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Estudos de Psicanálise

versión impresa ISSN 0100-3437versión On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.55 Belo Horizonte ene./jun. 2021

 

PSICANÁLISE ON-LINE E PANDEMIA

 

O cuidado poético-analítico em um mundo pandêmico coisificado

 

The poetic-analytical care in an objectified pandemic world

 

 

Ricardo Azevedo Barreto

I Universidade Tiradentes
II Círculo Psicanalítico de Sergipe

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta o mundo como um paciente acamado, degradado e desfalecente no cenário pandêmico de coisas que avassalam a humanidade. Trata a Terra na contemporaneidade em pedidos de socorro que podem ser escutados pelo cuidado poético-analítico. Propõe uma "pandemia" do paradigma da humanização nos mais diversos contextos dos seres viventes com base nas sensibilidades do ofício sagrado da psicanálise.

Palavras-chave: Psicanálise, Humanização, Cuidado, Contemporaneidade.


ABSTRACT

This paper presents the world as a bedridden, degraded and faiting patient in the pandemic scenario of objects that overwhelm the humanity. It treats the Earth in contemporaneity in calls for help that can be heard by the poetic-analytical care. It proposes a "pandemic" of humanization paradigm in the most diverse contexts of living beings based on the sensitivities of sacred practice of psychoanalysis.

Keywords: Psychoanalysis, Humanization, Care, Contemporary.


 

Agradeço a minha esposa Mara e meus filhos Lara e Danilo
pelo amor no decorrer de nossa estrada existencial.
Agradeço ao doutor Carlos Ayres Britto por sua presença
poética no mundo e, em especial, no prefácio de meu livro O Sol
Ruivo em Pandemia.
Gratidão a todos aqueles que humanizam a crosta sangrenta
da Terra e oferecem dignidade e sensibilidade à transformação de
nosso planeta desterrado com tantas coisas sem nome.

 

Há muito tenho visto o mundo contemporâneo como uma "pandemia" de coisas ou objetos, da qual a humanização é uma das perspectivas preciosas para o reencantamento do que tem sido coisificado ao longo dos tempos.

Não estou falando de coisa ou objeto nos sentidos habituais da psicanálise, mas como aquilo que não tem vida e é destituído de humanidade.

Outra ressalva: o termo "pandemia" deslizará neste discurso do sentido comum de uma doença que se alastra no globo terrestre, em que há o caso pandêmico exemplar e tenebroso da atualidade – da covid-19 – para o significado plural daquilo que se espalha intensamente na Terra.

Vale ressaltar que meu trabalho psicanalítico tem sido crivado por minha análise psicossocial da coisificação das subjetividades, pois percebo um duelo na contemporaneidade:

"Pandemizar" as coisas ou o humano, o sensível?

Em termos gerais, tenho construído uma experiência em mais de duas décadas com reflexões e práticas quanto à humanização, provocando uma mudança no meu olhar-escutar-fazer no consultório de psicanálise e em meu ofício analítico em outros contextos nos meus relacionamentos com distintos âmbitos da cultura humana.

A poesia e as artes atravessam a minha vida desde muito cedo!

Meu pai era um cardiologista com sensibilidade artística em seu trabalho doado. Minha mãe se voltou à arte de pintar. Minha esposa se dedicou muito tempo à dança clássica e ao ensino do balé. Eu escrevo poesias e contos desde muito menino. Comecei a escrevê-los com cinco ou seis anos. A sensibilidade poética sempre me tocou o âmago da alma. Meus filhos também têm as marcas do artístico. Minha filha se dedica às pinturas, como a avó paterna.

Por que falo isso?

Penso que o autor se coisifica, quando esquece sua biografia ou história!

A ciência – dissociada da história, das artes e da filosofia – pode fortalecer a coisificação do mundo. A psicanálise, por sua vez, tem lutado muito para legitimar sua posição periférica – ou extraterritorial – no mundo de coisas.

Terá êxito?...

Não sabemos!

Em função de meu movimento como ser humano, psicanalista e poeta, diante da pandemia da covid-19, passei por muitos desafios sem nome!...

Ficou gritante que a psicanálise, em sua pluralidade teórico-técnica, pode ganhar sustentação no futuro, se priorizar o paradigma da humanização e "pandemizá-lo" em seus ofícios e abordagens.

Ser humano está muito comprometido em nossos tempos. Não é ao acaso que me permito a liberdade de intercambiar os nomes "humano" e "sujeito", entre outros, sem purismos ‘teoricistas' psicanalíticos.

No itinerário pandêmico tão grave e destrutivo do novo coronavírus, além de praticar meu ofício psicanalítico, resolvi escrever poeticamente sobre a covid-19.

Um dos efeitos dessa travessia foi a publicação de meu livro de poesia O Sol ruivo em pandemia (2021), prefaciado pelo jurista e poeta doutor Carlos Ayres Britto e cuja capa foi ilustrada pela pintura de minha filha Lara Cardoso Barreto.

Carlos Ayres Britto comenta (2021, p. 15) no prefácio do livro:

[...] é vista (a poesia) por Friedrich Hegel como "a arte da palavra". Sendo certo que sem a palavra não haveria o "homo sapiens sapiens" [...].

No contexto de restrição necessária de liberdade da pandemia do novo coronavírus, as artes, a tecnologia on-line, a prevenção em saúde coletiva e o compromisso com a humanização do mundo objetificado fizeram convergir meu desejo e minhas forças para o lançamento do referido livro de poesia por meio de uma live – uma das expressões comuns da comunicação em nosso mundo atual de virtualidades –, transmitida no dia 16 de junho de 2021 da Galeria de Arte Mário Britto em Aracaju, Sergipe, com o cerimonial de Hudson Mauad.

A live de lançamento de meu livro sobre a pandemia teve um formato bem dinâmico. Houve uma entrevista comigo, conduzida pelo jornalista Lyderwan Santos, momento de música com os artistas Raquel Diniz e Ítalo Neno, comentários sobre a minha obra poética dos doutores Carlos Ayres Britto, Lúcio Prado Dias e Déborah Pimentel, sarau poético e exibição de vídeo (ZM FILMES) em que eu falo sobre Arte (2021).

Houve também a participação, por meio de falas sobre a minha pessoa, de minha mãe Ceiça Barreto, minha irmã médica e terapeuta Maria Teresa Barreto, bem como de minha sobrinha psicóloga Rachel Gois.

As pessoas que participaram como ouvintes foram muito interativas por meio do chat e buscavam o sensível da poesia e das artes nas danças do momento!

No decorrer da live, fiquei no lugar de poeta, mas também de analista da sociedade e de suas potencialidades sensíveis. A psicanálise está presente tanto nos consultórios e nos atendimentos on-line quanto na posição do psicanalista na relação com os outros em quaisquer contextos de forma ampliada.

A partir de minhas experiências no campo do trabalho de humanização e por meio da live – tão presente em minha memória –, o que penso é que os psicanalistas precisam estar, cada vez mais, preparados para cuidar do mundo neste tempo, como um paciente acamado, degradado e desfalecente no cenário pandêmico de coisas e do novo coronavírus e suas variantes que avassalam a humanidade, e no período pós-pandemia!

Na Terra atual adoecida, da covid-19, é tempo de despertar as múltiplas possibilidades de escuta psicanalítica. Portanto, os pedidos de socorro de nosso planeta e de suas humanidades podem ser escutados pela sensibilidade do cuidado poético-analítico.

Por que, então, não subverter ou modificar a dispersão do coronavírus e de suas variantes na Terra por meio de uma "pandemia" do paradigma da humanização promotor de saúde e qualidade de vida nos mais diversos contextos dos seres viventes com base nas sensibilidades do ofício sagrado da psicanálise?

A espera pode ter mais lágrimas!...

 

Por um paradigma da humanização na psicanálise

Quando vemos a coisificação da Terra, nossos olhos se assustam... Espalhamos a agressividade da doença do novo coronavírus ou a delicadeza e a saúde? As sensibilidades precisam se pronunciar na atualidade para o mundo girar de outra forma! Tempos de sombra que podem ter alguma luz no despertar hoje e no pós-pandemia da covid-19...

Ao falar da covid-19 e da sensibilidade do humano, há a ênfase de que ocorre comumente a destituição do ser no mundo coisificado da atualidade. Na situação crítica contemporânea, há um corte nas expectativas e o espelho, onde o ser humano se reconhecia, fica despedaçado, havendo uma busca desesperada de restauração da imagem, inclusive por intermédio de um modo hipermoderno. (BARRETO, 2020).

Por outro lado, no contato das pessoas consigo mesmas e com o contexto, suas rachaduras e lacunas, alguns podem paralisar diante do novo numa patologia da insensibilidade, enquanto outros ter posicionamentos saudáveis, criativos e sensíveis. (BARRETO, 2020).

Se as modalidades de existência são (re)criadas ou (re)inventadas, o inacabamento do viver fica ratificado...

Acredito na Arte como ponto de partida para qualquer criação. Para mim, a Vida é Arte. O Amor é Arte. [...] o que se faz no mundo é Arte ou precisa partir da Arte. É da Arte que se começa. Arte é criação. Arte é recriação. Arte é invenção. É reinvenção. Do mundo. Do Planeta. De tudo... (BARRETO, 2021, vídeo ZM FILMES).

Mário Britto (2013, p. 7) comenta:

[...] A cada dia, cores distintas, pinceladas diferentes e momentos inusitados se mesclam e ganham novas formas; muitas delas, algumas vezes, nunca antes imagináveis...

Numa perspectiva de humanização, há a ideia de devolver ao sujeito o que dele foi excluído na história de coisificação do humano. (BARRETO, 2010).

Entretanto, para compreendermos o mundo atual, de modo integrativo, diferentes níveis de análise com seus meandros e potencialidades são necessários, entre outros: biológico, sanitário, psicológico, social, econômico, político e espiritual. (BARRETO, 2020).

Uma galeria de mortes factuais e simbólicas, perdas e dores, isolamento, restrição social ou quarentena, receios no que tange à covid-19 e às mudanças econômico-financeiras no mundo, associados a um imaginário de testagem, procedimentos médico-hospitalares e esperança [...], entre vários outros ingredientes, estão presentes na fermentação da pandemia da doença supramencionada e no engendramento do sofrimento inominável da humanidade no momento vigente. (BARRETO, 2020, p. 5).

Nesse cenário, o medo – como o do aniquilamento pessoal, familiar ou social – e as fantasias inconscientes quanto ao futuro, invadindo o funcionamento psíquico dos seres humanos e grupos sociais, têm efeitos inimagináveis. (BARRETO, 2020).

"Sem falar" dos tenebrosos dados objetivos da realidade com vidas e vidas que se foram ou vão!...

Para onde?...

"Sem falar" das sequelas e dos traumas de tantos, ou de todos, mesmo que existam hoje vacinas sendo utilizadas para a recuperação da humanidade que nos sobra!...

Diante da pandemia da covid-19, como contraponto, a sensibilidade aflorada – ao se espalhar por meio de várias formas criativas – promove saúde e cidadania nos mais distintos âmbitos da existência, tendo a potência de transformar o sombrio em aprendizado, humanizando cada experiência de dor e luto. (BARRETO, 2020).

Portanto, no mundo-galeria de coisas, as sensibilidades são indispensáveis, tanto no período pandêmico da covid-19 quanto em todos os tempos...

Entre outros pontos, é comum falar de objetos e sujeitos na psicanálise, mas menos de seres humanos na suposição de que tal expressão estaria mais ligada à psicologia humanista. Todavia, a psicanálise contribui em seus ofícios analíticos para a humanização do mundo.

Minha prática analítica, ao articular no decorrer de minha experiência, contribuições da psicanálise, da psicologia, das artes e da humanização da assistência, tem suscitado muitas reflexões.

Tenho observado e analisado nos meus atendimentos psicanalíticos o que chamo de núcleos e dinâmicas de coisificação em oposição a núcleos e dinâmicas de humanização, o que pode ser acompanhado na psicanálise individual e nos trabalhos analíticos grupais com distintos formatos, até no cenário de interações do psicanalista com uma plateia em seus movimentos discursivos e cênicos, entre outros exemplos.

Os núcleos ou dinâmicas de humanização promovem as sensibilidades, a saúde, a qualidade de vida, entre outros ingredientes indispensáveis aos seres humanos e à vida. Os núcleos ou dinâmicas de coisificação levam à desvitalização, à destrutividade, à objetificação ou à morte.

Os diversos seres humanos têm esses núcleos e estabelecem essas dinâmicas de coisificação e humanização.

Mapeá-los analiticamente torna-se um instrumento significativo ao trabalho psicanalítico nos tempos atuais nos casos de afecções psicossomáticas, quadros narcísicos e suicidas, constelações familiares e sociais tóxicas, entre os mais variados exemplos da psicologia do dia a dia.

Seja ressaltado que as concepções freudianas de pulsões de morte e de vida são preciosas em meu pensar!

As pulsões de morte tendem à redução completa das tensões e levam os seres vivos ao estado anorgânico. As pulsões de vida são a favor da vitalidade. No decorrer da obra freudiana, podemos acompanhar comentários sobre as combinações das duas pulsões. (LAPLANCHE; PONTALIS, 1994).

A dimensão do sagrado – distinta do religioso ou da religião e seus dogmas – tem relação direta com o que chamo de núcleos e dinâmicas de humanização.

De modo exemplar, as produções artísticas podem revelar o sagrado ou se transformar em meras mercadorias no mundo capitalista. Expresso que o sagrado pode se anular nos contextos mais previsíveis à sua localização ou estar presente em manifestações simples, aparentemente banais, do cotidiano.

Busquemos resgatar o sagrado, nas mais distintas esferas do estilo de vida individual e coletivo, assim como nos ofícios psicanalíticos, em nosso planeta drasticamente coisificado, oprimido, em sofrimento intenso e numa "pandemia" de insensibilidades!

Estou me lembrando agora de " Que história é essa, Porchat?" O Porchat pergunta: como seria o seu céu?... Meu céu seria Pura Arte, Filosofia, uma Biblioteca também: gigante... Seria as Artes, os Livros, o Sagrado também, o Sagrado... Não uma religião, mas o Sagrado... o Amor... Levaria algumas pessoas bem escolhidas, Poesia... Poesia Pura seria o céu (BARRETO, 2021, vídeo ZM Filmes, o autor imaginariamente respondendo a Porchat).

O céu é trazido como significante associativo na linguagem do programa de Fábio Porchat, podendo ter múltiplos significados para quem fala ou escuta. A depender dos caminhos linguageiros, rupturas significativas podem ocorrer, aparecendo o distinto do convencional em nossa cultura.

De modo geral, o efeito de movimentar o sujeito das linguagens pode ser acompanhado na criação artística e no encontro com o sagrado. Por sua vez, a psicanálise desenvolve seu trabalho por meio da arte sagrada da comunicação: emissor, mensagem, receptor, contexto, equívocos, entre outros elementos, em suas distintas constelações discursivas (in)conscientes e de (des)encantamento.

As intervenções psicanalíticas rompem a pretensa organização do dizer, do dito, do sujeito, o que mobiliza suas expressões corporais, sensoriais, motoras, de espaço e tempo, imagéticas, representacionais, cognitivas, reflexivas, verbais, comportamentais e cênicas, suas relações com o inconsciente, entre outros exemplos, nos encontros psicanalíticos humanizantes entre analista e analisando.

A psicanálise vai além do que o mundo-coisa em que vivemos propõe!

O sensível humano – ou o sagrado – pode estar presente em quaisquer dimensões do viver. Nesse sentido, a psicanálise não é apenas uma perspectiva de escuta de seres humanos que têm fluxo verbal rico em associações livres. Ela acessa os bebês, podendo beneficiar até pessoas adultas em coma a depender das reinvenções de seu ofício.

Escutar na clínica psicanalítica atual exige, porém, reposicionamentos dos psicanalistas e da psicanálise!

Será trazido, neste momento, um exemplo das artes!

Com uma visão singular sobre desumanização, que não iremos debater aqui, Ortega y Gasset (1991, p. 28) solicita ao leitor que imagine que estamos olhando um jardim através do vidro de uma janela e expressa:

[...] a maioria das pessoas é incapaz de acomodar sua atenção no vidro e transparência que é a obra de arte; em vez disso, passa através dela sem fixar-se e vai lançar-se apaixonadamente na realidade humana que está aludida na obra. Se é convidada a soltar essa presa e a deter a atenção sobre a própria obra de arte, dirá que não vê nada nela, porque, com efeito, não vê nela coisas humanas, mas sim apenas transparências artísticas, puras virtualidades.

O que podemos fazer com as coisas e as sensibilidades no mundo atual?

Numa pandemia genocida e cruel?

No pós-pandemia?

A perspectiva da humanização constela em si e para si as subjetividades, os outros e o mundo em várias dimensões: individual, social, contemplativa, subversiva, criativa e assim por diante.

Por outro lado, essa perspectiva é distinta das tendências à coisificação, como uma compulsão que desvitaliza as subjetividades no mundo atual, afetando as dimensões biopsicossociais do ser humano como uma "série complementar" com muitas dores, perdas, traumas e mortes.

A missão do poeta, segundo Ortega y Gasset (1991), é inventar aquilo que não existe, justificando o ofício poético.

E qual seria a missão da psicanálise: um ofício ético em sua poesia em um mundo de coisas pós-industrializadas?

Seja ressaltada a diferenciação freudiana da psicanálise de intervenções psicoterápicas sugestivas e repressivas. Assim como a escultura, a psicanálise retira o excesso para surgir a estátua adormecida no mármore (ETCHEGOYEN, 1987).

Nise da Silveira, brilhante psiquiatra, tem um lindo trabalho com as imagens do inconsciente. Pedrosa (1947) citado por Nise da Silveira (2015, p. 16) comenta:

Uma das funções mais poderosas da arte – descoberta da psicologia moderna – é a revelação do inconsciente [...].

Nise da Silveira (2015, p. 112) expressa:

Na história da psiquiatria, o século XIX foi marcado pelo esforço para inserir a loucura na moldura do modelo médico. A preocupação era classificar formas clínicas e descrevê-las minuciosamente.

 

Um salto dado na segunda metade do século XX foi a contestação de que a doença mental possa encaixar-se no modelo médico, que ocorra dentro do organismo. A loucura acontece entre os homens, isto é, na sociedade. O louco é o inadaptado à ordem social vigente. E a psiquiatria é acusada de defender a ordem burguesa contra homens que têm uma diferente visão do mundo.

A psiquiatria, a psicanálise, a psicologia e as psicoterapias, entre outras áreas, podem pensar a si próprias por meio das contribuições da abordagem de Nise da Silveira. E precisam refletir muito sobre os trabalhos psi no século XXI para que eles não sejam nem coisificados nem coisificantes!

Em minha experiência profissional, foi desenvolvido um trabalho no cenário institucional da hospitalização, articulando psicanálise, artes e humanização da assistência. Foram realizados grupos de discussão com pacientes e acompanhantes no ambiente do hospital geral com música e pintura. Nessa perspectiva, o caminho artístico se destacou no campo da subjetivação no contexto mencionado. (BARRETO, 2010; Barreto et al., 2015).

Em meio ao mal-estar dos tempos atuais, encontro nosso olhar sensibilizado pelo seríssimo momento da humanidade – a pandemia da covid-19 – que não pode ser negado, nem sequer seus lutos e perdas foram elaborados.

Serão algum dia?!...

É na perspectiva de futuro não preconcebido que floresce a esperança de a psicanálise e a clínica psicanalítica se apresentarem como potencialidades de existência do ‘sujeito desejante', não coisificado pelos processos massivos de colonização, assujeitamento e exploração humana no amanhã, visto que compreendemos a psicanálise como uma instituição da contracultura, pois não segue a lógica do contexto. Os psicanalistas produzem efeitos de mudança no ‘con- texto' e nas subjetividades. A intervenção psicanalítica, por conseguinte, assusta a ordem vigente. (BARRETO, 2017, p. 80).

Um modo de pensar que tem me acompanhado na clínica psicanalítica atual é o que chamo de campos de "pandemização" e "reclusão".

Para isso, não há a restrição à concepção usual de pandemia como uma disseminação mundial de uma doença, como no caso da covid-19 e seus incalculáveis danos à humanidade, entretanto, a utilização de "pandemia" em seu sentido figurado, como também ocorre nas expressões da palavra.

Essa perspectiva é significativa no contexto contemporâneo globalizado, adoecido, coisificado e marcado pela comunicação virtual e pelo cenário pandêmico no século XXI.

Os campos de "pandemização" levam à propagação de algum dos ingredientes do mundo ou muitos deles.

Por um lado, há a possibilidade de "pandemização" do desumano, da coisificação, do insensível ou perverso, do patogênico e das pulsões de morte; por outro lado, existe a potencialidade de espalhar pela Terra o humano, o sagrado, a sensibilidade, a saúde, a criatividade e as pulsões de vida, entre outras dimensões existenciais.

Por meio do cuidado psicanalítico, em sua poesia, sua ética investigativa, seus recursos de análise das subjetividades e culturas, existem caminhos possíveis de construção aos seres humanos e aos projetos coletivos do viver.

Os campos de "reclusão" levam à inibição de algum dos ingredientes do mundo ou muitos deles.

Por um lado, pode haver a reclusão na melancolia e no tédio globalizados, inibição subjetiva, oposta à euforia negacionista; por outro lado, pode ocorrer a reclusão funcional: a proteção contra a covid-19 figurou a necessidade de isolamento social e ganhos com tal posicionamento para a saúde coletiva e, em algumas pessoas, para a capacidade de introspecção e planejamento de sua vida.

Outro exemplo é quando, por meio da reclusão, a subjetividade se protege, não se submetendo a exigências ambientais prejudiciais, salvando-se, quando existem recursos sublimatórios, de ambientes familiares altamente tóxicos.

Na perspectiva winnicottiana, é reconhecido que falhas ambientais podem ameaçar a continuidade existencial em função de uma submissão às exigências do ambiente, gerando sensação de vazio, futilidade e irrealidade. (ZIMERMAN, 1999).

Os psicanalistas podem ficar com sua atenção flutuante voltada aos campos de "reclusão" e "pandemização" (espalhamento) nas expressões das subjetividades, dos relacionamentos e das culturas.

Aliás, na perspectiva freudiana, podemos observar modos distintos de investimento libidinal, como o da libido voltada ao próprio eu – libido do ego – ou aquela investida no mundo exterior, libido objetal. (LAPLANCHE; PONTALIS, 1994).

Entre tantos outros exemplos, são da esfera da poesia e da ética da psicanálise pensar no tripé estudo-análise-supervisão, assim como na relação de psicanalistas com analisandos e a sociedade no mundo coisificado contemporâneo, analisar a teoria e a técnica psicanalíticas – suas concepções de superego, contrato, entre outras –, construindo mudanças necessárias, o que ocorre em qualquer área do conhecimento no decorrer de sua história.

Na sociedade do olhar, ângulos novos de visão, escuta e outros sentidos podem amparar com ética a dor coletiva e aquela de cada um de nós – no amálgama do subjetivo com o objetivo – oferecendo espaços de significação no momento pandêmico da covid-19 e de tantas insensibilidades, assim como para além.

Outro modo de compreender a subjetividade do ser humano em minha clínica psicanalítica é quanto às feridas, abertas ou não, e ao tecido cicatricial em análise.

Não há um único modo de lidar com eles no campo da psicanálise, se compreendermos que os psicanalistas hoje em dia se deparam com diversas psicopatologias e/ou expressões da coisificação, predominando em alguns casos aspectos edípicos; em outros, dimensões pré-edípicas e do funcionamento não verbal bem primitivo.

As feridas e os tecidos cicatriciais de uma biografia humana individualizada falam também de uma história coletiva. O manejo deles depende de cada caso e das sensibilidades do psicanalista ao lidar com as palavras, os sonhos, as atividades lúdicas e as mais diversas expressões da subjetividade do analisando em diversos atendimentos psicanalíticos.

Cuidar de feridas e tecidos cicatriciais da vida humana é mister no ofício psicanalítico e exige delicadeza sem nome!

Outro ponto: o eu corporal precisa ser acompanhado pelos psicanalistas no que revela de profundo da subjetividade. Mentalismos excessivos podem levar à coisificação do ofício psicanalítico e à produção humana de fenômenos psicossomáticos.

O ofício psicanalítico distanciado do sagrado deixa de ter o encanto do encontro, passando a ser reducionismo a teoricismos e tecnicismos. Desse modo, passa a ser a reedição nas cenas transferenciais em análise do social mal resolvido, não pensado e elaborado, expressão da coisificação do ser humano, de seu lugar de não sujeito, não construtor de uma história única e coletiva desejante.

E não estou falando de coisa como das Ding (ou também estou?!), versão comum na psicanálise, mas como o sem vida ou movimento, o objetificado ou anulado, destituído de subjetividade.

Na esfera de seu trabalho com a arteterapia, Ravena e Saviani (2004) falam da capacidade de produzir uma abertura quanto à percepção singular e do diálogo entre a consciência crítica e o olhar poético.

Enfatizam:

[...] Acreditamos que questionar a visualidade socialmente dirigida é iniciar esse longo caminho em busca de conhecermos melhor a relação entre o homem, ele mesmo e sua história, e, assim, contribuirmos para posicionar o indivíduo diante de suas raízes coletivas profundas, em uma verdadeira viagem pela diversidade humana. (RAVENA; SAVIANI, 2004, p. 310).

O período atual de pandemia do novo coronavírus e de suas variantes inquietas pode ser reconhecido em sua brutalidade histórica como uma expressão ampliada e avassaladora da pulsão de morte de seres humanos nos movimentos inconscientes das culturas e de seus constructos infimamente civilizados ao longo dos tempos.

Na asfixia pandêmica e em busca do respiro pós-pandêmico, na fantasmagoria e nos restos históricos de humanidade, um olhar continente, libertador e humanizante para a galeria de coisas no planeta Terra é precioso à psicanálise e ao mundo objetificado.

O olhar, a escuta e o sentir psicanalíticos reinventados em sua arte na contemporaneidade permitem ao ser humano ecoar sua subjetividade, seu inconsciente, deparando-se com o que há de coisas e gente em si.

O analisando-mundo é encontrado em sua singularidade por um psicanalista e o analisando numa análise. Ser humano e cultura coexistem. Se a psicanálise ficar presa ao modelo adaptativo, o furor curandis do psicanalista buscará apenas eliminar sintomas, estancando a poesia das linguagens socioculturais e subjetivas que humanizam o viver e permitem a reinvenção dos projetos individuais e coletivos.

Uma postura dignificante é que as sensibilidades se multipliquem nos encontros psicanalíticos.

A depender dos caminhos, a psicanálise humaniza ou coisifica o analisando-mundo em sua particularidade histórica!

Um analisando-mundo em frangalhos no cenário pandêmico de coisas que avassalam a humanidade perdurará?

Retornará na vida pós-pandemia como um fantasma, uma alegoria, uma repetição?

O que os seres humanos estão precisando e desejando diante do cenário atual?

Ser humano ou sujeito é enfrentar a coisificação da existência em suas roupagens que negam a singularidade e o valor de cada integrante do viver.

Cuidar do planeta Terra na contemporaneidade em seus pedidos de socorro individuais e coletivos numa busca por intervenções poético-analíticas, simbólicas e pragmáticas (por que não?), não seria princípio da psicanálise, seu recomeço pelos analistas das culturas e subjetividades?

Desafios à psicanálise e ao mundo-galeria atual de coisas!...

Um planeta (im)paciente acamado, degradado e desfalecendo no cenário pandêmico de desvitalização, coisificação e mortes que avassalam a humanidade...

Indagações e possibilidades de caminhar são lançadas à psicanálise e às nossas sensibilidades do cuidado psicanalítico poético...

O paradigma da humanização na linha de frente é uma emergência nos mais diversos contextos do ser vivente e quanto ao ofício sensível da poesia da psicanálise.

No mundo pandêmico, de coisas, on-line, não se perca a psicanálise!

Em qualquer abordagem da psicanálise, possam se ressignificar a posição e o ofício analíticos no aqui e agora pandêmico...

Ou a posteriori: no suposto período de evolução pós-pandemia...

Se nosso presente é um aglomerado de coisas, perdas e mortes sem o último sopro espontâneo de ar e nome, sem o digno derradeiro suspiro e sua despedida, como ficamos?

Quem sobreviver nas próximas décadas do século XXI vai construir com outros seres humanos – e coisas que não se foram – qual espécie de futuro?

Um amanhã de coisas mudas e subjetividades não paridas?

Ou um mundo como uma galeria de sensibilidades humanas sagradas em franca pandemia?

Não seria essa sacralidade humana subjetivante uma das dimensões poéticas mais significativas da psicanálise?

O caminho da abordagem psicanalítica adiante será de po...eira ou ética?

Que o mundo e a psicanálise não se transformem em pó com a destruição e a morte do humano e da vida!

A Poética da psicanálise e de seu cuidado sensível com os sujeitos, as coletividades, o mundo e o universo permaneça hoje e seja lançada no amanhã!

Essas são algumas das questões éticas que podemos formular, por enquanto, à psicanálise e aos psicanalistas no século XXI!...

Ricardo Azevedo Barreto com seu livro de poesia O sol ruivo em pandemia na Galeria de Arte Mário Britto, Aracaju-Sergipe, 2021. Foto da ZM Filmes.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: riazebarreto@gmail.com

Recebido em: 10/05/2021
Aprovado em: 25/06/2021

 

 

SOBRE O AUTOR

Ricardo Azevedo Barreto
Psicólogo graduado pela Universidade de São Paulo (USP).
Tem mestrado e doutorado em psicologia escolar e do desenvolvimento humano pela USP.
Tem especialização em psicologia hospitalar pelo CEPSIC da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP.
Tem experiência de treinamento no Butler Hospital (RI-USA).
Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Sergipe (CPS), filiado ao Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) e à International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS).
Tem experiência de ensino na área de psicanálise.
Foi presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (2014-2017).
Foi idealizador e coordenador do programa de humanização, assim como membro do Conselho Administrativo do Hospital São Lucas em Sergipe.
Foi professor titular da Universidade Tiradentes (UNIT) por muitos anos, ensinando nos cursos de psicologia e medicina.
Professor de psicologia em cursos de especialização na área de odontologia.
É um dos editores da revista Estudos de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP).
É um dos editores regionais para a América do Sul da revista International Forum of Psychoanalysis (IFP).
É um dos organizadores do livro Conexões virtuais: diálogos com a psicanálise(São Paulo, SP: Escuta, 2016).
É autor do livro O Sol ruivo em pandemia(Aracaju: J. Andrade, 2021).
Desenvolve trabalhos na área de humanização da assistência, articulando psicanálise, psicologia, artes e humanização.

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