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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.56 Belo Horizonte jul./dez. 2021

 

MESAS E TRABALHOS – XXVI CONGRESSO DO CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE - PARA ALÉM DA PANDEMIA: ECOS NA PSICANÁLISE

 

Reflexões pandêmicas sobre a transmissão da psicanálise e os riscos do uso excessivo do on-line – uma visão psicanalítica1

 

Pandemic reflections on the transmission of psychoanalysis and the risks of excessive use of online – a psychoanalytic view

 

 

Anchyses Jobim LopesI, II, III

I Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro
II Universidade Estácio de Sá
III International Federation of Psychoanalytic Societies

 

 


RESUMO

O on-line como imperioso devido à pandemia e suas vantagens. Em oposto a suposta facilidade da transmissão on-line da psicanálise, que tende a vendê-la, empobrecê-la sem ser de fato psicanálise. Falta de espaços físicos para convivência social comprometendo o tripé: análise pessoal/supervisão/teoria. A possível falha na formação de vínculos sociais entre: os membros mais recentes e os mais antigos, entre colegas nas aulas de formação, entre supervisores e supervisionados (análise quarta). O excesso da imagem nas redes sociais e teleconferências acentuando a violência. Linguagem e imagem: denotação versus conotação (linguística), representação da coisa versus representação da palavra (Freud), pensamento concreto versus pensamento abstrato (psiquiatria), imaginário versus simbólico (Lacan), imagem muro versus imagem furo (Tania Rivera). Imagem apenas da face e ombros e sua associação com objetos parciais. Fragmentação da imagem do grupo em imagens individuais.

Palavras-chave: Pandemia, Transmissão, Linguagem, Imagem, Representação de coisa, Representação de palavra.


ABSTRACT

The online as imperative due to the pandemic and its advantages. On the contrary, the supposed facilitation of online transmission makes it be sold impoverished and without actually being psychoanalysis. Lack of physical spaces and social coexistence compromising the tripod: personal analysis/supervision/theory. The possible failure to form social bonds between: the most recent and the oldest members, between colleagues in training classes, between supervisors and supervisees (fourth analysis). The excesses of the image on social networks and teleconferences accentuating violence. Language and image: denotation versus connotation (linguistics), representation of the thing versus representation of the word (Freud), concrete thought versus abstract thought (psychiatry), imaginary versus symbolic (Lacan), wall image versus hole image (Tania Rivera). Image only of the face and shoulders and their association with partial objects. Fragmentation of the group image into individual images.

Keywords: Pandemic, Transmission, Language, Image, Thing representation, Word representation.


 

1 Historicidade e transferência - os desafios da pandemia e o oposto do não pertencimento contemporâneo

A psicanálise surgiu como um saber histórico. Um método que serviu de base para cada ser humano descobrir sua própria história. Método clínico que foi além do que Freud esperava e forneceu a base de uma teoria que, entre outras funções, também se desenvolveu em um saber sobre a história do ser humano e sua cultura. Tudo na contramão dos agregados contemporâneos de técnicas e instrumentalizações. por meio dos quais a sociedade industrial chegou ao ápice com a computação, com conteúdos sendo transmitidos como se tivessem surgido do nada, como acabados e perfeitos desde sempre.

A historicidade ecoou retornando à própria psicanálise. Além de pesquisar como e por que ocorreu o início da psicanálise, se diversificou em sentido oposto: compreender como germinaram e cresceram as múltiplas leituras e aplicações clínicas do saber freudiano. Uma enorme e frondosa árvore que prospera há mais de cento e trinta anos.

A busca das origens permanece como parte do ensino e transmissão da prática clínica psicanalítica iniciada na própria autoanálise de Freud, e continuada através das terapias de seus pacientes. Acrescida pela interpretação de seus próprios sonhos, Freud foi além do mito do herói. Saber e criticar a história do fundador, bem como as origens da psicanálise é essencial para a fundamentação e o exercício do tripé que mantém ensino da teoria/supervisão/análise pessoal. Sendo fundamental e mais importante a análise pessoal. O psicanalista só pode advir de sua experiência no divã. É possível ensinar algo sobre o inconsciente. Mas o inconsciente só se aprende (ou apreende) no divã. E o mais grave sintoma que denuncia instituições que se nomeiam, mas em si não são psicanalíticas, é a incompreensão da importância e do que seja uma análise pessoal. Sintoma gravíssimo, pois, tal escreveu Freud com seu típico humor, o que acontece com quem propagandeia a psicanálise, mas a ela nunca se submeteu enquanto paciente:

Todo mundo está rapidamente disposto a tornar-se adepto da psicanálise – com a condição de que a análise pessoalmente o poupe (FREUD, [1917] 1978, p. 289, tradução nossa).

Análise pessoal que, com todas as vicissitudes de uma autoanálise, provocou Freud a descobrir e ressignificar sua história pessoal. A descoberta do recalque permitiu-lhe relembrar e ressignificar parte das memórias e desejos dos primeiros anos de sua vida, o que o levou à descoberta importância da sexualidade e das experiências primeira infância para a compreensão do nosso eu.

Mas para o sapiens um eu não existe sem outros eus. O início da transmissão do saber psicanalítico foi iniciado em 1902, de modo muito informal, em reuniões na casa de Freud.

O ritual era sempre o mesmo: formando um cenáculo em torno do "pai", os homens das quartas-feiras identificavam-se com a famosa "horda selvagem" que Freud descreveria em Totem e tabu [...]. Sentados ao redor de uma mesa oval, tinham a obrigação de participar dos debates, sem ter direito de ler papéis preparados com antecedência. [...] Em 1906, o jovem Otto Rank, nomeado secretário, encarregou-se de estabelecer uma ata pormenorizada das sessões. [...] O cenáculo transformou-se num lugar de memória (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 719).

Em 1907 Freud dissolveu esse círculo informal e no ano seguinte fundou a primeira instituição oficial da psicanálise: a Sociedade Psicanalítica de Viena, que três anos depois foi englobada em uma instituição transnacional: a Associação Psicanalítica Internacional.

Nos cem anos que se seguiram, ocorreram cisões e cismas. Alguns mais vinculados a questões políticas e organizacionais. Outros, além de questões institucionais, derivados de novos autores e a partir de diferentes leituras da obra de Freud: Klein, Winnicott, Lacan, citando apenas os mais famosos. Porém outros autores, cuja leitura e prática foi considerada divergente demais, inclusive por eles mesmos, fundaram instituições com nomeações diferentes, tal como Gustav Jung e Viktor Frankl; psicologia analítica, logoterapia, análise existencial e outras, embora o nome "psicanálise" tenha se tornado um significante tão valioso que, com frequência, é espuriamente acrescentado a essas terapias

Essas questões foram revisitadas nos primeiros anos do Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras surgido em 2000. Era necessário minimante aparar arestas entre as diversas instituições participantes. Tratava-se de um movimento político composto por uma multiplicidade de instituições e federações, sempre fruto de cisões e divergências políticas e da diversidade de leituras a partir da obra de Freud. Um dos primeiros consensos, algo que deveria ser óbvio, mas fora relegado a segundo plano, foi redescoberto: todas partilham de uma origem histórica comum, seja por apenas uma bifurcação, seja depois de duas ou três outras secessões, todas instituições partilham da mesma origem genealógica: o "grupo das quartas-feiras" e a Sociedade Psicanalítica de Viena. E essa origem, mais que uma tradição e apesar das diversas leituras da obra freudiana, se fundamenta por meio de princípios éticos comuns relativos à transmissão da psicanálise. Ao mesmo tempo, a obrigatoriedade da análise pessoal leva à hipótese de uma longa série transferencial perpassando a história da psicanálise. As instituições que tentavam se apossar do significante "psicanálise" eram completamente alheias a esses encadeamentos.

Muitos psicanalistas das instituições que compunham o 'saco de gatos' da psicanálise brasileira já haviam tido contato com anúncios ofertando cursos supostamente de psicanálise cujas características lhes eram completamente estranhas. E bastava arranhar um pouco a superfície dessas propostas, que surgiam comprometimentos bizarros. Estavam ligadas a denominações religiosas, propostas de regulamentação a partir de supostos conselhos profissionais, sindicatos e o material didático continha conteúdos os mais duvidosos: apostilas contendo tudo exceto a leitura direta das obras de Freud e nem ao menos resumos razoáveis. Além, é claro, de não possuírem a obrigatoriedade da análise pessoal ou oferecerem coisas bizarras como "análise didática de quarenta sessões". Mas buscavam, para exercer a hegemonia, em proveito próprio, regulamentar a psicanálise no Brasil por meio de Conselhos Regionais e Federal de Psicanálise Clínica.

Já nas primeiras reuniões da Articulação, a diversidade das instituições psicanalíticas que a compunham descobriu mais traços comuns. Apesar de grande heterogeneidade, nenhuma possuía fins lucrativos. Algumas eram compostas de poucas dezenas de participantes, outras eram federações com centenas ou até milhares de membros e candidatos. Mas, em todas as instituições, eram sempre os membros (ou qualquer outro nome pelo qual se intitulassem) que eram os próprios donos. E como donos dos meios de produção, além da transmissão de ensino e experiência clínica, a produção escrita de saber era enorme – periódicos, revistas, livros – assim como a realização de eventos e congressos. O lucro não ia para terceiros, donos de redes de instituições particulares de ensino ou de denominações religiosas que visam mais o lucro que a fé.

A Articulação chegou a poucos outros consensos. Dois foram essenciais: primeiro, que a transmissão se dá pelo já mencionado tripé análise pessoal/ensino teórico/supervisão; segundo, que toda análise é leiga e laica. O psicanalista não necessita ser médico ou psicólogo. Uma entidade psicanalítica não pode estar ligada a uma instituição religiosa. Como deixou Freud por escrito, ao comentar o vínculo entre duas de suas obras: A questão da análise leiga e O futuro de uma ilusão:

Na primeira quero proteger a psicanálise dos médicos. Na segunda dos sacerdotes. Quero entregá-la a uma categoria de curadores de alma que não necessitam ser médicos e não podem ser sacerdotes (FREUD; PFISTER, 1963, p. 126).

Tampouco a transmissão da psicanálise pode estar subordinada a uma instituição de ensino pública ou privada. A universidade não tem como exigir e indicar analistas para os alunos entre os membros de seu corpo docente. Seria um modo de coerção. Problema que transpassa a própria história das entidades psicanalítica. Não pode existir qualquer forma de poder do analista sobre o analisando. A longa história das instituições psicanalíticas as fez experimentar em si mesmas todos os malefícios quando era usado qualquer sistema minimamente coercitivo para o cumprimento da obrigatoriedade de análise pessoal., principalmente na obrigatoriedade dos analistas de candidatos serem da própria instituição.

Outra característica comum das formações psicanalíticas é o modo de pertencimento dos membros à instituição. Sempre há alguns entrando e outros se desligando. Contudo, o ideal é a participação por toda a vida. Há várias formas rotineiras de reuniões: administrativas, didáticas e clínicas. Contudo, além dessas obrigatórias há cursos complementares, cartéis, grupos de trabalho, reuniões, jornadas, congressos. Qual seja a leitura da obra de Freud, é consenso que a formação psicanalítica é um movimento sem fim. A instituição psicanalítica não é um local que se frequenta por um número específico de anos, se recebe um diploma ou certificado, que daria a certeza de se estar pronto e competente para ser analista, e vai-se embora.

A experiência através da análise pessoal com o inconsciente é complementada com os restos inanalisáveis dos limites do próprio tratamento e da infinitude do inconsciente. Restos que impulsionam o acolhimento de novos pacientes e a necessidade de permanente transmissão de teoria e clínica dentro da instituição. Desde o início a participação, desde novos colegas, até o que para os mais antigos tornou-se um hábito: a convivência é necessária à produção e ao compartilhamento do pouco que se pode saber. A formação permanente de estar sempre se tornando um pouco mais analista. Em resumo, a manutenção da relação transferencial com a instituição.

Todos estes preceitos anteriores ou posteriores à Articulação foram colocados em xeque pela pandemia do covid-19. Em pouco mais de dois meses, abril e junho de 2020, o Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro, usando a plataforma Zoom, retomou todas as atividades rotineiras: aulas, supervisões coletivas e triagem de novos pacientes das clínicas sociais. Apesar da situação dramática, com risco mortal, houve júbilo pela continuidade de todas as tarefas. Ocorreu também o aumento de reuniões e intercâmbio, tanto dentro do CBP-RJ, quanto entre as filiadas do CBP. Mas, a partir do segundo ano da pandemia, diante do uso exclusivo de meios digitais, a questão didática e o pertencimento à instituição tornaram-se um desafio.

De que modos o mundo digital exclusivo pode, por si mesmo, beneficiar ou prejudicar o pertencimento a instituição e a transmissão pelo tripé curso teórico/supervisão/análise pessoal? A tarefa que se impõe é a pesquisa por meio de uma leitura psicanalítica.

 

2 O pulo do gato: o tripé da formação psicanalítica e os meios digitais em uma situação de emergência

Na segunda quinzena de março de 2020, devido ao início da pandemia de covid-19, todas as atividades na sede do CBP-RJ foram suspensas: trabalho da secretaria, seminários da formação psicanalítica e cursos livres, supervisões coletivas e triagens de novos pacientes pelo Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP) e pelo Núcleo Psicanalítico de Estudos da Infância e Adolescência (NEPsi). O atendimento da secretaria passou a ser on-line.

A partir da primeira semana de abril, os membros efetivos e uma psicanalista convidada, professores do curso de formação psicanalítica, reuniram-se às terças e quintas, à noite, a partir das 21 horas, para aprender como trabalhar a partir da plataforma Zoom de videoconferência. Levando em conta que, com poucas exceções, psicanalistas são muito mais adeptos da palavra falada ou livrescamente escrita do que das telas.

Algumas reuniões terminaram quase à meia-noite. Era o objetivo que as turmas em formação não perdessem o semestre letivo, o que foi alcançado. A partir do dia 15 de abril, foram retomados os seminários das quatro turmas. Ocorreu apenas uma breve extensão das aulas ao início de julho.

Em 22 de abril e 7 de maio, respectivamente, reiniciaram on-line as duas supervisões coletivas do CAP. As supervisões do NEPsi já tinham sido reiniciadas em 15 de abril. A partir de junho recomeçou o aceite de inscrições para entrevistas de triagem ao CAP e o encaminhamento aos candidatos da formação psicanalítica de novos pacientes. Nos meses seguintes todo o cronograma de jornadas e assembleias gerais foi retomado.

Vista de modo objetivo, a passagem para o on-line foi um sucesso. Foi para todos uma grande satisfação que não tenha ocorrida perda de continuidade dos trabalhos e de um semestre letivo para nenhuma das quatro turmas de formação. Apesar da catástrofe mundial, foi com algum júbilo e sentimento de heroísmo que transcorreu o restante de 2020. Mas, ao contrário do que se tinha esperança, a pandemia continuou por todo o ano de 2021.

Todos os membros e os candidatos mais antigos conviveram presencialmente. Os que realizaram as entrevistas de seleção no final de 2019 e início de 2020 estiveram presencialmente na sede do CBP-RJ e ali participaram dos seminários iniciais em duas disciplinas. Mas os que ingressaram a partir do segundo ano da pandemia jamais frequentaram a sede física da instituição ou conviveram presencialmente com os demais candidatos e membros. Nem tiveram convívio em eventos na própria sede. Faltaram os lanches e cafezinhos dos intervalos entre seminários, aulas, palestras, supervisões coletivas e jornadas internas. Assim como as viagens a algumas das jornadas de outros círculos ou dos congressos bianuais do CBP.

Bem antes da pandemia, o CBP-RJ escolhera sediar o XXIV Congresso do CBP, além de há alguns anos acolher a sede da federação. Entre os dias 4 e 6 de novembro de 2021 ocorreu o congresso, manhã, tarde e noite, pela plataforma Zoom. Tudo ocorreu a contento. As carências do on-line foram compensadas por uma adesão muito maior de membros e candidatos de todos os círculos. Mas os almoços, jantares, passeios e compra de livros dos congressos presenciais também são atividades psicanalíticas, parte do elo entre os membros e candidatos das federadas. E essa parte extinguiu-se.

Ao longo de 2021 todos os trabalhos on-line começaram a manifestar mais as carências que a falta da convivência presencial trazia internamente a uma sociedade psicanalítica. E quanto ao tripé curso teórico/supervisão/análise pessoal, quanto e como poderia estar sendo comprometido?

 

3 A transmissão do tripé – teoria/supervisão/análise pessoal – e a pandemia

3.1 Ensino da teoria

O conteúdo dos seminários seguia de modo adequado. Com pouco mais de um mês de experiência antes dos colegas do Círculo, mas já conhecedor do ensino on-line de graduação (mais tarde também de especialização) em faculdade de psicologia, instituição particular, o coordenador da comissão científica e de formação permanente do CBP-RJ propôs aos demais membros da diretoria que, em todas as atividades, os candidatos só recebessem presença se estivessem com as câmeras ligadas. Os colegas do CBP-RJ acataram o relato sobre turmas de graduação universitária de quarenta até mais de noventa alunos, onde quase todos eram reduzidos a letras mudas em uma tela. E muitas vezes ocorria a comprovação de que grande parte, provavelmente a esmagadora a maioria, apenas fingia estar presente.

Em comparação com os cursos de graduação universitária, com dezenas de alunos, o curso de formação constitui uma pós-graduação lato sensu e compõe-se de turmas com, no máximo, até 12 ou 13 candidatos. E as câmaras abertas mantinham o mais possível on-line a convivência dos membros do grupo entre si e o diálogo com os professores.

Mas, a partir do segundo ano da pandemia, de tempos em tempos, também começaram a surgir as mais variadas razões para que as câmaras não fossem ligadas. Apesar de partirem de uma minoria dos candidatos, também surgiram e foram se avolumando outros fatos, como: dificuldades da internet, presença de terceiros no ambiente do candidato, assistência das aulas no local de trabalho ou dirigindo veículos, candidatos que aparentavam estar simultaneamente realizando outra tarefa, além de problemas técnicos da internet. Seria fácil acusar os candidatos de crescente displicência e cansaço com a duração da pandemia. Mas uma visão psicanalítica também era necessária.

Já foi mencionado que a turma iniciada em março de 2020 teve a seleção por entrevistas presenciais e uma primeira aula presencial na sede do Círculo. Mas a turma de 2021, já iniciada por entrevistas de seleção on-line, jamais pôs os pés na sede. Muito menos participara dos cafezinhos e lanches nos intervalos das aulas, dos comentários exclusivos entre os colegas da turma (meios como o WhatsApp transmitiam só recados breves) ou o conhecimento dos colegas candidatos da outra turma daquela noite, muito menos dos membros efetivos que por quaisquer motivos apareciam quando as atividades eram presenciais. Pode-se ver várias falhas básicas para o estabelecimento de vários modos de vínculos transferenciais, também potencializados pelo fato de que, aparentemente uma comodidade que seria benéfica mesmo sem pandemia – a instantaneidade entre a residência e o local das atividades institucionais – priva docentes e discentes do espaço e do tempo transicionais para a passagem de atividades diversas. Percorrer o caminho do trabalho ou lar até a instituição psicanalítica é parte da formação, tanto como o percurso até o consultório do analista é parte da análise. Os rituais têm sua razão de ser.

A crítica de que, mesmo sem pandemia, seria obrigatório o abandono de rituais obsoletos em prol do progresso, em sua maior parte mostrou-se uma falácia. Era evidente que para muitas instituições privadas de ensino superior o on-line tem interesse oposto ao de uma instituição psicanalítica: aumenta o lucro, precariza o trabalho do professor e permite uma quantidade de alunos que, tanto quanto se sabe, não é permitida presencialmente, tanto por falta de espaço físico como pela legislação. Além do lucro com a diminuição das despesas de manutenção e a diminuição do número dos funcionários de apoio em sedes presenciais.

Mas no terceiro grau, os próprios meios de videoconferência tinham sua responsabilidade na perda da qualidade didática. Tornavam cada vez mais secundário ou inútil o talento do professor em passar o conteúdo da aula e responder a perguntas dos alunos. Em vez de exposições orais, meios que já existiam facilitando a didática, como vídeos ou Power Point, hipertrofiaram em métodos que se autoexecutam, visualmente sedutores, mas desprovidos de transferência com o professor. O passo seguinte foi oferecer cursos em aulas gravadas, facilitando que o aluno possa assisti-las quando e onde quiser. Mas o quanto foi perdido em de qualidade do ensino pela falta de uma relação transferencial com o professor?

Câmaras apagadas, aulas gravadas, mecanismo que de acessórios passam a ser a aula em si e a didática decai em treinamento. Uma pós-graduação lato sensu em pequenos grupos pode ser vendida maciça e exclusivamente on-line. Seja em anúncios pelo Google, seja em redes sociais, notadamente o Facebook, a oferta de cursos completamente on-line de suposta formação psicanalítica já aparecia em número cada vez maior antes da pandemia. Mas explodiu a partir do segundo ano da pandemia. Casos em que o on-line não decorria como algo emergencial, devido à extrema vicissitude da crise sanitária, mas como um fim em si mesmo, mal disfarçando a busca de um lucro muito maior que os custos com instituições presenciais.

A questão das terapias on-line já vinha sendo discutida há mais de década. Inclusive foi um dos temas do congresso do CBP em 2015 Conexões virtuais: diálogos com a psicanálise. Com considerações que, mesmo predominando o on-line, algumas sessões presenciais são necessárias. Mas da transmissão da psicanálise nunca fora objeto de experiência e estudo no CBP.

Contudo, desde Sócrates e Platão, o que hoje designamos como transferência já era considerado fundamental no ensino. Mais ainda em uma sociedade psicanalítica, onde, além do relacionamento com os professores, há também o aconchego do local físico. Embasamento para que além da transferência individual, ocorram também grupais e institucionais. Pensando mais um pouco com Winnicott, quanta carência de holding e de handling. Privados de aconchego e cuidados, como recriar espaços potenciais e apresentar o novo conhecimento em sua forma de objeto transicional? Sem o lado físico da presença humana, que torna a transferência algo que ocorre em grande parte de inconsciente a inconsciente, tendo também uma dimensão corporal, como apresentar novos objetos que não se tornem meras intelectualizações, racionalizações e solidifiquem um falso self?

Mais do que isso, formação psicanalítica não termina por exaurir número de horas de ensino ou de disciplinas. No CBP-RJ a coordenação que administra a parte didática é designada "de ensino e formação permanente". Quase todos os professores originaram-se da instituição. Ensinar é a melhor forma de continuar aprendendo. Em mais de cento e vinte anos o crescimento e a diversidade do saber e da prática psicanalíticas foram imensos. A duração da existência humana mal dá para arranhar uma pequena parte. Mesmo que fosse um saber bem mais restrito, a fundamentação ética impede que o analista se considere detentor de superioridade sobre o analisando, desembocando no aconselhamento do 'eu sei o que é melhor para você". O que mais Freud temia, a decadência da psicanálise em hipnose, religião e manipulação do eu ideal. Algo que ocorre não somente no setting, mas também compromete a transmissão da psicanálise em uma instituição verdadeiramente psicanalítica.

Aumentaram muito e surgiram na internet novas propostas de outorgar algum diploma ou certificado por meio de cursos inteiramente on-line. Curso de pós-graduação e mesmo de graduação, muitos se dizendo reconhecidos pelo MEC. Cursos em que a análise pessoal é apresentada como se fosse apenas mais uma ou mais disciplinas do currículo. Vários textos, escritos por membros da Articulação ou outros, enfatizam que tais cursos são meras armadilhas de consumo, reforçando uma fantasia de completude. Terminando com a concessão de diploma garantindo que seu possuidor está pronto e acabado para o mercado de trabalho.

 

3.2 Prática da supervisão

A passagem exclusiva para o on-line afetou menos as supervisões coletivas das clínicas sociais do CBP-RJ. Tanto por ser uma carga horária menor que os seminários teóricos, quanto pelas supervisões iniciarem a partir do terceiro dos quatro anos do curso teórico. Ao início da pandemia, os candidatos que já haviam participado das supervisões ou que haviam sido admitidos, já vinham de dois ou mais anos de convivência institucional e com outros candidatos. Também ocorreu a grata surpresa de que a maioria esmagadora dos pacientes aceitou bem a passagem para terapias on-line.

A partir do terceiro ano da formação, os candidatos do CBP-RJ passam por dois tipos de supervisão. Uma, obrigatória, composta de duas séries de cinquenta sessões com qualquer um dos membros efetivos. Outra, em princípio opcional, com a participação na Clínica de Atendimento Psicanalítica (CAP) e/ou no Núcleo Psicanalítico de Estudos da Infância (NEPsI). Em ambos os casos, as supervisões são coletivas. A reforma que instituiu as do CAP ocorreu em 2005 e o NEPsI surgiu seis anos depois. Desde sua criação, todos os candidatos sempre optaram pela participação nas supervisões coletivas.

Mas, a partir do segundo ano da pandemia, começou a ocorrer com frequência também a banalização das triagens. Realizadas exclusivamente por candidatos e, antes da pandemia, sempre na sede do Círculo, contra o pagamento de uma taxa de trinta reais à secretaria, as triagens eram fonte de transferência institucional. Motivos práticos do on-line tornaram impraticável o pagamento da pequena taxa à secretaria.

Dezesseis anos antes, quando da mudança radical do modo de funcionamento do CAP, a transferência institucional foi inicialmente considerada negativa, mas inevitável. Com a experiência de muitas triagens on-line dos candidatos agora viu-se o oposto. A prática de mais de 1.300 triagens presenciais, ao longo de 16 anos, comparada com aquelas on-line, demonstrou que a transferência com a instituição provocava um investimento na terapia prévio à triagem. Após mais de ano de triagens on-line, a consideração feita pelos candidatos era de que, todo um ritual pelos futuros pacientes, desde o deslocamento e o gasto com condução, o pagamento de uma pequena taxa na secretaria (trinta reais), esperar alguns minutos na sala de entrada, espaço comum a efetivos, candidatos da formação e candidatos para terapia, fornecia um investimento transferencial prévio.

Além da perda do tempo e espaço para a transferência institucional, conscientemente ou não fortalecendo o investimento do candidato(a) a paciente em sua terapia, também ocorreram algumas entrevistas em que outra pessoa estava no ambiente do candidato a paciente, outras eram realizadas no ambiente de trabalho do entrevistado, que simultaneamente respondia às questões do entrevistador, enquanto realizava seu ofício. Em suma, uma trivialização, em tudo semelhante à das aulas exclusivamente on-line.

Quanto à própria supervisão em si, não se trata apenas da orientação pelo detentor de um saber ou experiência maior. A transmissão em psicanálise vai muito além da mera informação e treinamento, sendo também transferencial. Donde Valabrega (1992 citado por Stein , 1992) utiliza a expressão "análise quarta". A análise primeira é aquela entre o paciente e o candidato; a segunda, a do candidato com seu analista, e a terceira, a desse analista em sua própria análise pessoal. Todas as quatro constituem a rede de desejos de análise, com os restos e as sobras de análise, que, transbordando, resultam em uma formação. Com as quatro derramando transferência e resistência, amor e ódio. E sendo as quatro análises as principais mantenedoras de uma sociedade psicanalítica, pode-se também invocar todos os fenômenos grupais descritos por Freud desde Totem e tabu (1913) até Moisés e o monoteísmo (1939). Nunca a análise quarta está completamente desimpedida da situação institucional. Inclusive numa sociedade como o CBP-RJ, em que os supervisores não prestam contas do "desenvolvimento" do candidato a uma comissão de formação. Apenas ao final de cada uma das duas supervisões individuais de cinquenta horas, para fins curriculares, assinam uma declaração.

Contudo, no CBP-RJ, além das duas supervisões individuais, há as supervisões em grupo semanais. A exigência de duas supervisões individuais já ampliava a rede de análises em uma quinta análise. A criação a partir de 2005 dos grupos de supervisão coletiva expandiu ainda mais essa rede. Há variações: alguns candidatos participam das três supervisões grupais; outros, de uma. Independentemente dessa variação, cada participante de cada grupo é um analista sexto, sétimo, oitavo, etc.

O mesmo caso pode ser levado a diferentes supervisões. Muitas vezes cacofônica e discordante, a variedade de vozes das supervisões individuais e grupais obriga que o candidato desenvolva mais seu próprio modelo de analista. Enquanto irmãos da horda, os candidatos estão mais à vontade para detonar os receios que supervisores individuais possam ter em apontar pontos cegos, resistências e visões românticas sobre o paciente nos casos apresentados por outrem.

Mas, no on-line exclusivo, todos esses fenômenos transferenciais, psicanaliticamente próximos da análise pessoal ou de grupo, não a compra de um produto em supermercado, podem ser comprometidos. Além de sofrer todas as vicissitudes relatadas sobre as aulas on-line, o direito do paciente ao sigilo tem de sofrer uma discreta vigilância dos supervisores. Devido ao fato dos diversos locais onde estão os candidatos e a possibilidade da presença de terceiros.

 

3.3 Análise pessoal

Há mais de vinte anos surgiram na internet ofertas de supostas formações psicanalíticas. Propaganda que continha elementos estranhos à galáxia de instituições conhecidas. Na primeira reunião do que viria a ser o Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, foi trazido pelo CFP e a Associação Brasileira de Psicanálise (ABP, hoje Febrapsi), no primeiro semestre de 2020, surgiram informações de que eram entidades vinculadas à religião e completamente alheias à genealogia da psicanálise acima mencionada. Mas o realmente grave era que o conteúdo ofertado como ensino teórico pouco ou nada tinha de psicanálise e, entre outras coisas, chegou a incluir curso de primeiros socorros. Não englobava supervisão ou a reduzia a números de um dígito. Era o completo desconhecimento sobre a importância fundamental da análise pessoal para a formação do analista. No início não a mencionava e, quando começou a fazê-lo, sempre usava o termo "análise didática", com número fixo de sessões, no máximo cinquenta.

Com o passar dos anos, as propostas foram ficando mais estruturadas e complexas. Mas sempre com o desconhecimento sobre a importância e o sentido do que seja análise pessoal do futuro analista. Item que do tripé da formação do analista é tido o item mais importante. Ocorriam, e ainda ocorrem, até ofertas de "análise didática" como se fosse uma disciplina do currículo.

Ficava nítido o desconhecimento de que na história da transmissão da psicanálise, iniciada no grupo das quartas-feiras, o que primeiro surgiu foi a análise pessoal obrigatória. Somente depois de mais de década, já fundadas as primeiras sociedades da IPA e somente nos anos vinte do século passado, foi organizada a transmissão da parte teórica. Deu-se por meio da criação de órgãos das sociedades psicanalíticas, os institutos de psicanálise, com a finalidade do ensino teórico aos candidatos (DANTO, 2019, p. 125). Ficando completo o tripé teoria/supervisão/análise pessoal.

Seguiram-se décadas de discussão sobre o risco sobre o terapeuta tem poder institucional sobre o candidato. Até mesmo se deveria ser ou não da própria sociedade do candidato. Pois sabedor de que o terapeuta tem poder concreto, inconscientemente o eu do candidato recalcaria tudo que pudesse ser malvisto pelo terapeuta. E muitos casos até mesmo ocorrendo a supressão consciente de material. Em resumo, a suposta análise didática fomentaria a criação de falsos selfs.

Mas também não funcionou o modelo oposto, o de muitas instituições lacanianas, de que além da completa independência e sigilo da análise pessoal, teria de haver 'demanda'. Surge, então, algo que observamos a partir de participação durante cinco anos em sociedade lacaniana, um grande reforço da resistência: nunca ocorre "demanda". Variante atualizada da já mencionada frase de Freud de que "todo mundo está rapidamente disposto a tornar-se adepto da psicanálise – com a condição de que a análise pessoalmente o poupe".

Além disso, a genealogia transferencial desde o grupo das quartas-feiras invoca todos os conflitos sucessórios – logo edípicos e plenos de ambivalência – entre gerações. Um dos motivos pelos quais jamais foi possível organizar um congresso transinstitucional sobre a história da psicanálise no Brasil. Contudo, seja qual for a leitura da obra freudiana, há o consenso de que sem análise pessoal não há analista, possibilidade de neutralidade ou ética. Acompanhando há quase três décadas novos candidatos no CBP-RJ, o cumprimento da exigência de análise pessoal durante toda a formação é o item do tripé que mais requer ser continuamente fiscalizado pela instituição.

Nas últimas três décadas também surgiram especializações e pós-graduações stricto sensu por instituições universitárias. Apesar da qualidade do ensino e pesquisa serem em geral sérios, também prescindem de análise pessoal. Nesses casos, apesar da advertência de que o ensino universitário não forma psicanalistas, com muita frequência as pós-graduações lato e stricto sensu são usadas para que o diplomado se outorgue o título de psicanalista.

Com o crescimento dos sistemas de busca na internet e das redes sociais, mais um tipo de oferta surgiu. Em qualquer pesquisa, surgem vários anúncios e mais de uma dezena de ofertas de cursos sobre psicanálise. Em cursos, a maioria exclusivamente digitais, de duração bem delimitada – três ou quatro semestres, às vezes só meio ano – que se propõem formar psicanalistas, a menção de análise pessoal não passa de mera formalidade, com o objetivo de dizer que o tripé teoria/supervisão/análise pessoal está sendo satisfeito.

A seriedade da maior parte das pós-graduações lato ou stricto sensu não as permite oficialmente oferecer o título de psicanalista. Já os cursos de origem religiosa, e a maior parte do que é oferecido on-line explicitamente vende a ideia de que sua conclusão outorgará o título de psicanalista. Contudo, a lógica não difere muito entre todos os casos. Nestes ser psicanalista não seria fruto de uma análise pessoal, cujos restos podem ser os mantenedores do ofício de psicanalista e do prosseguimento de uma formação permanente. Mas a redução do ofício a um produto que pode ser vendido por um documento que outorga ao seu possuidor a ilusão de que está pronto e acabado para o mercado de trabalho.

Ao histórico das vicissitudes da necessidade de análise pessoal, e de todas as tentativas de iludi-la, associa-se uma questão mais ampla: pode ser feita análise on-line? A necessidade e a possibilidade de análise on-line surgiram há mais de década. Mas foi imensamente aumentada pelas vicissitudes da pandemia. A prática da análise on-line mostrou que sim, é possível. Mas várias precauções são necessárias. E formas até então desconhecidas de resistência podem surgir.

Esse contexto conduz à pesquisa dos efeitos dos meios digitais sobre o inconsciente: logo também sobre o pertencimento institucional, sobre um ensino que não é mero treinamento, sobre uma supervisão que não simples verificação se o trabalho está formalmente correto, mas seja uma análise quarta.

 

4 Um pouco sobre as redes sociais e teleconferências de vídeo

4.1 WhatsApp: recados

O WhatsApp é um aplicativo de mensagens instantâneas e de chamadas de voz para smartphones. Além de mensagens de texto, os usuários podem enviar imagens, vídeos e documentos em PDF, além de fazer ligações grátis por meio de uma conexão com a internet (WIKIPEDIA, 2021). O uso mais comum do WhatsApp é como um sistema de recados escritos ou por gravação de voz. Os grupos podem ir de 2 até 256 membros. Os usuários também podem usá-lo como telefone e fazer uma reunião de viva voz com mais de duas pessoas. Quando escritas ou gravadas, as postagens aparecem logo após o usuário terminar sua digitação. Sendo esse o uso mais comum desta rede social, configura a postagem de recados ao longo do tempo. Nesse caso, constitui um sistema diacrônico e não sincrônico.

O WhatsApp é um aplicativo muito útil para enviar textos, organizar grupos com tarefas e informações específicas. Grupos de turmas de candidatos, supervisão, membros efetivos, direção e funcionários, coordenadores e supervisores de clínicas sociais das federadas do CBP, entre outros exemplos. Além da transmissão de informações diretas, como propósitos e tarefas específicas, serve apenas um auxiliar para reuniões e eventos, presenciais ou on-line.

Um sistema de recados difere de uma assembleia, onde todos estão presentes ao mesmo tempo. A simultaneidade fundamenta um dos pilares da democracia: todos ao mesmo tempo e em igualdade de condições. Pode ser um período mais amplo. Por exemplo, eleições em que o voto pode ser exercido das oito às dezoito horas. Se compararmos com uma eleição, veremos que no WhatsApp equivaleria a um momento – sincrônico – de 10 horas, no qual cada cidadão possui o direito de apenas um momento de postagem, ocasião em que pode usado até para votar em candidatos para mais de um cargo. De qualquer modo, a escolha de vários nomes para cargos diversos configuraria um único momento de postagem, que não pode mais ser modificado até que termine o tempo igualmente estipulado para todos.

Como sistema de recados, o WhatsApp que privilegia quem tem mais tempo hábil para postar. Por exemplo, pessoas que têm menos limitações de tempo impostas por ocupações e profissões, pessoas com mais ociosidade desfrutam de privilégio no WhatsApp. E, ao contrário de uma assembleia, seja presencial, seja por uma plataforma que permita todos interagirem simultaneamente, não há um verdadeiro diálogo. E como quase sempre não há um tempo determinado para postar, frequentemente apaga a diferença entre tempo de trabalho e de lazer, entre espaço público e privado. Um acordo pode estipular que uma assembleia dure duas horas, e uma eleição, dez horas. O consenso é que há prioridade ou exclusividade desses períodos, necessária para a realização de uma tarefa comum.

Assembleias e eleições dependem de quem consensualmente as organize, lidere e estabeleça normas. Necessárias para que todos possuam o mesmo direito de voz ou de voto. No WhatsApp, mesmo os recados mais longos, geralmente são muito menores que uma lauda datilografada. Além de privilegiar quem tem mais tempo disponível, a desordem das postagens, mesmo escritas, também faz com que ganhe o que berra mais alto. Também não se pode deixar de lado que ninguém resiste à tentação de postar anúncios pessoais, o que produz na rede um monte de ruídos e perda de objetividade.

O WhatsApp também fomenta outras condutas pouco democráticas. Por exemplo, quando ocorre uma assembleia, presencial ou on-line, em que um documento é produzido e votado. E já finda a reunião, um grupo usa a rede social para votar por alterações do texto. Uma minoria subverte uma decisão democrática, fato que pode ocorrer sem intenção consciente de má fé, mas no fundo movido pelo narcisismo humano, pelo qual, sem conscientemente se dar conta, uma pessoa ou grupo se coloca com mais direitos que outros.

Também são frequentes as desavenças no WhatsApp escrito. Tanto nos diálogos entre duas pessoas ou grupos maiores. Nas conversas entre duas pessoas, a conversa oral direta, pelo próprio aplicativo ou pelo telefone, costuma resolver a desavença. Há que pensar e teorizar sobre a possível regressão que possa ocorrer em uma conversa escrita e rápida, com abreviações e suposta concisão dos recados, muitas vezes percebidas como ordens. Trata-se de textos em tudo diferentes da riqueza textos literários. Ocorrem fenômenos regressivos. A comunicação verbal direta, com entonações da voz, timbre e afeto, transmite muito mais afeto e coloca aos participantes a recuperação de que são seres humanos.

Regressões também nos fazem pensar em outros conceitos psicanalíticos correlatos. O narcisismo provavelmente é potencializado pela ausência corporal dos demais participantes. Sem a presença física, como em uma assembleia presencial, ou ao menos a imagem da cabeça e o rosto em um evento por videoconferência on-line, o supereu já perde o referencial muito concreto do outro corporalmente percebido como limite ao meu corpo. Além do mais, pode configurar o reconhecimento do limite imposto pela presença de uma alteridade: outro eu, com sua história e sua personalidade únicas, com ideias e sentimentos diferentes, mas com direitos iguais. Pode-se também formar a hipótese de que a comunicação visualizando apenas rosto, cabeça e ombros assemelha-se ao que é visto por um bebê em suas primeiras semanas de vida. Mais uma facilitação para regressões.

A tendência antidemocrática das redes sociais é uma característica natural. São negócios e visam lucro. Os usuários são consumidores, mas também produto. E desde o século XIX, teoriza-se sobre a tendência como que instintiva da formação de monopólios. Cabe ao estado regulamentar e limitar essa propensão, bem como fundamentar bases para que em plano microeconômico haja criação de leis para a defesa dos usuários, os consumidores.

 

4.2 Facebook: propaganda

O Facebook não surgiu como a primeira rede social, mas sobrepôs-se mundialmente sobre todas as outras. Comprando várias, mas principalmente o WhatsApp e o Instagram, tornou-se um monopólio mundial, em que as várias redes trocam entre si informações dos usuários. Incontáveis livros e artigos nos últimos anos tem sido publicados sobre os usos políticos, danos psicológicos e riscos de um monopólio mundial. Abordemos apenas alguns tópicos.

As postagens mais comuns são de fotografias, desenhos, anúncios ou outros tipos de imagens, acompanhadas por textos geralmente de uma ou de poucas frases. O Facebook nomeia e instigou durante longo tempo que os usuários brasileiros, acompanhando as imagens, narrassem suas "histórias". Primeiro há a ironia do Facebook utilizar o termo "histórias" para um conteúdo muito pouco discursivo. Ainda mais que em inglês existem duas palavras – history (descrição de fatos reais recentes ou antigos) e story(contos, fábulas, enredos, isto é, predominantemente ficção). Em português há a palavra estória, com o sentido do inglês story . Na prática o termo é muito pouco usado. Mas no Facebbok as frases que acompanham usualmente apenas nomeiam quem ou o que aparece, muitas vezes acrescidas do evento ou local onde ocorreu. Raramente discorrem de modo mais amplo sobre o conteúdo das imagens.

Ainda é menos comum que sejam encadeadas postagens, concatenando vários fatos ao longo do tempo. Em alguns artigos tratamos da temporalidade – a experiência humana do tempo – e sua finitude, como característica essencial a todas as linguagens, tema bastante discorrido em artigo na Estudos de Psicanálise n. 55 (LOPES, 2021). O processo primário, que rege o inconsciente, segundo Freud, é atemporal Só a partir do pré-consciente e como característica básica para que um conteúdo inconsciente chegue até ao consciente, surge a temporalidade.

Assim como no WhatsApp, no Facebook as postagens não são sincrônicas, mas diacrônicas e sempre associadas a imagens. Em realidade o Facebook configura e popularizou sem custo econômico para a maioria dos usuários, um sistema de anúncios visuais. E a base da qualquer propaganda não é o diálogo, mas a evocação instantânea de um desejo. O verbal é um mote (slogan) impositivo. Com muita semelhança aos imperativos do supereu.

No WhatsApp todas as postagens são recebidas pelos membros do grupo. No Facebook é mais complexo, para não dizer pouco ou desconhecida a forma de distribuição. Os participantes escolhem amigos e grupos. Mas as postagens não se restringem a estes. A maior difusão das postagens, em contrapartida a pagamentos, seria apenas um dos serviços pagos. Mas existem os algoritmos, que atingem todos, pagantes e não pagantes, e cujo modo como funcionam e distribuem as postagens é até o momento desconhecido.

Contudo, é sabido que os participantes do Facebook cada vez recebem mais postagens semelhantes a seus pontos de vista. Até que quase todas se assemelham aos gostos e crenças do usuário. A diversidade em todas suas formas – ideias, gostos, opiniões, crenças, condutas sexuais – é sempre uma ferida narcísica. Mas sem essas feridas, que obrigam a psyché a trabalhar, fica-se cada vez mais no igual si mesmo. Do mesmo modo como no WhatsApp, há um incremento do narcisismo. Algoritmos formam bolhas de pensamento igual – a base de um sistema perverso.

Uma repetição do mesmo, um círculo em vez da espiral, um não movimento que se assemelha cada vez mais com a descrição de Freud sobre a pulsão de morte. E crítica feita a Freud de que, quando criou sua segunda teoria da pulsão, não atualizou a postulação do narcisismo em um de vida e outro de morte. Algoritmos incrementariam o narcisismo de morte.

 

4.3 Zoom: substituto possível para encontros e reuniões

Além de função diversa do WhatsApp e do Facebook, até o início da pandemia o Zoom era desconhecido ao grande público. O Zoom Meetings é um programa de teleconferências. Relativamente simples, gratuito até o limite de cem pessoas e de quarenta minutos por reunião, ou pago – a um custo razoavelmente baixo – para número e duração maiores. Tido como programa de reuniões mais seguro contra invasões. Antes pouco conhecido, mas amplamente usado a partir do início da pandemia. Escolhido pelo CBP-RJ para aulas, cursos, supervisões, jornadas e assembleias. O Zoom também foi escolhido para a realização do XXIV Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise. O congresso foi concebido nos mesmos moldes dos congressos presenciais: três dias com até três ambientes simultâneos, manhã, tarde e noite. O Zoom também foi a plataforma geralmente usada pelos membros e candidatos do CBP-RJ para atendimento da maioria dos clientes on-line que eram presenciais, para as triagens e atendimento dos novos pacientes das clínicas sociais do CBP-RJ.

Já foram mencionados os problemas do uso maciço de teleconferências: a falta de separação nítida entre a casa, o local de ensino e supervisão, a presença de terceiros no ambiente, a banalização e perda de importância nas atividades ligadas à formação psicanalítica. Problemas que não são específicos do Zoom, mas relatados por usuários de outros programas de teleconferências.

Contudo, qual o efeito da imagem de grupos presenciais nos vários tipos de atividades – aulas, supervisões, assembleias – onde todos veem todos simultaneamente e de corpo inteiro, quando transposta para um conjunto de quadros retangulares em uma tela, onde só são vistas imagens de cabeça e ombros. Como mencionado acima, pode ocorrer fragmentação da imagem grupal em imagens individuais, e o corpo reduzido ao rosto, à cabeça e aos ombros, provocar a regressão a objetos parciais. E como ficam os afetos conscientes e, principalmente, inconscientes nas imagens fragmentadas?

Quanto às análises pessoais, o impacto da substituição de sessões presenciais por sessões por meio exclusivo de teleconferências, tem sido muito debatido entre supervisores e candidatos do CBP-RJ. Em análises já iniciadas presencialmente, a transferência sofreu pouco ou nenhum abalo. Na maioria dos novos pacientes, por membros efetivos ou candidatos, a transferência também se estabeleceu plena ou satisfatoriamente. Mas as possibilidades dos fenômenos regressivos mencionados permanece. E o cuidado com a impossibilidade plena de uma das regras básicas de Freud: o não olhar face a face entre paciente e terapeuta. Um olhar que conscientemente ou não controla as reações do paciente e do terapeuta.

Porém, dúvidas surgiram sobre as consequências mais profundas sobre a transferência e a contratransferência. A ausência do corpo todo do analista e do paciente, reduzidos a cabeça e ombros e a percepção incompleta dos locais onde ambos estão, afetariam de algum modo fenômenos mais arcaicos e, até hoje, pouco conhecidos. Além da já mencionada possibilidade de regressão por um campo visual semelhante ao de um bebê, também a facilitação ou a inibição de outros caminhos diretos de inconsciente a inconsciente, o surgimento de manifestações psicossomáticas durante o encontro e a sensação da falta de acolhimento (holding). Temas que foram debatidos nas supervisões coletivas do CAP e permanecem em aberto.

 

5 Linguagem e realidade: conotação do eu e do mundo

A denotação é a forma de uso e manifestação da linguagem em seu sentido literal, concreto. As leituras instrumentais e informativas utilizam-se exclusivamente denotação, expressa sempre em prosa. E de uma prosa denotativa de pura linearidade, de sentido único e único sentido. Por exemplo, um manual de como funciona um aparelho. Se a partir do manual o aparelho não funcionar, ou o manual está errado, ou o aparelho veio com defeito.

A conotação é a forma de uso e a manifestação da linguagem em seu sentido subjetivo, figurado. A linguagem poética se utiliza de uma linguagem exclusiva ou predominantemente conotativa, intensamente polissêmica. A leitura literária em prosa oscila entre a linguagem denotativa e a conotativa, entre trechos em prosa, outros em poesia.

Desde Sobre a concepção das afasias (1891), Freud pesquisou sobre essas diversas formas de linguagem e representação. Pesquisa que abandonou o viés organicista e tornou-se puramente psicanalítica em A interpretação dos sonhos (1900), tendo seu ápice quinze anos mais tarde, nos Artigos sobre a metapsicologia (1915). Foi quando os termos "representação de coisa" e "representação de palavra" se superpuseram, ae tornaram mais ricos e sem uma diferença tão rígida quanto denotação e conotação. Além de que a escolha entre uma e outra forma de linguagem não depende apenas de uma escolha consciente do usuário.

Na Interpretação dos sonhos são descritos os dois modos de funcionamento da psique: o inconsciente pelo processo primário e o pré-consciente/consciente pelo processo secundário. Freud tece uma teoria da linguagem, na qual há uma correspondência entre a imagem onírica e uma frase. Mas se trata de uma frase à semelhança do verso de um poema. O que nos chega do inconsciente do sonho é polissêmico, conotativo. Mas se trata de algo que já chegou ao pré-consciente. Podemos inferir como se dá o processo primário, mas só indiretamente. No consciente/pré-consciente e no processo secundário há um desdobramento em vários tipos de linguagem, desde linguagens abstratas, linguagem literária alternando prosa e verso, até linguagem puramente denotativa, descritiva.

Utilizando outro referencial, podemos dizer que a colagem entre cada significante e cada significado é arbitrária. Aprendidos desde o início do bebê desde que nasce, não se encaixam plenamente nas sensações e nas coisas que lhe são apresentadas pelo mundo. Além de universal, o descompasso entre significante e significado é variável de idioma para idioma a respeito de cada palavra. Por todos os lados, a sobredeterminação implica fendas entre significante e significado, mundo e eu, corpo e mente. Nessas brechas, há o espaço para toda sorte de associações, conscientes ou não. Implicando tanto na criação de algo além do que é apresentado, como numa suspeita de que detrás há algo está reunindo essa apresentação.

Em outro texto, sobre a importância da leitura literária, abarcando quantidades variáveis de prosa e poesia, para o ampliar o ensino, partimos dos resultados da Interpretação dos sonhos aplicada à pedagogia.

No pensamento onírico, entre várias outras características, predomina uma linguagem condensada, com poucos conectivos, quase exclusivamente composta de substantivos, prenha de duplos sentidos, de usos novos e inusitados das palavras. Tanto no sonho quanto na linguagem poética, só o essencial é esboçado. A recriação da imagem pelo leitor deixa a cargo da sua própria imaginação inventar e preencher todas as lacunas. Preenchimento e invenção que diretamente o conduzem a infinitas associações, conscientes ou inconscientes. Assim, mais que no devaneio, podemos pensar no termo imaginação=imagem/ação. Usando os princípios freudianos da interpretação dos sonhos, conceituamos (LOPES, 1996) como sendo a essência da leitura literária um tipo de imagem, aquela que se constitui como sendo o "espaço" intrassubjetivo recriado através da linguagem poética (LOPES, 2007, p. 20).

Em paralelo com a linguagem, em que predominam a conotação e a polissemia, quando se metamorfoseia em imagem, predomina a conotação e possui uma face voltada ao registro do simbólico. A poesia alcança a dimensão de determinar o sujeito em sua relação com o desejo, tanto de modo intrassubjetivo, quanto de modo intersubjetivo. Revela-se que a imagem poética é criada na junção entre o Imaginário e o Simbólico, a dupla face entre imagem e linguagem, entre sonho e palavra, entre o sem-tempo e o fluir do tempo. Além do que, essa confluência conduz a um terceiro termo, o imaginário e o simbólico, borromeanamente, confluem no objeto a. O que Rivera nomeou de imagem furo, em oposição àquela entre imaginário e real, a imagem muro (LOPES, 2007, p. 23). Esta última uma expressão que muito bem define o que frequentemente se sente nas redes sociais.

No artigo O inconsciente, Freud ([1915] 2010) necessitou explicar as características do discurso de pacientes esquizofrênicos. O que a psiquiatria descreve como o pensamento concreto desses pacientes em contraste com o pensamento abstrato do são e do neurótico. Concretude que também é usada por aqueles supostamente normais, embora em grau muito menor, muitas vezes involuntário, como nos atos falhos e outros sintomas. Desse modo, Freud caracterizou a diferença entre representação de palavra [Wortvorstellung] e representação de coisa [Sachvorstellung].

Acreditamos saber agora como uma representação consciente se distingue de uma inconsciente. [...] a representação consciente abrange a representação da coisa mais a da palavra correspondente, e a inconsciente é apenas a representação da coisa. O sistema Ics contém os investimentos de coisas dos objetos, os primeiros investimentos objetais propriamente ditos; o sistema Pcs surge quando essa representação da coisa é sobreinvestida mediante a ligação com as representações verbais que lhe correspondem. [...] Compreendemos que a ligação com representações verbais ainda não coincide com o tornar-se consciente, e apenas fornece a possibilidade para isso, ou seja, que não caracteriza nenhum outro sistema senão o Pcs (FREUD, [1915] 1978, p. 201-202; [1915] 2010, p. 146-148).

Portanto, além de ser a representação de palavra que permite a linguagem em seu sentido figurado, abstrato e polissêmico, também é necessária, em sua articulação entre os sistemas inconsciente e pré-consciente/consciente da primeira tópica e isso, eu e supereu da segunda à criação da subjetividade.

Se utilizarmos para a conotação uma leitura psicanalítica em termos de significante e significado, ela se torna um conjunto de superassociações, arbitrariamente amalgamado, aprendido em cada sociedade e cada época. Conjunto que por sua vez é arbitrariamente colado a um significado ao qual não se encaixa com exatidão Já significante e significado não se encaixam com exatidão ao objeto representado. E quanto mais polissêmico e abstrato, maior a fenda. Desse modo, tanto há fendas internas no significante e no significado, como na ligação entre significante e significado, e no encaixe com o que representariam da realidade. Em todas essas fendas emergem o tempo todo associações conscientes ou inconscientes com partes ou todos de outros significantes e significados. Complicação útil porque, tanto nosso eu é composto de múltiplas instâncias quanto a realidade, ela mesma também sempre é polissêmica.

 

Imagem e ilusão: denotação nas redes sociais

Se o WhatsApp funciona como um sistema de recados, o Facebook é um de propaganda. Em ambos a linguagem é predominantemente denotativa. Em ambas as redes predominam imagens. E parece se inclinarem à representação de coisa, muito mais que à de palavra.

No WhatsApp recados utilizam palavras, mas não as encadeiam em uma história. Pelo contrário, quando passa de alguns minutos, os participantes frequentemente não se lembram da maioria das postagens mais antigas, E quando no grupo participam mais de três pessoas, torna-se difícil lembrar quem postou o quê. Muitas vezes os recados são impositivos, se assemelham ou são mesmo ordens. Frequentemente o aplicativo é usado apenas para dar ordens, com a vantagem para o emissor, que elas atingem seu objetivo a qualquer horário e dia da semana. Desse modo, transgride a separação entre horários dedicados ao trabalho e aqueles dedicados ao lazer e à família. O que tanto pode servir de abuso por empregadores, quanto pacientes e mesmo familiares.

Anúncios como os do Facebook são quase pura instantaneidade. Predomina o impacto das imagens visuais. Tem por meta criar um imperativo de consumo, que não precisa ser um produto comprável em supermercado. Pode ser uma ideia política ou a imagem do locatário da conta. A redes têm por meta o convencimento e não o diálogo. Meta previamente reforçada pela seleção de usuários, tanto pelos algoritmos, quanto por pagamento. Os participantes não estão em igualdade de condições.

As duas redes sociais são meios em que predomina a representação de coisa, tendendo ao pensamento concreto esquizofrênico, facilitando o incremento do narcisismo universal em todos nós. Narcisismo ainda mais ampliado pela difusão algorítmica, que cria bolhas de pensamento convergente. O oposto da representação de palavra, ao fundamento do diálogo e a aparição da necessária ferida narcísica e que, pelo entendimento e concessões de ambas as partes, conduz ao consenso.

Na tentativa de melhor compreender as vicissitudes, podemos usar mais alguns autores e referenciais psicanalíticos. Freud aprofundou sua descrição sobre a representação de coisa a partir de sintomas de pacientes esquizofrênicos. Além do pensamento concreto e da percepção da realidade como autorreferente (um dos efeitos do narcisismo), a psiquiatria descreveu vários outros sintomas de linguagem: desagregação da forma, surgimento de palavras ou expressões incompreensíveis, conteúdo com delírios persecutórios, com muita frequência. Todos esses sintomas linguageiros e de outras esferas psíquicas, compondo um modo de organização que Melanie Klein denominou posição esquizoparanoide. Correlato em adolescentes e adultos ao modo mais antigo de como pensam e sentem bebês.

A posição esquizoparanoide caracteriza-se por uma cisão rígida entre extremos: o muito bom e o muito mau. A construção muito precoce de um mundo de extremos. E um dos extremos é expelido e visto como completamente alheio a si mesmo, de preferência o mau. Atitude normal em bebês e que no fundo rege grande parte de nossa visão de mundo adulta. Mas deve ser superposta pela posição mais madura, a depressiva. Um mundo muito mais próximo da realidade, em que não há uma cisão tão nítida e simples. Por isso necessário e possível o diálogo e a conciliação.

Tudo indica que as redes sociais criam condições para o reforço deste mundo de extremismo. Onde predomina a representação de coisa sobre a de palavra, a cisão ao invés da integração do eu e do mundo, um narcisismo de vida e de morte ainda não integrado e investido em objetos humanos que, como todos os seres humanos, são bastante imperfeitos.

Outra leitura complementar dos efeitos das redes sociais seria fomentar o imaginário sobre o simbólico. A leitura de Lacan a partir de sua experiência de psiquiatra, e indo além do referencial kleiniano. Mas a essa leitura pode ser acrescentada uma complementação pela psicanalista Maria Rita Kehl (2004), formulada antes da epidemia de redes sociais, quando afirma haver um consenso sobre as sociedades industriais contemporâneas serem sociedades muito violentas, violência que não pode ser explicada apenas pela exclusão social e que a violência do imaginário independe do conteúdo das imagens. Concordamos quando a autora escreve que sustentaria

[...] a tese de que nas sociedades regidas pela cultura de massa – a cultura de massa é uma formação predominante na nossa sociedade e, nela, a tirania da imagem é avassaladora na nossa sociedade – há sim, um tipo de violência que é própria do funcionamento do Imaginário em si. Essa violência do imaginário tem, sim, relações com os padrões de comportamento da vida real [...] (KEHL, 2004, p. 88, itálicos da autora).

 

Conclusões

Uma das conclusões obtidas pelas sociedades, que há mais de vinte anos se reúnem no Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras, é que a transmissão da psicanálise é artesanal. Grupos pequenos, bastante convivência com os colegas mais experientes, instituições das quais os próprios membros são os donos.

O on-line e as redes sociais permitiram, nas mãos de entidades mercantilistas, que se criasse a ilusão de que a massificação pode ser vendida como se fosse artesanal. Os encontros para transmissão da teoria e sobre a clínica são reduzidos até o extremo da mera assistência passiva de aulas gravadas. Ao contrário aulas ou seminários presenciais ou on-line, mas ao vivo e para uma dúzia ou menos de candidatos, são ofertadas gravações para serem acessadas a qualquer hora, que podem ser vendidas para centenas ou mais de pessoas. O que não significa que o preço será reduzido.

Nesses cursos comerciais é propagandeado que a oferta de tutores on-line, como sempre disponíveis e suficientes para tirar dúvidas dos alunos. Relatos, desde áreas tecnológicas até ciências humanas, mostram que as supostas tutorias são absolutamente insuficientes. Há a redução de espaços para discussão, que acabam também se tornando roteiros para reproduzir informações objetivas. Algo que mesmo para treinamentos de técnicas diretivas, como o conserto de geladeiras, seria insuficiente.

O que não atinge apenas a transmissão da teoria. Torna-se mais grave quanto à passagem da prática clínica através das supervisões. No on-line exclusivo, mesmo em uma instituição comprometida com o artesanal e sem fins lucrativos, ocorre alguma falha na criação de laços sociais entre os membros mais recentes e os mais antigos, entre os colegas de uma mesma turma, assim como entre os das diferentes turmas de formação e entre supervisores e supervisionandos, que plenamente permitam que os encontros, individuais ou grupais se tornem uma análise quarta. Pode-se supor a degradação da transmissão clínica reduzida à forma de disciplinas de com receitas de como agir e o que fazer. Atenção flutuante, livre associação, neutralidade, transferência, tudo o que não se pode ter esperança em transmitir na forma condicionada de receita de bolo (bolo ruim, os gostosos exigem criatividade).

Contudo, do tripé, o mais importante para a formação do analista torna-se o mais comprometido: a análise pessoal. Experiência única e individual, sem duração, número prévio de sessões. Tudo o que acima foi mencionado, as mais importantes descobertas de Freud, só pode ser redescoberto por cada candidato a analistas em sua experiência pessoal como paciente. Mas como já foi dito por Freud, todos querem ser analistas contanto que a análise os poupe, a análise pessoal é o item do tripé mais comprometido pela venda mercantilista ou religiosamente impositiva de um logro usando o significante psicanálise. Indo ao extremo em cursos nos quais faz parte do currículo, sob a forma de disciplinas expositivas: Análise Didática I, II, III e IV!

Em resumo, no mundo on-line há falta dos espaços físicos de convivência, à semelhança da falta do local de atendimento enquanto corpo do analista, da falta do local da instituição enquanto corpo do pai primevo. Comprometimento do banquete totêmico e da degustação da obra e do corpo do pai primevo (Freud) e seus sucessores. Resultando na possível falha na formação de laços sociais entre: os membros mais recentes e os mais antigos, entre os colegas das turmas de formação, entre supervisores e supervisionandos (análise quarta).

O on-line é essencial para a sobrevivência da transmissão e da terapia psicanalítica em tempos de pandemia. A descoberta de seus limites e riscos é essencial para sua boa e eficaz utilização. O on-line pode ser muito útil para cursos breves de psicanálise e suas aplicações, abertos a um público maior. No caso do CBP nacional, que reúne círculos do Rio Grande do Sul ao Pará, o Zoom é muito eficaz, por exemplo, para as reuniões mensais dos coordenadores das clínicas sociais. Mas deve-se cuidar de que, havendo condições de segurança, para a formação e eventos maiores, como jornadas e congressos, o presencial deve predominar ou mesmo ser exclusivo. O risco da suposta facilidade de ensino, sem deslocamento e desconforto das grandes cidades e distâncias, facilmente descamba na racionalização para obtenção de lucro fácil e rápido. Desde a sua descoberta há quase cento e trinta anos, sabemos que a psicanálise que se torna rápida e barata deixou de ser psicanálise para ser apenas mais uma forma de reforço do recalque.

 

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Recebido em: 10/12/2021
Aprovado em: 22/12/2021

 

 

SOBRE O AUTOR

Anchyses Jobim Lopes
Médico e bacharel em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Mestre em medicina (psiquiatria) e em filosofia pela UFRJ.
Doutor em filosofia pela UFRJ.
Psicanalista e membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Professor do curso de formação psicanalítica do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva do CBP-RJ.
Supervisor clínico do Centro de Atendimento Psicanalítico (CAP) do CBP-RJ.
Coordenador do Grupo de Trabalho Sobre Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ.
Ex-professor assistente do quadro principal do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
Ex-professor adjunto da Faculdade de Educação e da graduação em psicologia da Universidade Católica de Petrópolis (UCP).
Professor titular III dos cursos de graduação em psicologia e de especialização em teoria e clínica psicanalítica da Universidade Estácio de Sá (UNESA).
Patrono das Turmas de Formandos em Psicologia da PUC-RJ, 1998 e 1999.
Um dos editores da revista Estudos de Psicanálise, publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP).
Presidente do CBP-RJ em vários mandatos.
Presidente do CBP 2004-2006 e 2017-2021.
Delegado do CBP para a International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS).
Um dos editores regionais para a América do Sul da revista International Forum of Psychoanalysis.

E-mail: anchyses@terra.com.br

 

 

1 Trabalho apresentado no XXIV Congresso de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Para além da pandemia: ecos na psicanálise, realizado pelo Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro, de 4 a 6 nov. 2021, por meio da plataforma Zoom.

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