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Estudos de Psicanálise

versión impresa ISSN 0100-3437versión On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.56 Belo Horizonte jul./dic. 2021

 

MESAS E TRABALHOS – XXVI CONGRESSO DO CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE - PARA ALÉM DA PANDEMIA: ECOS NA PSICANÁLISE

 

Ecos da pandemia: o que se faz trauma e o que se faz com ele?1

 

Echoes of the pandemic: what becomes traumatic and how is that dealt with?

 

 

Maria Mazzarello Cotta RibeiroI, II

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
II Federação Internacional de Sociedades Psicanalíticas

 

 


RESUMO

Este artigo se propõe a elucidar o que faz com que um acontecimento se constitua um trauma psíquico para uma pessoa e outro acontecimento não, e o que determina sua superação. Trouxemos, da vida de Freud, momentos traumáticos e vimos nele posições psíquicas diferentes em cada experiência. Em sua teoria, assim como nos ensinamentos de Lacan, buscamos alicerces que nos conduziram a compreender o trauma como uma atualização das primeiras marcas psíquicas no acontecimento atual. O traumático da sexualidade e da linguagem, na singularidade do ser humano, nos levou a considerar o desempenho das pulsões sexual e de morte, em que o sujeito poderá sofrer a estagnação do desamparo primordial, a morte, ou um empuxo à palavra, à vida. E ao final, o espaço analítico, presencial ou virtual, sustentado pela transferência, vem propiciar ao sujeito em sofrimento a nomeação da sua dor, do seu trauma, podendo, quem sabe, superá-lo.

Palavras-chave: Marcas originais, Sistema psi, Pandemia, Trauma, Elaboração.


ABSTRACT

This article aims to elucidate what causes an event to constitute a psychic trauma for one person and not for others, and what determines its overcoming. We considered traumatic moments experienced by Freud and we witnessed different psychic positions in every experience. In his theory, as in Lacan's teachings, wehave sought for theoretical foundations that have led us to understand trauma as an update of first-time psychic marks that are re-signified in the current event. The traumaticityof sexuality and language, in the singularity of the human being, have led us to consider the performance of the sexual and death drive, in which the subject may suffer the stagnation of primordial helplessness, death, or a thrust to the word, to life. And in the end, the analytical space, be it face-to-face or virtual, supported by transference, provides the subject in suffering with recognition and a name for his pain, his trauma, and who knows, the possibilityto overcome it.

Keywords: Primal inscriptions, Psy system, Pandemic, Trauma, Elaboration.


 

Já terminando o segundo ano do assolamento do coronavírus no mundo, deparamo-nos com alguns efeitos advindos de algo da ordem do trauma. Isso nos fez rever a catástrofe da gripe espanhola, ocorrida numa Europa imersa nos acontecimentos da Primeira Guerra Mundial (jul.1914 a nov.1918) e que em pouco tempo, entre 1918 e 1919, dizimou mais de 50 milhões de pessoas, entre elas, uma das filhas de Freud, Sophie, aos 26 anos. Casada há sete anos, residia em Hamburgo e estava grávida do terceiro filho.

Freud, segundo seus biógrafos, procurava visitá-la e aos netos com regularidade, mesmo nas dificuldades da guerra. Em set. 1919, fez sua última visita à filha, que veio a falecer poucos meses depois, em 25 jan. 1920, deixando dois filhos pequenos. A gripe espanhola recebeu esse nome, não por ter se iniciado na Espanha e sim porque a Espanha era um dos poucos países neutros na Primeira Guerra Mundial e, tendo uma imprensa livre, começou a divulgar em grande escala notícias sobre a disseminação do que foi o vírus influenza (H1N1) que viemos a conhecer.

Como naqueles anos, hoje o mundo volta a viver um trauma. Estas são épocas devastadoras! Nelas, vemos o traumático se expressar numa sequência de performances, em que o corpo encena o afeto, " um corpo falante" (LACAN, [1972-1973] 1982, p. 178) como o corpo das histéricas da Salpêtrière.

De início temos a perplexidade – o atônito, a suspensão! Segue-se o medo – pelas perdas objetais, perdas do contato físico, das muitas atividades cotidianas, da impossibilidade de planos, inclusive quanto ao futuro! A angústia se introduz – o que se perde com o objeto? A morte se presentifica – expondo a extinção do desejo! E o luto – será possível sua elaboração numa experiência em que não há espaço para ele ser vivido, como é próprio das guerras, tempo em que os lutos se acumulam e seus efeitos se dão a posteriori ?

Assim descrevi em artigo anterior o atual momento pandêmico:

[...] o real de um número crescente de mortes solitárias em um CTI, [...], sem despedidas de familiares, sepultamentos restritos socialmente e um luto adverso, [...]. O vimos se instalar por perdas objetais significativas, perdas da rotina e da liberdade e pelas alterações na relação com o tempo e o espaço (RIBEIRO, 2020, p. 57 e 59).

O real que se impõe nos questiona: sucumbir ou acionar nossos recursos psíquicos? Foi também uma questão para Hamlet, de Shakespeare, quando disse:

Que será mais nobre para o espírito, sofrer as pedradas e as flechas da fortuna ingrata, ou tomar armas contra um mar de aborrecimentos e exterminá-los por oposição? (SHAKESPEARE, [1601] 1997, p. 153).

No exercício de acompanhar o movimento da pulsão diante do inusitado, do inominável, pedimos licença para pinçar alguns momentos dolorosos da vida de Freud, já tornados públicos, que serão relatados aqui, de forma sucinta, como é possível neste espaço. Sobre o trauma da guerra, no ano 1916, no balneário de Bad Gastein, onde passava férias, escreveu:

A gente tem de utilizar-se de todas as maneiras possíveis a fim de fugir à pavorosa tensão que se observa no mundo exterior; não é coisa que se aguente (JONES, 1979, p. 521).

Com a perda da filha Sophie, impossibilitado de viajar por não haver transporte devido à guerra, Freud escreveu uma carta (25 jan. 1920) a seu genro e fotógrafo oficial, Max Halberstadt, que transcrevo na íntegra:

Meu caro Max,
Uma jovem senhora vai levar esta carta a Berlim e pô-la no correio para Hamburgo. Tenho a sensação de nunca ter escrito uma carta mais supérflua. Você sabe o quanto a nossa dor é grande; nós sabemos das dores que deve estar sentindo; não faço nenhuma tentativa de consolá-lo, da mesma forma que você não pode fazer nada por nós.
Talvez você pense que eu não sei o que significa perder a esposa amada e a mãe dos próprios filhos, porque fui poupado disso. Você está certo, mas, por sua vez, a amarga ferida, em um momento tão avançado na vida e tão próximo da morte, de sobreviver a uma filha jovem e em flor, deve ser algo desconhecido e inconcebível para você.
Também não preciso dizer que essa desgraça não muda nada nos meus sentimentos por você, que continua sendo o nosso filho o tanto que quiser sê-lo, é algo que segue evidente da relação que tivemos até agora.
Para que escrevo então? Acredito que estou escrevendo apenas pelo fato de não estarmos juntos e de não podermos nos ver nessa época terrível de aprisionamento, de modo que não posso te dizer as coisas que fico repetindo com a mamãe e os irmãos, isto é, que foi um ato brutal e sem sentido do destino que nos privou da nossa Sophie, algo que não nos permite fazer acusações nem ruminações, mas que nos obriga a abaixar a cabeça sob o golpe, como pobre ser humano abandonado, entregue ao jogo dos poderes superiores.
Pelo menos ela estava feliz enquanto vivia com você, apesar dos momentos difíceis em que caiu o breve casamento de sete anos de vocês; e ela devia sua felicidade a você.
A mamãe entrou completamente em colapso; ela quer, assim que estiver em condições – a próxima data seria 29 – viajar a Hamburgo e te perguntar quais as suas intenções em relação aos filhos e à casa daqui em diante.
Eu preferia que Math e Robert viajassem no lugar dela, pois confio pouco nas forças da mamãe. Math é inteligente e carinhosa. Robert, apesar do seu jeito brusco e do seu egoísmo evidente, é um bom rapaz e está muito tocado neste momento. Fico feliz também em saber que Oli e, depois Ernst, puderam estar com você, sobretudo que, durante o outono, ficamos em casa aquecidos com vocês.
Dê beijos do avô aos pobres coitados meninos, erga a cabeça e receba as minhas saudações cordiais.
Papai
(SCHRÖTER, [2012] 2021, p. 508).

Segundo Roudinesco (2016, p. 275), Max sobreviveu à guerra e à perda, mas depauperado por uma neurose traumática, com cefaleias e depressão. Seus filhos tiveram os cuidados das tias maternas. Ernst (Ernstl), o mais velho, "o menino do carretel", com 6 anos, ficou sob os cuidados de Anna, e o mais novo, Heinz (Heinerle), de 13 meses, foi entregue a Mathilde.

Sobre a perda da filha, Freud, ao escrever aos amigos Ferenczi, (4 fev. 1920) e Eitingon (8 fev. 1920), mostrou-se estoico, ocultando emoções profundas, embora as revelasse ao final.

A Ferenczi:

Não se preocupe por mim. Sou o mesmo de sempre, apenas com um pouco mais de cansaço. O acontecimento fatal, embora penoso, não teve força para alterar minha atitude diante da vida. Durante anos estive preparado para suportar a perda de meus filhos (em batalha); agora ocorre a de minha filha. [...] profundamente irreligioso, não há ninguém a quem eu possa acusar, [...] não há instância alguma a que uma queixa pudesse ser dirigida. [...] Muito lá no fundo posso perceber o sentimento de uma profunda ferida narcisística, que não é passível de cura. Minha mulher e Annerl estão terrivelmente chocadas, num sentido que é mais humano.

A Eitingon :

Não sei o que mais há a dizer. É um fato tão paralisador... [...] Inapelável necessidade, muda submissão (JONES, 1979, p. 585 citado por GAY, 1989, p. 361).

Três anos depois, em 19 jun. 1923, a morte do neto Heinz, aos 4 anos e meio, a quem Freud era muito apegado e que passava uma temporada em sua casa, em companhia de Mathilde e seu marido Robert, causou profundo efeito em seu espírito e no resto de sua vida. Esse golpe foi capaz de levá-lo às lágrimas, segundo relato em suas biografias. O falecimento da criança, por tuberculose miliar, ocorreu três meses após a descoberta do câncer de palato de Freud.

Jones relata o que Freud lhe disse um tempo depois:

[...] essa morte havia feito sucumbir alguma coisa dentro dele, e para sempre. A Marie Bonaparte confessou que nunca mais tivera a capacidade de apegar-se a quem quer que fosse, desde aquela funesta ocorrência, e que meramente retinha as suas antigas vinculações (JONES, 1979, p. 652).

Em carta de condolências a Ludwig Binswanger (15 out. 1926) pela perda do filho de 8 anos, completou:

Heinele representava todos os meus filhos e os outros netos, e desde sua morte, [...] não tenho mais prazer na vida. Este é o segredo da minha indiferença – a que chamam coragem – diante dos perigos que ameaçam minha própria vida (GAY, 1989, p. 386 ).

No mesmo ano 1926, na entrevista O valor da vida, Freud, aos setenta anos, revela ao jornalista americano George Sylvester Viereck, sua aposta na pulsão de vida, pulsão sexual, até que ela seja vencida pela pulsão de morte. Ele disse:

Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos que carregamos. [...] Eu não me rebelo contra a ordem universal. [...] Não, eu não sou um pessimista, não enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores! Não sou infeliz – ao menos não mais infeliz que os outros (VIERECK, [1926] 2001, p. 118 e 128).

Inferimos que, diante dos horrores da guerra, Freud se propôs buscar maneiras possíveis de fugir à pavorosa tensão – 'defesa' diante do objeto identificado. Aos horrores da morte de entes queridos, reconheceu os estados de desalento e de abandono humano, entregue ao jogo dos poderes superiores – 'reconhece' aí o implacável do real. Ao horror da insistência dos golpes, identifica em si uma incapacidade de apegar-se a quem quer que fosse e de ter prazer na vida – na 'depressão', constata o desinvestimento libidinal nos objetos externos e sua volta para o Eu. Na 'elaboração do traumático' serve-se do simbólico, nomeando-o ferida narcísica. E para nosso desconforto, o seu veredicto: não passível de cura. Por fim, 'conciliando-se com a castração' vale-se do dom do humor, trazendo leveza e elevação a seu espírito: "Não sou infeliz – ao menos não mais infeliz que os outros".

A vida de Freud nos inspira a refletir sobre as vivências traumáticas do momento atual. E na teoria psicanalítica, buscamos trabalhar as perguntas sobre o trauma e sua resolução.

No texto do Projeto para uma psicologia científica, Freud ([1895] 1976) apresenta o ser humano em seu desamparo original, em sua total dependência para com a pessoa experiente, a assistência estrangeira (Helfer), que lhe possibilita a sobrevivência através de uma ação específica, da qual resultam as experiências de satisfação e de dor (FREUD, [1895] 1976, p. 422; QUINET, 2021, p. 157). A dor "não tem obstáculo à sua condução, é o mais imperativo dos processos psíquicos" (FREUD, [1895] 1976, p. 409), e neles sulca trilhas (as facilitações) retomadas a cada nova experiência.

Sobre isso, no Seminário sobre "A carta roubada", Lacan ([1955] 1998, p. 49) fala que o automatismo de repetição (Wiederholungszwang), operado pela pulsão de morte, conceituada em 1919 e publicada em 1920 por Freud, reafirma a concepção da memória implicada por seu "inconsciente". E acrescenta que fatos novos tanto reestruturam de forma generalizada a memória quanto reabrem a problemática da degeneração, que é um efeito que foi considerado por muitos como um simples fato. Neste ponto, Lacan retoma o pensamento freudiano de que nossa existência se baseia na reminiscência ou na repetição (LACAN, [1955] 1998, p. 50).

Ainda no Projeto, Freud ([1895] 1976, p. 401) diz que "a memória está representada pelas diferenças (no grau) de facilitação entre os neurônios psi". O sistema psi, predecessor do inconsciente (LACAN, [1955] 1998, p. 50). "A memória é [...] uma das forças determinantes e orientadoras em relação à via que adotam as excitações" (FREUD, [1895] 1976, p. 401), o que faz com que uma nova excitação, um novo quantum de energia prefira uma determinada via e não outra. Essa diferença do Affekt, do ser afetado, justificaria um fato ser traumático e outros não? A história humana, iniciada antes do nascimento, desde o desejo dos pais e anterior a eles, se desenvolve num revezamento entre dependência e solidão, em um circuito pulsional que se inicia no corpo e se inscreve no aparelho psíquico. No início da teoria psicanalítica, o factual da sexualidade era o traumático, teoria que foi modificada por Freud após a revelação das fantasias sexuais por suas pacientes. Como nas palavras de Marco Antonio Coutinho Jorge:

Freud desembocou na noção de "infantilismo da sexualidade", isto é, de que, a sexualidade é sempre traumática enquanto tal, e isto para todo e qualquer sujeito. Lacan veio a nomear essa passagem (em Freud), como sendo a concepção do trauma como contingência, isto é, não se trata de que tenha havido trauma sexual na infância do sujeito, mas sim de que a estrutura da sexualidade é, ela própria, sejam quais forem os acontecimentos históricos, essencialmente traumática (JORGE, 2000, p. 21, itálico do autor).

Lacan trouxe ainda o traumático em sua relação com a linguagem, ambos apontando o encontro do sujeito com o enigma do desejo do Outro. Também não passou despercebida a Freud a questão do a posteriori nem a função da fantasia,

[...] como a articulação entre inconsciente e pulsão, sendo, essencialmente, fantasia de completude como contrapartida à perda da suposta completude (JORGE. 2000, p. 21).

Diante disso, vemos como respondemos diferentemente ao real. Um acontecimento doloroso, inesperado pode causar uma ruptura de ligações, a efração, à semelhança do quantum de afeto que marca diferentemente o sistema psi , desencadeando no aparelho psíquico 'desavisado' o retorno ao estado de desamparo original, anterior ao recurso da simbolização.

Aqui cabe uma expressão usada por Lacan ([1953] 1998, p. 319) em Função e campo da fala e da linguagem, "o passado revertido na repetição" , isto é, seu retorno ao ponto de origem, ao ponto primevo, a saber, o corpo sem palavra diante do invasor; a pulsão de morte se superpõe à pulsão sexual, atualizando a experiência primitiva. Sua resolução tende a ocorrer pela intervenção do simbólico.

Os sonhos traumáticos revelam a insistência da busca de ligação, em que a imagem, como significante, seria o primeiro movimento numa tentativa de simbolização. No trauma, a linguagem, como expressão simbólica do desejo, não socorre. O sujeito emudeceu. É comum escutarmos: "Não tenho palavras para explicar isso que me aconteceu!"

Escutar em análise exige que o psicanalista acompanhe

[...] a subjetividade de sua época! Pois, como poderia fazer de seu ser o eixo de tantas vidas quem nada soubesse da dialética que o compromete com essas vidas num movimento simbólico (LACAN, [1953] 1998, p. 322).

Essa frase encontrou guarida entre nós e a repetimos sempre que nos deparamos com as intempéries do mundo. Ao enunciá-la, Lacan deu uma sacudida no analista, retirando-o do conforto da teoria e colocando-o tão humano e desamparado quanto seu analisante. O acontecimento penoso atinge os dois lados, mas as respostas serão diferentes, desde que ali esteja um analista com seus instrumentos afiados pela sua análise pessoal: a escuta, a interpretação e o ato, sustentados pelo desejo do analista de que se cumpra uma análise!

Cumprir uma análise é o caminhar em transferência pelo traumático, constituído por aquilo que inundou e estancou o aparelho psíquico. O recurso à fantasia não se sustentando, culmina no sintoma, que traz o sujeito à análise.

Segundo Lacan ([1967] 2003, p. 352), na sessão analítica, "o que temos de surpreender é algo cuja incidência original foi marcada pelo trauma". A psicanálise "aposta no tratamento do real pela palavra para poder bem-dizer o que faz sintoma" liberando, assim, o sujeito (QUINET, 2021, p. 80).

A epidemia, por suas consequências, causou um estado de pânico! Após os primeiros momentos de atonicidade, houve um despertar para o que nos concerne como psicanalistas: escuta e ato psicanalíticos, no encontro do sofrimento psíquico. O dispositivo da análise virtual surgiu como uma saída possível. Ele exigiu reflexões, propostas, elaborações e aposta num setting novo, desconhecido por nós, mas que garantiria sua eficácia ao balizar-se nos fundamentos éticos e clínicos da prática psicanalítica, como transferência, interpretação e ato, sustentados pela voz e o olhar, como extensões do corpo presencial.

"Não se confina o inconsciente", disse Antonio Quinet (2021, p. 70), tampouco os psicanalistas. De repente, o analista se viu dentro dos espaços da casa de seus analisantes. Isso nos lembrou os atendimentos que Breuer e Freud faziam em visita à casa dos primeiros pacientes. Aprendemos com eles a lidar com o inusitado dessa intimidade!

Somos participantes de um tempo histórico que o futuro conhecerá através dos nossos relatos! Que possamos trazer a prática psicanalítica para o momento atual, com audácia, mas com responsabilidade para com o nosso ofício. É possível que os dois formatos do exercício da psicanálise sobrevivam lado a lado sem se excluírem... Só o tempo nos dirá!

E nas palavras de Hamlet:

Se dizem que no sono sufocamos a dor do coração e os mil acidentes naturais a que está sujeita a carne, aí está um estado que desejamos fervorosamente. Morrer, dormir. Dormir, talvez sonhar. Sim, esta é a dúvida. Que sonhos se pode ter neste sono da morte, depois que escapamos à tormenta da vida, é coisa que nos faz pensar (SHAKESPEARE. [1601] 1997, p. 153).

 

Referências

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Recebido em: 16/11/2021
Aprovado em: 08/12/2021

 

 

SOBRE A AUTORA

Maria Mazzarello Cotta Ribeiro
Psicóloga.
Psicanalista.
Professora no Programa de Formação Psicanalítica do CPMG desde 1994.
Editora da Revista Reverso (CPMG) desde 2015.
Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).
Sócia do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP).
Sócia da Federação Internacional de Sociedades Psicanalíticas (IFPS).
Autora de artigos publicados em livro e revistas de psicanálise.
Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) - gestão 2002-2004.
Presidente do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG) - gestão 2005-2007.
Coordenadora da Clínica da Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG) - gestão 1999-2001.
Coordenadora da Comissão de Formação Psicanalítica do CPMG - gestões 2001-2003 e 2003-2005.

E-mail: mazzarellocotta@yahoo.com.br

 

 

1 Trabalho apresentado no XXIV Congresso de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise (4 a 6 nov. 2021) e na XII Jornadado CBP-RJ (27 e 28 ago. 2021). Ambos os eventos, denominados Para além da pandemia: ecos na psicanálise, foram realizados por meio da plataforma Zoom.

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