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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.55 Belo Horizonte jan./jun. 2021

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA E TEORIA

 

"O guri tá muito grudado": impactos da violência doméstica na díade mãe-filho

 

"The guri is too long": impacts of domestic violence on the mother-child dyad

 

 

Raquel Furtado Conte

I Universidade de Caxias do Sul
II Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo objetiva discutir um caso clínico da díade mãe-filho, a partir da compreensão das implicações do transgeracional e da convivência atual com a violência doméstica. A metodologia seguiu os pressupostos do estudo de caso em psicanálise, com entrevistas e observações de comportamentos dos atendimentos entre uma mãe e seu filho e o manejo da transferência. As sessões foram transcritas em uma tabela e, posteriormente, foram realizados os recortes do conteúdo de acordo com o objetivo do estudo. Foi possível identificar, a partir dos relatos e da interação mãe-filho, aspectos transgeracionais da violência, tendo em vista a história da mãe e os aspectos relativos à ausência da figura paterna. Ambos os fatores, associados à violência doméstica atual, estavam implicados na impossibilidade de oferecer à criança um ambiente favorável para seu desenvolvimento emocional. Como considerações finais, este estudo sugere ser possível adotar metodologias de intervenção na díade mãe-criança a partir da escuta qualificada nos serviços, possibilitando a entrada de um terceiro elemento que possa apoiar a díade mãe-filho no contexto da violência doméstica.

Palavras-chave: Psicanálise, Violência doméstica, Vínculo mãe-filho.


ABSTRACT

This article aims to discuss a clinical case of the mother-child dyad, from the understanding of the implications of the transgenerational and the current coexistence with domestic violence. The methodology followed the presuppositions of the case study in psychoanalysis, with interviews and observations of the behaviour of care between a mother and her child and the handling of transference. The sessions were transcribed in a table and, later, the content clippings were made according to the objective of the study. It was possible to identify, from the reports and the mother-child interaction, transgenerational aspects of violence, considering the mother's history and aspects related to the absence of the father figure. Both factors, associated with current domestic violence, were implicated in the impossibility of offering the child a favourable environment for their emotional development. As final considerations, this study suggests that it is possible to adopt intervention methodologies in the mother-child dyad from qualified listening in services, allowing the entry of a third element that can support the mother-child dyad in the context of domestic violence.

Keywords: Psychoanalysis, Domestic violence, mother-child bond.


 

Introdução

Este estudo de caso é fruto de uma pesquisa da autora com mulheres em situação de violência doméstica, realizada numa clínica-escola de uma universidade do interior do Rio Grande do Sul.

A violência doméstica e familiar contra a mulher envolve questões afetivas e emocionais importantes, uma vez que o agressor, na maior parte dos casos, é companheiro da vítima, pai ou padrasto de seus filhos, o que dificulta o rompimento da relação afetiva.

De acordo com Conte (2020), em uma pesquisa com mulheres que realizaram o exame de corpo de delito, verificou-se que elas sentiam vergonha, culpa e humilhação quanto à violência experienciada.

Destaca-se, contudo, que as crianças que vivenciam junto a suas famílias a violência doméstica e familiar experimentam uma carga excessiva de tensão, que pode ser identificada como angústia.

Para a psicanálise, o Eu deve advir da relação primordial, ou seja, a partir da relação com um outro que exerce a função materna. Cabe ao sujeito que ocupa essa posição de amparo e de suporte da carência, defendendo a criança das tensões pulsionais e possibilitando que ela utilize recursos simbólicos.

Porém, quando a criança é inundada pelas forças pulsionais, sentindo-se incapaz de significá-las, reestabelece-se o sentimento de desamparo e o Eu é novamente invadido pela angústia. (LAPLANCHE, 1992).

Winnicott (1983) destaca que, para ocorrer uma saída favorável da matriz do relacionamento mãe-filho, é necessário que a mãe possa se dispor, temporariamente, à tarefa de cuidar do bebê, compreendendo que ele é um ser imaturo e está continuamente a "pique de sofrer uma ansiedade inimaginável". (WINNICOTT, 1983, p. 56).

Pesquisas sobre transgeracionalidade fornecem dados para a compreensão das estruturas e dinâmicas familiares. Esse conceito traz à tona o encadeamento psíquico entre as gerações, a partir da concepção da transmissão da vida psíquica, por meio de mitos, ideais, desejos, fantasias, mecanismos de defesa, identificações, entre outros.

A conversação e a manutenção da vida como continuidade narcisista e a manutenção de vínculos são asseguradas pela transmissão de formas e processos inconscientes. (KOPITTKE, 2013).

O filho de um casal, com frequência, pode colocar em ato aquilo que foi repudiado por seus antecessores na cadeia geracional. Käes (2014) denominou de denegativo todo pacto baseado no trabalho do negativo, presente no núcleo da origem e do fundamento da família e no sujeito singular. De acordo com o autor, o pacto denegativo oferece, por um lado, uma face organizadora do laço e das relações intersubjetivas, considerada positiva; por outro lado, uma face defensiva, considerada negativa.

Essa face negativa diz respeito a apagamentos, rejeições e recalcamentos, que mantêm o sujeito alheio à própria história.

 

1 Estudo de caso

Este trabalho teve um delineamento qualitativo, com o objetivo exploratório, a fim de adquirir mais familiaridade com o caso em estudo. Após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, houve a transcrição dos dados e das evidências coletadas na primeira entrevista com a mãe e a criança.

Os conteúdos transcritos foram emparelhados com o referencial teórico psicanalítico, considerando as premissas teóricas que sustentam a escuta psicanalítica, a saber: a atenção flutuante, a contratransferência e a associação livre. (NOGUEIRA, 2004).

 

1.1 "O guri que anda muito grudado"

Como forma de garantir o sigilo dos dados, a mulher participante deste estudo será denominada Rosa, e seu filho será denominado João. Na primeira entrevista, Rosa, 30 anos, relatou sua situação atual: convivia com um filho de 3 anos, fruto de sua relação com o parceiro atual, e uma filha de 12 anos, de seu primeiro relacionamento. Na época em que procurou o serviço, estava desempregada, possuía o ensino fundamental concluído e estava convivendo com seu parceiro agressor há cerca de sete anos. Narrou as violências físicas e psicológicas que enfrentava cotidianamente, inclusive sua impossibilidade de trabalhar, porque o parceiro não permitia. Além disso, introduzia na relação conjugal suas queixas em nome de seu filho, revelando sentimentos de desvalia, descontentamento e vergonha diante do parceiro, no papel tanto de marido quanto de pai.

Nas sessões seguintes, Rosa relatou alguns fatos de sua história infantil que auxiliaram na compreensão de seus aspectos identificatórios com seu filho e projetados em seus discursos e queixas. Verbalizou que nunca conviveu com o pai, assassinado quando ela tinha em torno de 7 anos. Sua mãe convivia com seus objetos "droga", passando dias na rua, o que fez com que perdesse a guarda da filha. Por causa disso, Rosa foi morar com a avó.

Com um ambiente desfavorável para seu desenvolvimento permeado por abusos sofridos pelo companheiro da avó, Rosa relatou que passou a ficar mais nas ruas, e foi aí que encontrou seu primeiro companheiro, junto com as drogas. Ao engravidar desse parceiro, parou de usar drogas; porém, seu parceiro continuou fazendo uso de álcool e outras drogas, o que foi um dos fatores que influenciou sua decisão de separar-se.

Atualmente, a filha mora com o pai, e não há muita convivência entre ambas. Rosa aponta que não se trata de uma relação agradável, pois ela "não é uma menina fácil de agradar e briga muito com o irmão". Após cerca de dois anos da separação de seu primeiro parceiro, conheceu o parceiro atual e decidiu morar com ele. Engravidou e perdeu sua primeira gestação. Em seguida, nasceu João, o filho que agora tem 3 anos.

Rosa expressava sua incômoda relação com o filho, apresentado como "o guri",1 queixando-se de que ele estava cada vez mais grudado:

Ele não me larga, não sei, está cada vez mais nervoso, agitado, tem medo de tudo, não dorme mais sozinho, se eu não tô junto.

Na primeira sessão da díade, ao buscar Rosa na sala de espera, vi seu filho sugando seu peito, mamando no colo como um bebezinho. Ao ser chamada para entrar, Rosa afastou-o do peito, e ele revidou com um grito e um choro estridente. Ao entrarem na sala, o "guri" grudou nas pernas da mãe. Rosa iniciou a sessão apontando para o comportamento do filho:

Olha só, eu não sei mais o que fazer, é sempre assim, eu já disse pra ele que, se continuar assim, vou deixar ele com o pai.

Na sala de atendimento, havia uma variedade de brinquedos e estímulos como bonecos, panelinhas e carrinhos, papéis, lápis de cor, tinta têmpera, uma fazendinha, entre outros. Foi orientado que ambos realizassem algo juntos, e o "guri" olhou a mesa, os brinquedos e voltou a olhar para a mãe. O menino começou a puxar a blusa de sua mãe, apertando seus seios e o seu pescoço, em uma cena de suplício e apelo para um seio-útero. Ele nada falava, enquanto a mãe repreendia o gesto do filho, afastando-o de si com as mãos e dizendo para ele parar.

Quanto mais a mãe empurrava o menino, mais ele tentava se grudar ao corpo dela. A psicanalista ofereceu uma miniatura de um bichinho de plástico, com o intuito de inserir um terceiro entre os dois, a fim de que a criança pudesse se apropriar de outro objeto que não fosse o corpo da mãe.

A mãe olhava para o brinquedo ofertado, mas não o introduzia no seio-outro, o da relação externa ao seu próprio seio. A criança agarrou o brinquedo e continuou grudada à mãe, de pé, entre suas pernas, enquanto se mantinha perto do seio-mãe. A criança foi convidada a desenhar. Olhou para a mesa de desenho, resmungou e puxou a mão da mãe. A mãe disse: "Vai lá, vai desenhar, se não eu não vou mais te trazer aqui".

A criança olhou para a psicanalista e, logo em seguida, para a mãe, puxando mais ainda a mão da mãe em direção à mesa de desenho. A psicanalista colocou uma cadeira mais alta próxima da mesa com os materiais de desenho. A mãe foi convidada a chegar mais perto da mesa, e prontamente a criança começou a explorar os materiais expostos, pegando as têmperas. Rosa não se envolveu na atividade da criança e narrou os eventos cotidianos sombreados de violência.

Quando foi perguntado o nome do "guri", a mãe comentou sobre a perda da primeira filha para explicar a nomeação do filho. Falou sobre o nome que a menina teria, a fim de clarear a escolha do nome dado ao "guri", ou seja, o filho foi batizado com o nome masculino da equivalência no feminino da irmã morta. Logo em seguida, João voltou a desenhar, finalizando com três semicírculos em azul. Depois, pegou a cola e usou-a em cima de todo o desenho. Praticamente um tubo todo de cola encobriu seus semicírculos. Perguntado sobre o que tinha desenhado, ele não respondeu. No encerramento da sessão, seu desenho foi manejado com muito cuidado, pois a cola pingava, o que remeteu à cena do leite do peito escorrendo.

 

1.1.1 Discussão

De acordo com os relatos e os comportamentos expressos, foram discutidos os seguintes aspectos: a história de Rosa e os aspectos transgeracionais da violência, a relação dual entre a mãe e o filho, e o lugar do pai, levando-se em conta o luto mal elaborado da primeira filha do casal.

Para a psicanálise, o sujeito do inconsciente é um sujeito singular em suas relações com os contextos; é tanto membro quanto ator. Segundo Kaës (2014), as alianças inconscientes são fundamentais para compreender o sujeito e sua intersubjetividade.

A partir do caso acima, Rosa, ao contar sua história, explicita a repetição de situações de desamparo e desvalia desde sua infância. Abandonada pela mãe dependente química, Rosa ficou impossibilitada de conhecer ou encontrar apoio e afeto em uma figura estável. Diante da decepção e da frustração, Rosa se entregou às ruas e, no meio do caos, encontrou seu primeiro companheiro: usuário de drogas e agressivo.

Em seu segundo casamento, Rosa repetiu a escolha de um parceiro que é usuário de drogas e também agressivo. Na falta da introjeção de possíveis cuidados internos favoráveis, Rosa prospecta em sua nova relação conjugal a ilusão de completude submetida à força do companheiro.

Rosa repete em seus relacionamentos um desejo de vir a ser, busca relacionamentos potencialmente destrutivos, revivendo situações desprazerosas de sua infância. É possível compreender que a falta de investimento de um cuidado materno dificultou para Rosa dar conta de suas necessidades e de investir em relacionamentos favoráveis, assim como descreve Winnicott ([1979] 1983).

De acordo com o autor, com base nas recordações do passado e no cuidado recebido, é mais provável que ocorra a projeção das necessidades pessoais e a introjeção dos cuidados necessários para se adequar ao meio e confiar nele.

De acordo com Aulagnier ([1975] 1979), em algumas mulheres, subsiste um desejo de maternidade, que é a negação de um desejo pela criança. De acordo com a autora, o desejo de maternidade é o desejo de repetir de forma especular a relação com a mãe. Rosa exclui os investimentos maternos na origem de João, não investindo narcisicamente em um sujeito-outro.

Além disso, João carrega a sombra da irmã morta, impossibilitando-o, assim, de ocupar uma posição outra que não seja a de um representante de vários objetos perdidos: os pais idealizados da infância e a filha.

Na relação de Rosa e João, identificou-se que ambos projetam e se identificam mutuamente quanto a suas necessidades de amparo, proteção e desafeto. As reações defensivas utilizadas para a resolução de seus conflitos é a identificação projetiva, em que eles alternam entre a posição de perseguidor e perseguido. O companheiro atual de Rosa, figura paterna ameaçadora, permanece representado nesse cenário como a encarnação do ódio, do qual mãe e filho não conseguem se desvencilhar.

De acordo com Käes (2014), o contrato de um grupo, no caso aqui, a família atual de Rosa, designa um certo lugar que é oferecido e significado pelas vozes dos sujeitos, os quais mantêm o mito fundador de grupo. Nesse discurso, incluem-se os ideais e valores de cada indivíduo, tornando-os ligados ao ancestral fundador.

Considerando o caso exposto, podemos identificar que Rosa e seu filho herdaram o contrato narcísico do sofrimento, do lugar de incompletude e desvalorização, inserido em uma sucessão de gerações, com a presença viva de uma figura paterna ameaçadora, abusiva. Portanto, essa figura que é impossibilitada de exercer sua função: a interdição da lei e do rompimento do vínculo simbiótico entre Rosa e seu filho.

De acordo com Berenstein e Puget (1994), o mandato da procriação inscreve a estrutura familiar e, mais ainda, delega no corpo feminino a entrega do corpo da mulher à continuidade da espécie.

No caso de Rosa, a forma como ela informou sobre a morte da primeira filha sugere o sentimento de fracasso, uma vez que ela reinscreve no filho sua impossibilidade de parir, ou seja, de gerar um outro ser psíquico.

O que a mãe recusa para o filho acerca do seu drama reaparece sob a forma de fantasma presente na queixa de que ele "não para quieto", pois ele parece ser o representante de sua pulsão, tentando inscrever no seu psiquismo aquilo que lhe falta, aquilo que ela não pode admitir que deseja.

A permanência do filho na condição de bebê que ainda mama no peito da mãe reitera à psicanalista a sensação do quanto a criança buscava entrar nesse corpo, ser gestado e parido novamente, na tentativa de "nascer psiquicamente".

Quando o "guri" procurava o seio da mãe e grudava-se em sua barriga, observou-se que a mãe não nomeava a intenção de seu filho, não utilizava a linguagem para estabelecer limites entre seus corpos. Afastar e empurrar entram na esfera do acting, tornando a descarga motora e corporal um meio de comunicação entre eles. Atos como esses podem estar associados a possíveis sentimentos de rejeição e impossibilidade de empatizar com a situação de não integração do self do filho.

Ainda que de forma infantilizada, o "guri" fazia uma tentativa de se unir para aprender a se separar, porém não encontrava formas possíveis de simbolizar suas demandas internas, delegando à mãe a tarefa de traduzi-las. O encontro boca-seio representa o originário, o primário, apontando para a função materna de prover uma satisfação vital.

De acordo com Aulagnier ([1975] 1979), cabe também à mãe oferecer um mundo habitado por uma cultura e uma lei, impondo, assim, a interdição necessária, a barreira psíquica que constituirá o Eu e o Outro. Nesse caso, a relação dual entre a mãe e o filho era evidente, sem a utilização da linguagem para a estruturação do Eu e, como consequência, sem a interdição de um terceiro.

Dessa forma, o narcisismo dessa criança está ligado ao que Berenstein e Puget (1994) denominam de objeto único, em que a mãe e a criança estão unidas em uma relação indissolúvel, dual, e o pai está excluído. O modelo de procriação, capaz de proporcionar um terceiro espaço na corporeidade do casal, representando um terceiro elemento desse vínculo, ainda está por ser representado no espaço clínico.

Nomeado porém ainda não representado como um sujeito de desejo, o "guri" faz tentativas de treinamento e reaproximação com a mãe na sessão, busca sua presença e pega os brinquedos, desenha. Rosa confunde o apego da criança com birra, sente-se irritada, desautoriza-se de ocupar um lugar idealizado e diferenciado em sua relação com o filho. João, ao borrar seu desenho com a cola, apresenta a invasão psíquica da qual o leite o representa. Borram-se os limites e o sujeito "guri" não pode advir.

 

Considerações finais

Com base no estudo de caso relatado, compreende-se que a escolha dos parceiros amorosos é perpetuada por desejos e conflitos infantis, a fim de que o casal possa dar um destino a suas pulsões sexuais infantis, de formas mais ou menos satisfatórias, frente às ansiedades de castração. Nesse sentido, com o surgimento de um filho, novas posições são remanejadas pelos pais, para que as figuras materna e paterna contribuam para o desenvolvimento de seu filho.

No caso do "guri", o fantasma da irmã morta, as relações invasivas vivenciadas pela mãe, assim como uma figura paterna frágil, desvalida, foram considerados enlaces psíquicos desfavoráveis para o desenvolvimento emocional primitivo.

Dessa forma, a relação dual entre a mãe e a criança, no caso apresentado, perpetua uma dependência, que, além de proteger a dupla de sua existência/permanência em casa, paralisa a autonomia e a independência de ambos em face de novos investimentos afetivos. A linguagem que não se instala perpetua modos de funcionamento primários entre mãe e filho, entre pais e filho.

Os aspectos transgeracionais, no caso apresentado, buscam uma inscrição psíquica, pela repetição de comportamentos e formas de relacionamentos confusionais e indiferenciados. O "guri", portanto, busca a inscrição de seu nome e de sua condição de sujeito a partir da repetição incessante de um querer se inscrever, tal qual a pulsão.

No caso apresentado, a escuta qualificada foi essencial para identificar que o sofrimento psíquico da violência contra a mulher/mãe estava sendo reproduzido e perpetuado pela própria mulher em sua relação com o filho. Muitas vezes, as crianças apresentam sintomas manifestados no corpo, no comportamento ou na aprendizagem, sem que sejam contempladas suas relações com o contexto de vida.

Intervenções na díade mãe-criança, atreladas à implicação da figura paterna ou de um terceiro que funcione como balizador e apoiador na construção desse vínculo primordial, são imprescindíveis para que o ciclo da violência seja rompido e atue como mito fundador do psiquismo e da constituição de outros vínculos para além da família de origem.

 

Referências

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BERENSTEIN, I; PUGET, J. Psicanálise do casal. Porto Alegre, RS: Artes Médicas, 1994.         [ Links ]

CONTE, R. F. O corpo ferido e a feminilidade na violência de gênero. Curitiba, PR: Appris, 2020.         [ Links ]

CUNHA, A. G. Dicionário histórico das palavras portuguesas de origem tupi. 5. ed. São Paulo, SP: Melhoramentos; Brasília, DF: Ed. UnB, 1999.         [ Links ]

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KÄES, R. As alianças inconscientes. São Paulo, SP: Ideias & Letras, 2014.         [ Links ]

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NOGUEIRA, L. C. A pesquisa em psicanálise. Psicologia USP, São Paulo, SP, n. 15, v. 1-2, p. 83-106, 2004. Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642004000100013. Acesso em: 01 jun. 2021.         [ Links ]

WINNICOTT, D. W. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (1979). Tradução: Ireneo Constantino Schuch Ortiz. Porto Alegre, RS: Artes Médicas, 1983.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: rfconte@ucs.br

Recebido em: 10/05/2021
Aprovado em: 30/05/2021

 

 

SOBRE A AUTORA

Raquel Furtado Conte
Psicóloga Clínica.
Formação em Psicanálise pelo Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEP).
Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Doutora em diversidade e inclusão social pela Universidade Feevale (FEEVALE).
Professora Titular do Curso de Psicologia da Universidade de Caxias do Sul (UCS-RS).
Membro do Corpo Docente do Programa de Pós-Graduação do Mestrado Profissional em Psicologia (PPGPSI) da Universidade de Caxias do Sul (UCS-RS).
Doutora em diversidade e inclusão social pela Universidade Feevale (FEEVALE).
Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Membro do Grupo de Estudos Psicologia e Estudos de Gênero da ANPEPP.

 

1 O termo "guri" veio do Tupi  gwi'ri com a acepção que designa o "bagre novo" (tipo de peixe), por extensão de sentido, a criança. (CUNHA, 1999).

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