas atividades habituais e reclamava estar deprimido com tudo: família, amigos, escola. Estava perdendo energia e relatava estar sendo maltratado pelo sistema.

A hipótese do diagnóstico foi "dor muscular e disfunção mandibular em paciente deprimido". Iniciou-se o tratamento sintomático para dor com a equipe odontológica e tratamento psicoterapêutico duas vezes por semana.

A condição geral do paciente melhorou de forma significativa. O quadro álgico passou a ser bem mais controlado. A melhora ocorreu progressivamente, quando o paciente descobriu novos interesses e passou a canalizar sua dor através da leitura de livros de artesanato. Nesse trabalho, escolheu a mãe como membro participante e, em sinal de gratidão, presenteou seu terapeuta com três trabalhos de artesanato.

O diagnóstico final no prontuário do paciente foi dor miofacial mastigatória em paciente com distimia e DSM-IV. O sintoma principal é o humor deprimido, caracterizado por tristeza, melancolia, tensão e rigidez.

O DSM-IV define como um subtipo de distimia com inicio antes dos 21 anos. Sugere a distimia como resultado de uma falha no desenvolvimento da personalidade e do Ego, culminando em dificuldades de adaptação à adolescência e à vida adulta. O tratamento é psicofarmacológico com uso de antidepressivos.

 

3.4 Quarto caso clínico

Gênero feminino de 20 anos, solteira, estudante universitária e estagiária na área de saúde. Apresenta assimetria mandibular e se queixa de dor na face esquerda. Relata crises episódicas fortíssimas, que a obrigam procurar o pronto-socorro.

Nos últimos anos, submeteu-se a seis cirurgias na ATM (articulação temporomandibular) para corrigir o defeito e eliminar a dor. Usa os medicamentos Dolantina nas crises e Tramadol, sem melhoras. Na hipótese de diagnóstico, no prontuário da paciente consta "dor a esclarecer indefinida" em pacientes com cirurgias repetidas no mesmo local ATM.

A terapêutica prescrita foi Amitripitlina 25 mg, Clorpromazina 6/6, Naproxeno 12/12, além de tratamento psiquiátrico sem prosseguimento. No diagnóstico final consta "dor facial em paciente com transtorno factício".

Segundo o DSM-IV, transtorno factício é a produção voluntária de sintomas artificiais, hospitalização múltipla e predisposição do paciente a submeter-se a números excessivos de procedimentos mutiladores. Fornecem excelentes histórias da doença, insistem em realizar exames, e à medida que os exames nada revelam acusam médicos e dentistas de incompetentes e ameaçam processá-los. O prognóstico é desfavorável, e esses pacientes acabam indo a óbito em decorrência de medicação e múltiplas cirurgias.

Nos casos descritos, observamos estreita relação com os casos relatados por Freud e Breuer já em 1895 em Estudos sobre histeria, muitas conversões via ego corporal que a área médico-odontológica persiste em um modelo puramente orgânico.

 

4 Minha experiência com casos clínicos na atualidade

Antes de relatar os casos clínicos atendidos na atualidade, é preciso que o clínico promova um atendimento calcado no tripé análise individual, supervisão e teoria, que enfatiza que, para a técnica, é preciso estar em atenção flutuante. É preciso solicitar ao analisando que se coloque em associação livre e, preferencialmente, esteja o sujeito confortavelmente acomodado num divã ou poltrona, em local com luminosidade adequada e ambientação suficientemente boa, para assim iniciarmos um encontro clínico.

Apresento casos clínicos atuais encaminhados pelo Centro de Apoio Psicanalitico (CAP do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção RJ) e por profissionais da área privada de psiquitria, psicologia e psicanálise.

 

4.1 Caso AVC (V.S.) na clínica psicanalítica

Após triagem realizada no CAP do CBP-RJ, V.S. é encaminhada para o encontro clínico. Nos primeiros encontros, V.S. relata que foi muito difícil chegar ao consultório, pois se sentia sempre muito incapaz de percorrer sozinha seus caminhos.

Nesse momento me lembrei do relato do caso na supervisão coletiva. A paciente chegou atrasada, ofegante e com os joelhos ralados porque havia sofrido uma queda da própria altura, o que provocara tais escoriações. A paciente relatou na primeira sessão que era a filha mais velha de três irmãs e que seus pais já haviam falecido.

V.S. chega em análise com uma principal queixa de que, mais ou menos dez anos atrás, o atual marido havia tido um romance extraconjugal, e que a partir daí se sentia muito afastada dessa relação. Relatou que decidiu permanecer na relação por causa do filho mais novo de 16 anos. Além desse filho, tinha mais dois filhos: um menino de 32 anos e uma menina de 28 anos de idade.

Na época, V.S. tinha 51 anos, era uma mulher de estatura boa e possuidora de lindos olhos azuis. Uma mulher muito bonita. Porém, chega às primeiras entrevistas bastante desvitalizada, com reclamações de sua pouca atividade sexual com o marido apesar de sentir muito desejo para realização de boas noites sexuais. Relata com rubosidade facial.

V.S. fala da sua relação com o pai, diz ter sido muito próxima do pai, que era um militar muito machista. Falou que seu pai exigia que as filhas mantivessem os cabelos curtos tal qual os meninos para que elas não despertassem tanto os desejos masculinos como as meninas de cabelos longos.

Em uma sessão, V.S. relata muito emocionada que tinha muito medo do olhar do seu pai. E fala que, em um momento de sua vida, quando já estava casada com o atual marido, que também é policial militar, ela olhou para um amigo do marido, que fora a uma visita em sua casa, e o pai falou que estava de olho nela, e sabia reconhecer esse olhar de desejo dela por outro homem.

V.S. começou a sentir diversos sintomas corporais e constantemente trazia para o consultório exames de imagem tais como ressonância da coluna, raios-X dos joelhos e outros. Nos meses seguintes, começa a demonstrar uma certa preocupação quanto ao trabalho de análise, pois tinha receio de que o marido começasse a perguntar o que nós poderíamos estar conversando ali.

Numa sessão, chega bem assustada com uma leve sudorese na região frontal da face e dos membros superiores, com a região dos zigomas (maçãs do rosto) levemente rosados. Peço que sente com calma e espere seu tempo para o começo da sessão, e ofereço água. Iniciada a sessão, V.S. relata que estava assim porque tinha falado para o marido que estava trocando um sapato no shopping e que estava enganando ele, pois na verdade estava comigo.

Nas sessões posteriores, V.S. aparece com diversos exames de imagem e laboratorias, mas nesta sessão nada relata sobre seus exames. Na sessão seguinte, ela relata que teve vergonha de falar, pois eram exames ginecológicos e mamografia digital, pois tinha certeza de que poderia estar com alguma doença, assim como na coluna cervical e joelhos. Entretanto, relata aliviada para mim que todos os exames estão normais, apesar de o exame da coluna apresentar pequenas alterações que ela afirma estarem relacionadas com suas dores das pernas e nas partes internas do joelho.

Em algumas sessões trouxe que se sentia muito incomodada com os carinhos excessivos de seu filho mais novo, e sempre que o marido tinha plantões na polícia, o filho dormia com ela. Relatou ainda que, em seu trabalho de inspetora de uma escola pública do ensino fundamental, havia um garoto bem bonito e de braços fortes que olhava para ela com um olhar diferente. Falou também do diretor substituto da escola, que constantemente brigava com ela com uma voz alterada, que aquilo a deixava muito nervosa e que as vezes não entendia o olhar desse diretor. Parecia que a estava chamando para sair.

Em uma sessão posterior, muito envergonhada, V.S. relata para mim que vem sentindo algo estranho até chegar ao nosso encontro clínico. Diz não saber nada sobre minha vida e como ela pode estar sentindo algo tão forte. Explico a V.S. que estamos ali para o trabalho clínico e não para saber algo de mim, mas para escutá-la.

Na sessão seguinte V.S. relata para mim que tenho uma semelhança física com o nosso ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, além de voz e olhar muito forte. V.S. me coloca nesse lugar de presidente simbólico pai, sedutor e viril como o Exmo. Sr. Fernando Henrique Cardoso, segundo visto nos meios de imprensa.

E finalmente, na transferência, V.S. consegue se declarar para mim e diz que se encontra muito assustada. Pergunto a ela como é esse sentimento. Ela afirma que é um grande calor que vem de dentro e percorre todo o corpo e que principalmente esses pensamentos vêm à noite e em sua cama. Ela se sente desconfortável, pois está ao lado do marido e pensa em estar traindo a ele e seus costumes morais.

Em uma sessão posterior a todos esses relatos, ela entra em cena com uma voz disrítmica, senta-se ao divã e afirma que está tendo um acidente vascular cerebral (AVC), pois está sentindo falta de ar, formigamento nos braços e nas pernas e pede para que eu imediatamente ligue para seu filho mais velho.

Faço o que ela me pede e lhe pego água para beber. Ao retornar, vejo V.S. penteando os cabelos e se maquiando para ir mais bonita ao hospital, se for preciso, e para que seu filho também a encontre com um aspecto mais bonito do que quando chegou.

Ao iniciarmos a sessão com essa cena, imediatamente observei que sua fala estava normal, sua face sem nenhum aspecto para a chegada de um AVC, nem isquêmico, nem hemorrágico, mas me mantenho atento e calmo. Solicito que posteriormente V.S. vá a um hospital se certificar de suas condições clínicas.

As sessões posteriores foram menos intensas. V.S. começa a relatar uma reaproximação com o marido, havia comprado novas roupas íntimas e programado uma viagem com ele. Relata que seu filho mais novo estava um pouco mais triste, pois ela tinha se afastado um pouco dele e que nós somos um caso perdido, "como poderei me relacionar com alguém que não conheço?".

Nos meses seguintes, vejo V.S bastante vitalizada, com um semblante mais apaziguado com suas questões e seu corpo. Passaram-se meses sem relatar nenhum sintoma corporal e diz que sua relação está mais ativa.

Em Estudos sobre a histeria, Freud (1893-1895) afirma que todo histérico sofre sobretudo de reminiscência. No capítulo IV do estudo, Freud divide didaticamente as quatro fases do ataque histérico em (1) a fase epileptoide; (2) a fase dos grandes movimentos; (3) a fase das atitudes passionais, alucinatória; (4) a fase do delírio final.

Pode-se dizer que as ideias que se tornaram patogênicas se conservam tão frescas e vigorosamente afetivas porque o desgaste normal pela ab-reação e pela reprodução em estados de desimpedida associação lhe é negado. Logo, no caso clínico, conseguimos anular a afetividade da ideia que originalmente não foi ab-reagida, ao permitir o afeto de V.S. ser estrangulado e escoado pela fala.

 

4.2 Caso M.L. (intelectualmente sedutora)

M.L. chega à entrevista no CAP. Recebo-a na sala e começamos a entrevista. Relata que está se sentindo muito desanimada em tudo: na faculdade, no relacionamento e nos estágios. Não consegue se organizar. Diz que atualmente está estudando filosofia em uma Universidade Pública do Estado e que desde nova se sente muito mais madura que os demais.

Como de costume, em uma entrevista, nos limitamos a escutar e preencher os formulários. Mas como nesse momento estávamos iniciando nossa clínica, me lancei na sedução de ser escolhido por M.L. e falo ao final da entrevista que sua fala é bastante intelectualizada. M.L. fica bastante irritada e discorda do fato, e encerramos a entrevista. Na supervisão coletiva do CAP, apesar de não ser o bairro de escolha de M.L., ela foi indicada para seu próprio entrevistador.

M.L. chega ao consultório sempre um pouco atrasada para as sessões. Inicia seus relatos dizendo que no momento tem um namoro liberal. Pergunto o que é, para ela, um namoro liberal. Ela diz que podem livremente encontrar novas pessoas e conversar das vivências e experiências fora da relação, e usa o termo "poligamia". Iniciamos nosso trabalho com bastante empatia.

Ao meu olhar, M.L. é uma menina bastante bonita e intelectualizada, com bastantes discursos de alto nível de enfoques filosóficos, culturais e artísticos. Sempre nesse momento penso nas histéricas de Freud, mas sigo sem fechar minha escuta. M.L. relata que atualmente tem 23 anos e os pais se separaram quando ela tinha 9 anos. Sua mãe, após esse evento, apresentou-se bastante depressiva, mas o pai já possuía outra mulher.

M.L. me relata que sempre que ia passar os fim de semana com o pai, e ele lhe pedia que não contasse à mãe que ele já estava com outra mulher. Relata um pai extremamente legal e acolhedor em suas conversas, e que o pai afirma que ela é a única mulher com quem ele fala a verdade, e conta também para M.L. todas as suas experiências e aventuras amorosas (sexuais). M.L. chora compulsivamente e me relata que se sente muito estranha nesses momentos. São casos de abusos light, se assim poderíamos classificar.

Relata que a mãe disse que, quando M.L. nasceu, o seu seio secou porque a filha era muito preguiçosa. Fala que foi difícil a mãe engravidar e ano antes de M.L. nascer a mãe sofreu um aborto espontâneo de um possível irmão mais velho de M.L.

Relato com condensação este caso para analisarmos a construção posterior de um caso, a meu ver, de extremo trabalho, tanto na transferência quanto na contratransferência. M.L sempre apresentou uma relação com os homens e os meninos de uma forma bem fragmentada. Ela fala de W., seu namorado, cuja relação é de cuidado para com ele na residência deles. Fala de F. como o ideal para boas conversas, e que com H. tem bastante libido sexual.

Quanto à mãe, M.L. diz ter tido uma relação bastante conturbada na adolescência e hoje um pouco mais próxima. Nas sessões, M.L. se mostra muito sedutora e, em alguns momentos, bastante triste. Relata em alguns momentos de extrema posição e lugar de inexistência.

Fico em alguns momentos na dúvida de ser algum lugar de regressão narcísica, ou algum lugar das cenas histéricas de uma sedução de abondano. Sempre que está assim mais depressiva na sessão, fala compulsivamente sobre seu sofrer, de uma forma bastante performática, dramaticamente teatral, e seu corpo fala. E nesses momentos da sessão sempre aparecem petéquias avermelhadas na região do seu pescoço.

Em diversas sessões, ela precisa parar, pois sente bastante falta de ar, dores no peito, nas pernas e na face. Relata que reaparecem as dores faciais de sinusite e ela precisa em sessão pegar água gelada para colocar no rosto até que a dor diminua ou desapareça e ela se recomponha.

O quadro clínico é de difícil definição, fator que permite todas essas 'apresentações'. Gosto desse termo em sinais de histeria de conversão, mais do que representações de afetos no corpo. Gosto de relatar como apresentações e atuações de sinais clínicos no corpo.

O sintoma da dor no peito, nas pernas e na face surgia sempre que a parte do corpo era tocada de fora, quando a situação patogênica que representa era associativamente ativada de dentro, e o Ego tomara precaução, a fim de impedir que o sintoma fosse despertado por meio de percepções externas.

M.L. começa, em alguns momentos de nossa análise, a realizar acting out, me enviando poesias de Clarice Lispector, textos e imagens de arte bastante excêntrica. Sempre envio mensagem dizendo que podemos rever esses textos e figuras na sessão. M.L. percorre sempre na nossa construção em análise entre a sedução e o desamparo. A sedução paterna e o desamparo de uma mãe, que sucumbe ao seu desejo de estar ao lado de seu verdadeiro homem, que lhe diz sempre a verdade.

Culpa inconsciente e fantasias infantis percorrem sempre a pele e o olhar dessa menina que intelectualiza para não vivenciar sua passagem de menina para mulher, recorre aos textos mais rebuscados para não contar sua história, para que junto com ela eu pudesse mostrar que as relações podem perpassar por seduções sem que tenhamos que escolher uma ou outra e, assim, podemos compartilhar a sedução e o desamparo.

No decorrer do trabalho, vejo uma grande construção nesse desejo mais singular de minha analisanda. Ela termina sua relação com W., rompe também seus encontros casuais com H. e começa a ter uma angústia profunda no envolvimento somente com o F., cujo sexo e as conversas parecem fazê-la flutuar em terrenos jamais explorados.

M.L. começa a se permitir ler menos e sentir mais. Permite-se poder vivenciar uma relação monogâmica para assim, creio eu como analista, poder com segurança diferenciar as vivências e ver o que seu desejo mais deseja ser.

Muito ainda neste caso, como nos anteriores, construimos vivências ao longo do processo analítico. M.L me apresentou muitos traços histéricos com eventuais conversões e com momentos de uma regressão narcísica no não reconhecimento de nossas limitações como sujeito que nasce do desamparo e nele nos constituímos.

 

Conclusão

É de extrema importância uma escuta para além dos aspectos organicistas, sem excluir o ato médico e odontológico. Mas quando ambas não encontram sequer um sinal clínico da dor falada pelo sujeito, vale ter o reconhecimento de sua impotência e encaminhar esse sujeito para um ambiente em que essa dor possa ser falada, escutada e simbolizada.

Freud, M. Klein, Lacan, Ferenczi, Pontallis, Didier Anzier, Fédida e demais autores nos relatam que a clínica psicanalitica nos ensina que a psicogênese de uma dor crônica se vincula a uma representação inconsciente de algo penoso da história de vida do sujeito.

A dor não é puramente física. Ela compreende uma percepção simbólica, o que faz com que cada sujeito perceba a dor de forma singular, de acordo com seu contexto pessoal.

Logo a psicanálise seria a clínica que permite ao sujeito encontrar o caminho para aliviar o seu sintoma que não apresenta nenhuma evidência clínica.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: mdanbf@yahoo.com

Recebido em: 10/06/2021
Aprovado em: 25/06/2021

 

 

SOBRE O AUTOR

Marcelo Daniel Brito Faria
Psicanalista.
Membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro.
Mestre e Doutor em Ciências da Saúde - Radiologia Odontológica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP-SP).
Pós-doutor em Física Médica pelo Conselho Nacional de Energia Nuclear.
Coordenador do Núcleo de Pacientes Especiais da Policlinica Piquet Carneiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPC-UERJ) e da Secretaria de Saúde do Governodo Estado do Rio de janeiro (SES-RJ).
Professor titular da Faculdade de Odontologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FO-UERJ), da disciplina Psicologia Aplicada à Odontologia e da Radiologia Odontológica.
Professor Adjunto da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Pesquisador colaborador da FAPERJ e do Laboratório Nacional de Computação Científica do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI-Brasil).

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