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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437On-line version ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.56 Belo Horizonte July/Dec. 2021

 

MESAS E TRABALHOS – XXVI CONGRESSO DO CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE - PARA ALÉM DA PANDEMIA: ECOS NA PSICANÁLISE

 

A máscara como indumentária e metáfora de um tempo: novos possíveis e impossíveis1

 

The mask as clothing and metaphor of a time: new possible and impossible

 

Luís Antônio Franckowiak PokorskiI

I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

 

 


RESUMO

O presente ensaio se propõe a pensar sobre o analista, a clínica e a instituição psicanalítica, configurados a partir da realidade imposta pelo contexto da pandemia SARS-CoV-2, em que a sociedade buscou e implementou estratégias e alternativas de solução frente ao imenso desafio que se estabeleceu. O ser humano se afirma e se subjetiva diante de obstáculos que são parte da existência. Em um contexto em que a máscara, além de profunda metáfora, tornou-se indumentária necessária e vital, impõe-se o pensar sobre o ser analista, o fazer clínico e o sentido da instituição psicanalítica. Em um cenário de pandemia, não se pode deixar cair a máscara, ainda que, analiticamente, seja saudável que ela possa cair. Freud e autores contemporâneos dão-nos suporte teórico.

Palavras-chave: Máscaras, Psicanálise, Virtualidade, Clínica, Instituição.


ABSTRACT

The present essay proposes a reflection about the analyst, the clinic, and the psychoanalytic institution, configured from the reality imposed by the context of the SARS-CoV-2 pandemic, in which society sought and implemented strategies and alternative solutions in the face of the immense challenge that emerged. The human being asserts and subjectifies themselves in the face of obstacles that are part of existence. In addition to being a profound metaphor, the mask has become a vital piece of clothing, which leads to the imperative of thinking about being an analyst, the clinical practice, and the meaning of the psychoanalytic institution. In a pandemic scenario, you can't drop the mask, even though, analytically, the possibility of it falling off is healthy. Freud and contemporary authors give us theoretical support.

Keywords: Masks, Psychoanalysis, Virtuality, Clinic, Institution.


 

Na Conferência 13: Traços arcaicos e infantilismo dos sonhos, ao abordar os traços arcaicos dos sonhos, Freud ([1916-1917] 2014) faz menção à pré-história individual de nossa infância, que não está desvinculada de nossa pré-história filogenética. O tecido inconsciente tem uma tecitura social. Essa referência me remete ainda à introdução de Psicologia das massas e análise do eu (1921), onde o pai da psicanálise aponta a pouca agudeza da oposição entre a psicologia individual e a psicologia social ou das massas, destacando:

Na vida psíquica do ser individual, o Outro é, via de regra, considerado como modelo, objeto, auxiliador e adversário (FREUD, [1921] 2011, p. 14).

Ou seja, nossas relações como sujeitos se colocam no horizonte do fenômeno social. Eis que, diante das convocações ao nosso XXIV Congresso de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) 2021, com o seu provocativo tema Para além da pandemia: ecos na psicanálise, certo movimento pulsional foi se instaurando em meu interior. Um movimento de ressonâncias se afirmou com mais intensidade, e o meu ser abriu-se mais atento às vivências e experiências da pandemia e às suas ressonâncias no contexto da psicanálise – na pessoa do analista, na clínica e na própria instituição.

O presente ensaio delineou-se de modo mais concreto em madrugada recente, com o segundo sonho, descrito adiante, quando do sono escapulindo, no anseio de não desperdiçar as imagens, os afetos, os pensamentos, inúmeras máscaras foram se metaforizando em meu psiquismo:

[...] máscaras brancas, persona, máscaras negras, máscaras rosas, máscaras xadrezes, máscaras com caveira estilizada, máscaras tantas, variadas máscaras, cai a máscara, ‘põe a máscara, por favor', variadas cores, máscaras de carnaval, baile de máscaras, máscaras do teatro grego, imagens que se mesclavam ao oceano perfumado das pitangueiras, das laranjeiras e das bergamoteiras do pomar com o seu verdume a se renovar, que se extasiavam ensimesmadas diante do alvo tapete formado pelas pétalas que se desprendiam e se aninhavam no solo, anunciadoras, em meio aos últimos frutos dourados, do adormecer da outonal estação.

Tomado dessa vivência quase alucinatória, pulei da cama em meio aos bocejos da madrugada, dando uma concretude, uma configuração, ao que ora apresento. A partir daí se desenvolveu uma tensão que o próprio existir demanda, a flertar com o gozo e com as demandas do dia a dia, em sua tenacidade, sua aspereza; tensão a encontrar fendas de possíveis espaços e vivências de negociação, tecendo certa (in)sustentável leveza do ser.

Contudo, preciso retornar a uma noite recente. Dela relato o sonho.

Estava em meio ao movimento de pessoas no centro de uma cidade. Não me perguntei em que cidade eu estaria, nem qual era o meu destino. Fiquei com a minha alma cosmopolita em seu pulsar. A ambiência era de uma libido de vida. Eram ares de movimento, burburinho, contentamento, de liberdade. As pessoas transitavam com seus múltiplos destinos. Minha atenção, porém, fixara-se nos seus rostos; por incrível, eram rostos amáveis. Faces passantes que estampavam sorrisos numa pressa desapressada. Eu fiquei a exclamar a mim mesmo: "Todos estão sem máscara! Meu Deus, que maravilha!". Surpreso, percebi que eu também me livrara da indumentária que passou a fazer parte de uma realidade que se impôs, realidade esta sempre, de algum modo, anterior a nós mesmos. O cenário era simples, mas dele emanava uma vitalidade, uma vibração coletiva, silenciosa, mas transparente, com um pulsar renovador. Passava a pandemia, com suas imposições ameaçadoras e de irreparáveis perdas.

O sonho descrito, como ressalto no início deste texto, revela esse Outro que nos entretece. Sou, ali em meu andejar pela rua, o meu ser em sua individualidade e singularidade. Contudo, ao mesmo tempo, sou um tanto dessa multidão. A pandemia em que estamos imersos é uma situação que transcende a nossa individualidade e – mister ser sublinhado – o nosso narcisismo, o nosso egoísta individualismo.

Nessa carona, vamos ao segundo sonho, à vivência da madrugada primaveril.

Estava eu numa instituição. Não distinguia se era um espaço escolar ou hospitalar. Havia um ar de ambivalência. Era um ambiente muito clean, organizado. Dois aspectos chamaram minha atenção: o primeiro, um repórter fazia uma enquete com as pessoas, em que dizia "mas não é assim que funciona, não", como se ali tivesse algo de escamoteado, escondido. O segundo, detalhe importante, todos usavam a máscara, e nos largos espaços, as pessoas, ao se encontrarem, paravam um instante, com certa reverência, permitindo que o outro continuasse o seu percurso, evitando maior contato e respeitando o certo e o seguro distanciamento.

As vivências oníricas, expressão de nossa vida psíquica, são uma manifestação de nossos desejos, do libidinal, transpassado pelo arcaico individual e coletivo (FREUD, [1900] 2019). Utilizo-me dos meus dois sonhos recentes porque, em meu entender, brotam do meu inconsciente tecido e entretecido, outrossim, de algum modo, por tantos inconscientes, que formam esse coletivo, esse contexto social em seu arcaico e em sua contemporaneidade, o libidinal que nos conecta com o outro. São esses dois sonhos uma ressonância desejante do próprio pensar sobre o contexto pandêmico que se enfronhou na dinâmica globalizante. Realidade que se impôs e se impõe, abrindo espaços de expressão daquilo que temos de mais humano, bem como do que temos de mais regredido.

Notícias recentes de Portugal apontam a liberação do uso de máscaras, atingido o patamar de 80% da população vacinada. O Reino Unido também liberou o uso de máscaras em ambientes livres. Indicadores revelam que os países mais pobres ou estão sem vacinas, ou apresentam índices muito baixos de vacinação. Certas barreiras sanitárias, aos poucos, vão sendo liberadas. Muitas pessoas fazem questão de postar o momento em que recebem a sua vacina. Conforme indicação da Organização Mundial da Saúde e de infectologistas, a vacinação, aliada a outros cuidados, como o distanciamento social, a higienização e a utilização de máscara, ainda nos acompanhará por algum tempo.

Os momentos de vivência se constituem em nossa historicidade. Porém, alguns contextos e vivências mais latentes, como estes dois anos de pandemia SARS-CoV-2, provocaram uma experiência singular, um forte golpe em nosso narcisismo. Os vírus, as bactérias, uma infinidade de micro-organismos, estão presentes na cadeia da vida, anteriores a nós. Nosso planeta, em sua cosmicidade, quebrada sua homeostase, podemos afirmar, adoece. É possível que a pandemia esteja nesses desarranjos humanos, os quais, apesar de tudo, podem nos oportunizar uma constituição de saberes e a superação de certas posturas narcisistas, conforme demonstrado por inumeráveis exemplos de cuidados e de humanização, como os variados gestos solidários que testemunhamos.

A humanidade precisou se mobilizar para enfrentar o vírus. Governos, organizações de saúde e laboratórios de pesquisa estão enfrentando essa ameaça que ceifou e ainda ceifa muitas vidas, que gerou sofrimentos, perda de sonhos, orfandade, lutos a serem superados. Uma situação social que convoca a todos e que pode contribuir para o resgate de uma atitude de cuidado com o outro.

Cada um de nós foi ou está sendo afetado por esse contexto. Nossa clínica (quem diria?) também foi abalada pela dinâmica do distanciamento social imposto pelas demandas da pandemia. Alguns pacientes interromperam o tratamento; outros, com o tempo, retornaram. Novos pacientes, nesta clínica on-line, procuraram ajuda, conseguindo estabelecer maior ou menor grau transferencial. Outros não se sentiram bem em ser atendidos virtualmente. Frente a essa nova realidade, tomamos cuidados em ambientar o setting. Pacientes nos perguntam: " Quando vamos voltar ao consultório?". Outros demonstram seu desejo de, voltando ao "novo normal", poder continuar a modalidade virtual no tratamento. Alguns profissionais mesclaram seus atendimentos entre o on-line e o presencial, conforme suas condições específicas. Muitos deles destacaram as maiores dificuldades no atendimento às crianças. Na prática da clínica home office, observei mais dificuldade em lidar com as resistências dos pacientes, sem negligenciar os fatores inconscientes, uma vez que o ambiente doméstico nem sempre parece criar certa ecologia de privacidade suficientemente necessária, como na situação de alguém abrir a porta do quarto e exclamar "Ô, mãe, tô de consulta, pô!"

Freud, com a sua genialidade e o seu hercúleo trabalho teórico, construiu, em um contínuo processo de aproximação com o vivenciado em relação a seus pacientes e ao contexto de sua época, a clínica psicanalítica, pensada e repensada por seus seguidores na contemporaneidade.

Somos, por uma imposição da realidade, lançados, como estamos fazendo e vivenciando no contexto aqui enfocado, provocados e convocados a fazer e a pensar essa "nova clínica". Não o fazemos sozinhos, como Freud não o fez. Assim, de alguma forma, podemos estar

[...] filiados a alguma instituição psicanalítica e a muitas outras instituições integrantes de nossa vida. Nosso ser analista, forjado e atravessado pelo desejo, sustentado pelas vivências da análise pessoal, seminários teóricos, supervisão e outras instâncias, está relacionado, de alguma forma, à instituição. Esta se constitui de pessoas que constroem sua identidade e um espaço peculiar de pertencimento (POKORSKI, 2019, p. 105).

Johnson (1997) caracteriza uma instituição como um conjunto de ideias de caráter duradouro, atingindo metas reconhecidamente importantes para a sociedade. O autor indica alguns tipos de instituições, como a familiar, a religiosa, a econômica, a curativa e a política, cumprindo funções sociais diferentes. Destaca ainda que, embora a maioria dos aspectos da vida social sejam experimentados como exteriores a si pelos seus participantes, a instituição é moldada e mudada com a sua participação. A instituição psicanalítica, desde a sua especificidade local até a sua afiliação às organizações maiores, é a instância em que se efetiva a formação analítica em seu necessário e fundamental tripé: análise pessoal, formação teórica e supervisão. A psicanálise, como outras áreas humanas, necessitou buscar alternativas para a viabilização de sua existência. As tecnologias ligadas às redes sociais facilitaram nossos contatos nesses tempos de distanciamento social. Nossas instituições psicanalíticas conseguiram manter e administrar suas diferentes atividades.

Alguém, dias atrás, ao acessar um momento de estudo on-line do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS), manifestava seu contentamento em poder ter esses momentos, ter esses espaços e um sentimento de pertença, referindo também que, apesar dos cansaços, todos crescemos, estudamos mais com nossas jornadas, lives, seminários, congressos e outros espaços de nossa contínua formação. Uma expressão singela acolhida pelo sentir de todos os ali presentes. Conseguimos sobreviver como indivíduos, como psicanalistas, reconfigurando a clínica, e como instituição, em um processo que, apesar da dureza da realidade imposta pela pandemia, gestou uma reinvenção, dentro de uma historicidade, como referido por Garay (1998), produzindo sua cultura, sua ordem simbólica – e aqui destaco os 65 anos de história viva do CBP e do CPRS celebrados no ano 2021.

Para Mezan (2006), a psicanálise necessitou se institucionalizar para que chegasse até nós. O autor destaca a democracia como um elemento importante da instituição psicanalítica, necessário diante de efeitos transferenciais entre os analistas que impedem o estabelecimento de um essencial funcionamento democrático, capaz de levar a uma construção consensual por parte da maioria.

Em um [Num] contexto em que a máscara, além de profunda metáfora, tornou-se indumentária necessária e vital, impõe-se o pensar sobre o ser analista, o fazer clínico e o sentido da instituição psicanalítica. Em contexto de pandemia, não se pode deixar cair a máscara, ainda que, analiticamente, seja saudável a máscara poder cair.

Fecho o texto com um poema de minha autoria:

 

Heróis de máscara

Máscaras
necessárias máscaras.

Me habitam as máscaras
dos meus heróis de infância
com as suas fantasias possíveis.

Fui Homem de Ferro.
Fui Fantasma.
Fui Zorro.
Fui Batman.
Homem-aranha fui.

Os meus heróis em sua humanidade
guardavam o seu rosto e o segredo de seus poderes.
Meus heróis lutavam com vilões
que escamoteavam atrás da máscara
a fragilidade das suas desventuras e malvadezas.

Nestes tempos de trágicas dores e desolamentos
a máscara se faz vida
se faz cuidados
se faz proteção.

As máscaras são anjos alados
ânsia de novos respirares
na dureza da realidade.

Máscaras
necessárias máscaras.

 

Referências

FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900). Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2019. (Obras completas, 4).         [ Links ]

FREUD, S. Conferência 13: Traços arcaicos e infantilismo dos sonhos. In: ______. Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917). Tradução: Sergio Tellaroli; revisão da tradução: Paulo César de Souza. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2014. p. 268-285. Obras completas. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2014. (Obras completas, 13).         [ Links ]

FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011. (Obras completas, 15).         [ Links ]

GARAY, L. A questão institucional da educação e as escolas: conceitos e reflexões. In: BUTELMAN, I. (org.). Pensando as instituições: teorias e práticas em educação. Porto Alegre, RS: Artmed, 1998. p. 109-136.         [ Links ]

JOHNSON, A. G. Dicionário de sociologia: guia prático da linguagem sociológica. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1997.         [ Links ]

MEZAN, R. Freud, o pensador da cultura. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2006.         [ Links ]

POKORSKI, L. A. F. A psicanálise e a dimensão política. Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, MG, n. 52, p. 103-110, dez. 2019. Publicação semestral do Círculo Brasileiro de Psicanálise.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 10/11/2021
Aprovado em: 28/11/2021

 

 

SOBRE O AUTOR

Luís Antônio Franckowiak Pokorski
Psicanalista pelo Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).
Graduado em filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Especialista em administração educacional pela Faculdade Porto-Alegrense (FAPA), sociologia pela PUC-RS e pedagogia inaciana, pela PUC-RJ.
Doutor e pós-doutorando em psicologia social pela Universidad Argentina John F. Kennedy (UFK).
Autor de artigos sobre Psicanálise e dos livros de poesias E-ternidades, Empoemar-se e Os porquês da poesia (coautoria).

E-mail: pokorski17@yahoo.com

 

 

1 Trabalho apresentado no XXIV Congresso de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Para além da pandemia: ecos na psicanálise, realizado pelo Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro, de 4 a 6 nov. 2021, por meio da plataforma Zoom.

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