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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437On-line version ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.56 Belo Horizonte July/Dec. 2021

 

MESAS E TRABALHOS – XXVI CONGRESSO DO CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE - PARA ALÉM DA PANDEMIA: ECOS NA PSICANÁLISE

 

Fundamentalismos – uma esquizofrenia histórico-social a partir de uma leitura de "Psicologia das massas e a análise do ego" (1921)1

 

Fundamentalisms – a historical-social schizophrenia from a reading of "Mass Psychology and Ego Analysis" (1921)

 

 

Michell Alves Ferreira de MelloI, II

I Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro
II Fundação de Apoio à Escola Técnica

 

 


RESUMO

O trabalho visa abordar o fenômeno dos fundamentalismos contemporâneos dentro de uma leitura da Psicologia das massas e análise do eu (FREUD, 1921). A partir do processo de identificação das massas apontado por Freud no texto, pensamos que certos tipos de comportamentos identificatórios parecem criar um caminho para que um grupo, ao lutar por um ideal ou crença, negam a realidade externa na qual esse mesmo ideal ou crença é forjado. Ou ainda, parece que as identificações inconscientes ganham força no grupo de modo que tal conjunto de pessoas regride e fixa-se à fase oral, através da onipotência infantil e da voracidade, uma espécie de delírio onírico e consequente negação da castração. Sua majestade, o nós.

Palavras-chave: Fundamentalismos, Identificação, Ideal do eu, Psicologia de grupo.


ABSTRACT

This paper aims to approach the phenomenon of contemporary fundamentalisms according to Freud's book "Group Psychology and the Analysis of the Ego" (FREUD, 1921). Based on the mass identification process pointed out by Freud, we think that certain types of identificatory behaviors seem to create a path in which a group, when fighting for an ideal or belief, denies the external reality. But it is the external reality where this same ideal or belief was forged. Or yet, it seems that the unconscious identifications gain strength in the group in such a way that that group of people regresses and fixates in the oral phase, through the child omnipotence and voracity, a kind of dream delirium and consequent denial of castration. Your majesty, the us.

Keywords: Fundamentalisms, Identification, Ideal of the ego, Group psychology.


 

1. Prolegômenos

Fui informado por um colega de ofício da indicação de uma paciente para análise. Helga tem uns 80 anos, mora distante da cidade de origem, tem sérios problemas de saúde. Seu marido encontra-se na mesma situação. Todavia, essa não era a queixa verbalizada pela senhora, mas sim sua relação com o filho. Esse senhor com quase 60 anos deixou de falar com ela porque ela tomou vacina contra a covid. Da mesma forma, deixou de falar com todos os parentes. Helga me pergunta: você acha que pode ser esquizofrenia? Ele corre risco de cometer suicídio? Eu sou responsável por algum trauma?

Eis um exemplo de fundamentalismo atravessando nossa clínica, e isso causa um sofrimento psíquico que talvez nos exija um olhar mais atento.

 

2. Fundamentalismo e psicologia das massas

O líder da massa continua sendo o temido pai primevo, a massa continua querendo ser dominada por um poder irrestrito; em grau extremo, ela é ávida por autoridade; tem, segundo a expressão de Le Bon, sede de submissão. O pai primevo é o ideal da massa, que, no lugar de Ideal do eu, domina o Eu (FREUD, [1921] 1996, p. 208).

O fundamentalismo, como o entendemos, seria a total servidão voluntária (BIRMAN, 2017) a uma única proposição categórica. É a busca pelo pai primevo (Urvater) que detém todo saber e, por isso, todo poder sobre as pessoas da horda primitiva.

Esse pai primevo é análogo às suas ideias, queremos dizer: ele encarna e personifica determinados ideais. Esses ideais podem advir de diversas fontes, das mais variadas possíveis: a lei natural, o mercado, o Estado, a moral, o livro sagrado, a obra de Freud ou de Lacan, etc. Pensamos aqui, num primeiro momento, numa certa análise linguística sobre performatividade de determinados atos de fala. O líder representa a fala, e sua fala, que é unívoca, ressoa em toda a massa numa espécie de onda piroclástica. O fundamentalismo não surge da pena ou da tinta, mas da interpretação da fala. Essa interpretação é considerada como uma verdade absoluta e, por exclusão, tudo que é diferente é considerado como falso.

Pensamos em fundamentalismos, no plural, dado que o identificamos com determinados fenômenos de massa, mas não todos. Poderíamos dizer que todo fundamentalismo é um fenômeno de massa, mas nem todo fenômeno de massa é um fundamentalismo.

Os fundamentalismos seriam, em nossa perspectiva através de uma leitura da Psicologia das massas e análise do Eu (FREUD, [1921] 1996), uma massa não tão organizada enquanto estrutura e sua temporalidade não é estável. Essa delimitação se faz importante para diferenciar os fundamentalismos de outros fenômenos de massa, que podem até ser tomados como instituições sociais, tal como a Igreja e o Exército.

Diz Freud ([1921] 1996, p. 207):

Cada indivíduo é uma parte constitutiva de muitas massas, é ligado de maneira multilateral por identificações e construiu seu Ideal do Eu segundo diversos modelos (itálico nosso).

Ora, ter diversos modelos (pensemos na dupla parental e no ambiente sociocultural no qual o bebê se vê imerso a priori) , no Ideal do Eu favorece ao vindouro supereu uma amplitude maior de diálogo com o Eu na administração do dinamismo pulsional, evitando assim, possivelmente, um maior número de neuroses. Claro que não podemos provar isso aqui, afinal a metapsicologia é nossa bruxa (disse uma vez Freud). Pensemos no exemplo de pessoas criadas em comunidade isoladas e fechadas (os Amish, por exemplo) e suas diferenças sociocomportamentais, se forem comparadas com pessoas em grandes centros urbanos (Nova York, por exemplo).

Outra característica do autoritarismo está na passagem direta ao ato quando se põe a dualidade autoridade versus autoritarismo: a primeira é conferida pelo grupo; o segundo é outorgado pelo líder. Nos fundamentalismos, autoridade e autoritarismo são idênticos para os membros do grupo, mas o mesmo não acontece para os que estão fora de um grupo fundamentalista. Os fundamentalismos conferem ao líder uma "autoridade autoautoritária" ou, como se chamava na antiga Rús sia, czarista: o czar é um autocrata. Ou Luís XIV quando disse "O estado sou eu". Em outros termos, o líder autoritário se identifica tanto com as ideias que defende e personifica quanto com o próprio grupo: o líder e o grupo e suas ideias são a mesma coisa – uma massa homogênea. Um ataque ou crítica ao líder é ao mesmo tempo uma agressão a todos os membros do grupo e coloca na berlinda todo o conjunto imaginário que sustenta o próprio grupo. A resposta a uma crítica ou desacordo vem na forma de uma violência. Aliás, poderíamos dizer aqui que onde falta a palavra emerge a destruição de Thanatós.

Os fundamentalismos se instauram na vida política como um regime sem exceção. Entendemos por vida política a esfera da vida pública, na qual mostramos aquilo de que não temos vergonha e que não é a esfera da intimidade nem a vida privada (ARENDT, 2010). Nessa mesma linha de pensamento, ainda segundo a autora, chamamos de societário a mistura entre o público e o privado, que, ainda conforme Arendt, teria surgido no seio da modernidade. Assim, podemos dizer que os fundamentalismos tendem à autocracia e à eliminação entre o público e o privado, pois se dirigem a uma mistura entre a esfera pública e a esfera privada da vida humana: um grupo de fundamentalistas assume uma axiologia privada e deseja com ela seja imposta a todos os outros membros da sociedade, sem exceção. A eliminação causada pela mistura entre público e privado impede que a individualidade do sujeito tenha sua existência, dado que o sujeito psíquico é visto apenas quando é parte constituinte de um grupo maior – um panpsiquismo artificial. Pensemos, por exemplo, no que tem acontecido nas relações privadas, em cada família, como no fragmento citado anteriormente – o público invadiu o privado e, como reação, a individualidade de Helga foi negada dado que ela não integra o grupo do qual seu filho faz parte.

Nos fundamentalismos parece não haver espaço para um não eu, pois se apresenta como algo contraditório com o que propomos ser a vida pública – se a vida pública é a esfera da não vergonha, ela há de supor a existência de um outro, um não eu. É desse outro, desse não eu, que eu tenho "vergonha". Ao contrário, a esfera da intimidade ou da vida privada é a esfera da "desvergonha", quando estou entre iguais ou sozinho não me é possível sentir vergonha (nesse caso, chamamos esse sentimento de culpa).

Voltemos ao texto freudiano que diz que

[...] a massa não tem dúvidas sobre o que é verdadeiro ou falso, e ao mesmo tempo tem consciência de sua grande força, ela é tanto intolerante quanto crente na autoridade (FREUD, [ 1921] 1996, p. 148).

Talvez hodiernamente (re)apareça uma forma diversa de vida pública distante daquela na qual nascemos: para nós, a esfera pública seria o campo difícil do acordo entre diferentes, sem qualquer intimidade. Hoje se apresenta para outros a vida pública como a esfera do acordo entre semelhantes, com pinceladas de intimidade. Talvez por isso se criou na vida política uma aversão ao politicamente correto, ou seja, uma aversão à vida pública sem intimidade – uma ação pública que não passa pelo crivo da vergonha, ou seja, pelo olhar do outro, do diverso. Desse modo, falácias ad hominemse tornam demonstrações históricas.

Mas ainda assim: o que une as massas em geral e os fundamentalismos de modo específico? Freud aborda a temática no capítulo VII:

A identificação é conhecida na psicanálise como a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva com uma outra pessoa. Ela desempenha um papel na pré-História do complexo de Édipo (FREUD, [1921] 1996, p. 115).

A primeira identificação mãe-bebê é colocada por Freud ([1921] 1996, p. 115) como " investimento de objeto claramente sexual; já a com o pai, uma identificação como modelo". Acreditamos que aqui se trata mesmo de algo anterior à escolha objetal, mas diz respeito à construção da identidade do gênero. Aqui o importante é pensar que ambas as identificações são ambivalentes desde o início, ponto assinalado pelo próprio Freud: pode ser objeto tanto de ternura como de eliminação. Freud ([1921] 1996, p. 115) continua e diz que a identificação

"se conduz como um derivado da primeira fase oral da organização libidinal, na qual o objeto cobiçado e apreciado foi incorporado através do ato de comer e assim foi aniquilado como tal".

Bem, esse processo é comum a todos os humanos, guardadas as particularidades de cada sujeito. É nessa fase do narcisismo infantil e formação da instância do Eu que as relações de identificações com os modelos parentais formam o ideal do Eu. Freud ([1921] 1996, p. 116) resume, ainda no capítulo VII, a identificação com a figura paterna em três partes: (a) ter o pai – incorporação; (b) ser o pai – introjeção; (c) estar no lugar do pai – regressão narcísica.

Chamamos a última de regressão narcísica porque, segundo Freud, ela se dará num momento posterior: busca pelo objeto perdido, quase que de maneira melancólica e encontrar esse objeto, que é identificado com o próprio ideal do Eu. "Não se é igual ao líder, mas se torna igual a ele".

Voltemos ao texto freudiano. O Eu torna-se cada vez menos exigente, mais modesto, e o objeto, cada vez mais grandioso, valioso; esse finalmente alcança a posse de todo o amor próprio do Eu, de modo que o autossacrifício do Eu torna-se uma consequência natural. O objeto (o líder) consumiu o eu. [...] A situação inteira se deixa resumir, sem resíduos, em uma fórmula: o objeto colocou-se no lugar do Ideal do Eu (FREUD ([1921] 1996).

Nas massas que não possuem a característica de fundamentalismos, o processo de identificação se dá por introjeção, através da qual a unidade do seio bom/seio mau se encontra no que se chama de posição depressiva. Nos casos da massa fundamentalista, parece que o processo predominante é a incorporação do seio bom e ao mesmo tempo o ataque ao seio mau através da voracidade – uma posição esquizoparanoide. Se nossa hipótese for verdadeira, poderíamos dizer que uma diferença entre os movimentos de massa e os movimentos fundamentalistas é que os primeiros são ainda capazes de fazer uma certa integração entre eu/não, seio bom e seio mau; já os segundos, mantêm-se numa cisão entre eu e o não eu, entre o amor ao seio bom e o ódio ao seio mau, devorando-o.

Mas como alguns indivíduos tendem aos fundamentalismos e outros não?

Pode ser que a separação entre o Eu e o ideal do Eu, em alguns indivíduos, não se deu de modo satisfatório. Tanto o Eu quanto o não eu ainda coincidem facilmente; inúmeras vezes o Eu preservou a autocomplacência narcísica anterior. A escolha do líder é facilitada por essa relação. Muitas vezes ele só precisa possuir as características típicas desses indivíduos, destacadas de maneira particularmente nítidas e desnudas. Isso confere uma força e uma liberdade libidinal maiores, quase que absolutas, ao líder de um grupo fundamentalista (FREUD, [1921] 1996).

Essa liberdade libidinal favorecida pela identificação (dual-porosa, psicótica?) da massa fundamentalista com o seu líder causa uma espécie de "Sua majestade, o povo!".

A questão narcísica do processo identificatório com o ideal do Eu aqui é importante, pois também pode ser usada para diferenciar grupos em sentidos geral das massas que denominamos nesta apresentação como fundamentalismos: nos grupos em geral, o laço libidinal com o líder causa uma perda da realidade momentânea (ou criaria uma realidade fantasmática, histérica), como bem acontece no contágio afetivo assinalado por Scheler (1916): assistir um jogo no Maracanã ou participar de uma manifestação sociopolítica e ao fim das quais, quando as pessoas voltam para casa, elas se sentem como que realizadas libidinalmente. Elas gozaram em si mesmas. Descarregaram. Introjetam uma causa, um líder, um projeto, um time de futebol e esse corresponde ao ideal do eu somente enquanto a massa está reunida. Parece mais com uma neurose, pois o eu volta a se relacionar com seus objetos e suas fixações fálicas, funcionando, assim, com o mecanismo da Verdrängung. Aqui se mantém a tríade: Eu - Ideal do Eu – princípio de realidade/limite.

No caso dos fundamentalismos, o narcisismo se encontra mais fixado através da incorporação do objeto e, assim, um ideal do Eu vai no caminho de um processo identificatório com o líder. O processo de incorporação bem como seu equivalente identificatório é voraz, quer destruir o próprio seio, devorando-o. O laço libidinal com o líder é absoluto, uma identificação maciça: o indivíduo e o líder são um e o mesmo, e tudo que se opõe a isso é um inimigo a ser destruído. Assistir a um jogo no Maracanã ou participar de uma manifestação sociopolítica, e, no fim, as pessoas não voltam para casa, pois as pessoas são a negação do laço libidinal-identificatório: brigas de torcida, depredação de vias públicas, ataques ferozes aos opositores. Elas gozaram em si mesmas, mas é um gozo fálico. Descarregam atacando tudo que ameaça o substituto do pai. Incorporam uma causa e se tornam a causa, incorporam um líder e são um corpo com ele. Essas incorporações correspondem ao ideal do eu aquém e além da massa reunida. Tal modelo nos parece mais com uma psicose, pois o Eu volta a se relacionar consigo mesmo e com suas ideias através da figura do líder. Assim, continua com a própria libido, ou melhor, com o investimento libidinal feito em si mesmo através da incorporação e identificação entre ideal do Eu e do Eu. O que não se encontra nessa díade Eu e Ideal do Eu, está fora. O que está fora? O princípio da realidade. O mecanismo econômico se assemelha mais com a Verwerfung, e a fixação parece estar na fase oral.

 

3. Reflexões para além do texto

Propomos voltar um pouco à Bergasse 19, numa fantasia em que imaginamos o que Freud falaria na vida privada entre amigos sobre acontecimentos como os atuais – na realidade, ele viveu momentos ainda mais radicais com o Anschluss da Áustria pelos nazistas em março de 1938. Podemos ler algo que ele pensou no período, sobretudo nos seus escritos finais, segundo o biógrafo Peter Gay (2012, p. 622):

A ideia de suicídio chegou a invadir o lar dos Freud naquela primavera. Mas Schur, médico de confiança de Freud, que estava próximo à família naqueles meses desesperados, conta que, quando parecia impossível fugir da Áustria nazista, Anna Freud perguntou ao pai: "Não seria melhor se todos nós nos matássemos?". A resposta de Freud foi típica: "Por quê? Porque gostariam que fizéssemos isso?". Ele podia resmungar que as coisas não valiam a pena e ansiar para que caísse a cortina, mas não estava disposto a abrir mão delas ou a deixar o palco, segundo a conveniência do inimigo. O espírito de desafio que dominou tão grande parte da vida de Freud ainda se agitava nele.

Esse espírito de desafio do qual fala Peter Gay, pode ser visto como uma certa recusa em aceitar fazer parte dos fundamentalismos de sua época, inclusive do movimento sionista. Esperar para agir por si, até certo ponto. Muitos podem se questionar por qual motivo [o motivo pelo qual] a família Freud não deixou a Áustria quando surgiram os primeiros indícios do que viria a lhes acontecer – mas parece ter preferido não ser mais um elemento na massa – mas eles desconfiavam sempre, inclusive das próprias impressões (por mais que seu espírito fosse obstinado). Na leitura do biógrafo, poderíamos dizer que "desconfiar" é uma defesa contra os movimentos identificatórios psicóticos dos fundamentalismos.

Ao ler a obra freudiana, nos deparamos com a terceira ferida narcísica em nossa cultura: a razão não é senhora nem em sua própria ca sa (FREUD, [1916] 1996, p. 292). Aqui, diríamos, ninguém está completamente blindado aos fundamentalismos, no sentido aqui abordado.

Assim, uma interpretação dos fundamentalismos, se pensássemos numa "psicanálise da História", dependeria de três níveis. Um primeiro seria o presente e o passado narrados; depois, quais grupos de pessoas escreveram esse presente e esse passado e, por último, e mais importante, porque assim o fizeram, isto é, quais eram suas identificações psíquicas. Para algo ser "cientificamente" comprovado seria necessário analisar cada membro do grupo que narra um acontecimento histórico. Ora, isso nos parece impossível. Por isso, talvez a intuição da escrita e produção psicanalítica freudiana lança mão de uma mitologia para tentar balizar determinados conceitos, tais como inconsciente, falta, Lei, etc. (FREUD, 1913; 1987; 1921).

A categoria da possibilidade (o que não cabe no fundamentalismo) implica uma potência hermenêutica de todo e qualquer discurso e a probabilidade de assunção a uma verdade possível que em um determinado momento funciona.

Mas e na clínica, como escutar os fundamentalismos? Bem, a ética do analista e o imperativo da escuta afinada através da atenção flutuante impõem um lugar: o lugar da diferença. Um analista que, na clínica, entra em quaisquer formas de fundamentalismos, fere a ética na psicanálise.

Aqui nos dirigimos à noção de differance , no sentido de Derrida (1993). Pensar a ética do analista como um lugar da differance é estar entre a verdade psíquica trazida pela analisante e a metapsicologia do analista – não é um lugar fixo, mas um processo que acontece no decorrer dos encontros analíticos.

Não se pensa aqui no texto expresso de Freud quanto à sua visão da massa e sua psicologia, como pode ser encontrada em alguns textos, mas cogitamos pensar em que medida a metapsicologia e a clínica freudiana poderiam estar nesse espaço lacunar dentro das próprias linhas traçadas pelo autor. Assim, é necessário aqui um epoché fenomenológico para ir além do texto expresso e admitir a possibilidade de se estar buscando construir um dispositivo conceitual, jamais uma verdade num sentido ontológico. Assim, escutar os fundamentalismos na clínica e entendê-los como sintomas de um sujeito que expressam suas angústias é estar entre a verdade do sujeito e os mecanismos pulsionais que validam essa mesma verdade. Pensar nos fundamentalismos requer uma disposição do analista a estar "entre" a fala e os afetos. Se o analista sair desse "entre", ele assume uma das partes, que pode validar determinado fundamentalismo (ou outro qualquer). Caso contrário, a própria clínica poderia estar fundamentada no fundamentalismo do analista, não na ética. Isso seria um desastre.

Tal pressuposto nos leva a crer que a História, pelo menos sob o olhar da psicanálise, é trágica – não há previsibilidade. Podemos supor, intuir, mas não ter uma certeza unívoca, sobretudo sobre o processo histórico. O mesmo vale para uma história clínica, aquela que estamos inseridos junto a nossos analisantes. A certeza do futuro melhor para todos, quase que num modelo positivista de Comte, não cabe numa análise da História que, se é compreendida como trágica nem numa clínica que se propõe que o sujeito trace seu próprio caminho. Um psicanalista que coloca uma certeza sobre o futuro para o paciente pode se tornar um líder fundamentalista no seu próprio mundo/consultório particular.

Desse modo, parece ser quase que um imperativo categórico o superego do psicanalista se opor a toda e qualquer forma de fundamentalismo, inclusive dentro das próprias sociedades psicanalíticas – ainda que não estejamos imunes às identificações psíquicas que temos com colegas de ofício.

Como refletimos acima, denominamos o fundamentalismo na vida pública em quaisquer de suas formas como um regime sem exceção – não supõe ambiguidades. Ora, em psicanálise pensamos em determinismo psíquico e o psíquico é o individual e forjado também a posteriori pela história do constituir-se sujeito. Por isso mesmo, então, não seria possível uma compreensão unívoca dos processos históricos através de um poder externo que os determinasse: quer seja esse poder uma verdade do grupo, quer seja a verdade do analista na sua clínica. Esse poder externo poderia ser o Estado, os deuses, o mercado, uma teoria psicanalítica, etc. Se a História é sempre a história dos homens, ela sempre será ambígua – tirar a ambiguidade da vida humana, como requerem os fundamentalismos, seria tirar, talvez, a única coisa que nos restou: o conflito psíquico: Eros e Thanatos. Nossa hipótese partilhada aqui é que nós, psicanalistas, devemos defender a "exogamia" e jamais querer substituir o pai primevo assassinado ou apoiar qualquer indivíduo que almeja ser um novo pai primevo: aceitemos a morte do pai que nós o matamos na passagem das nossas construções subjetivas em análise e na formação do próprio psiquismo - a passagem do Ideal do Eu até a formação do supereu no desfecho do complexo de Édipo. Nenhum de nós deseja ser o pai da horda, nossa verdade é a realidade psíquica, que é exogâmica e transmitida de modo artesanal.

O acordo entre os irmãos de que ninguém pode ser o pai da horda é um paradigma para a clínica, para a metapsicologia e para a responsabilidade de nossas falas. Assumir uma postura contrária à exposta acima, parece negar os processos de deslocamento e condensação, de metáfora e metonímia. Assim, poderíamos ousar afirmar que o tempo dos homens não é teleológico, sequer cronológico. Para a psicanálise, o tempo assume uma matriz psíquica e trágica.

Esse acordo entre os indivíduos não nos pode garantir uma satisfação pulsional equivalente à perda que obtivemos ao ter sido feito o contrato entre os "irmãos": ninguém mais poderia ter o poder absoluto sobre todas as mulheres da horda. Num devaneio podemos até pensar que o nascimento da História, num olhar a partir psicanálise, acontece junto ao assassinato do pai e o acordo entre os irmãos – a História nasce do recalque. Dessa forma, aparece na vida pública um certo fenômeno de massa como elemento compensatório da renúncia pulsional, pois é justamente essa massificação do sujeito que lhe garante certa plausibilidade satisfatória.

Caso seja questionado se aquilo que se pode falar sobre o psiquismo do indivíduo está proporcionalmente equivalente à psicologia de grupo, Freud diz que

O grupo nos aparece como uma revivescência da horda primitiva. [...] . Temos que concluir que a psicologia dos grupos é a mais antiga psicologia humana; o que isolamos como psicologia individual, desprezando todos os traços do grupo, através de um processo gradual, que talvez possa, ainda, ser descrito como incompleto. [...]

Uma reflexão mais demorada irá demonstrar-nos sob que aspecto essa afirmativa exige uma correção. A psicologia individual, pelo contrário, deve ser tão antiga quanto a psicologia de grupo, porque, desde o princípio, houve dois tipos de psicologia, a dos membros individuais do grupo e a do pai, chefe ou líder (FREUD, [1921] 1996, p. 134).

Assim, a História humana nada mais seria que a busca, que sempre se frustra, por esse pai ideal que nos defenderia do sentimento de finitude: tanto da finitude individual, ou seja, nossa própria morte como da finitude coletiva: vive-se pequenas mortes durante as muitas renúncias pulsionais que a vida em sociedade impõe aos homens.

O líder do grupo ainda é o temido pai primevo; o grupo ainda deseja ser governado pela força irrestrita e possui uma paixão extrema pela autoridade; na expressão de Le Bon, tem sede de obediência. O pai primevo é o ideal do grupo, que dirige o ego no lugar do ideal do ego. [...] uma convicção que não está baseada na percepção e no raciocínio, mas em vínculo erótico (FREUD, 1921, p. 138).

Por isso, quando durante um determinado momento histórico a civilização não foi capaz de lidar com essa dupla finitude que gera em nós o sentimento de desamparo, um que advém da natureza e outro da vida em comum, não caberia dizer que os deuses ou entidades sobrenaturais seriam os responsáveis, mas que teríamos o desejo que um pai, expresso pela figura do líder, fosse o responsável cuidador de nossas próprias ações enquanto grupo e enquanto indivíduos.

O moralismo próprio dos fundamentalismos, quero dizer, aquilo que desloca os costumes a um passado jamais vivido, propõe a muitos um único modelo diante do fracasso do acordo entre irmãos. Como se um dos irmãos durante o jantar totêmico dissesse para outros irmãos: era muito melhor quando o "pai cuidava" de todos, aquele era o modelo perfeito. Se aquele foi o modelo perfeito, todos os outros são imperfeitos. Essa univocidade de pensamento é uma das expressões que se observa nas diversas formas de fundamentalismos – lembrando que esses também não denegam quaisquer ambiguidades. Podemos até mesmo pensar o moralismo como uma identificação psicótica com a figura do líder, uma vez que esse é substituto do pai e precisamos aplacar nossa culpa pelo seu assassinato – a lei do totemismo (FREUD, [1913] 2006). Talvez seja um negar o que já foi negado: eine Verneigung.

 

4. Considerações finais

O moralismo é a força ou poder do fundamentalismo, pois exerce coerção sobre os sujeitos e se apresenta ora como uma metonímia dos deuses primitivos, ora como metáfora do retorno do recalcado através dos mesmos deuses em suas versões contemporâneas.

Se o "cabedal" de ideias presentes nos muitos moralismos existentes pudesse nos proteger um pouco e de modo precário do desamparo, ainda assim, parece que nem sempre (provavelmente nunca) um substituto do pai primevo nos pode garantir o amparo que ansiamos. Esse trágico da existência humana nos leva a pensar que o desamparo jamais foi eliminado, mesmo as melhores conquistas da humanidade falharam.

O pai substituto pode não dar conta de tantos filhos, é-lhe impossível cuidar de todos como todos desejam – sobretudo quando esses brigam numa tentativa de convívio. No conflito pulsional, imanente a cada sujeito, encontra-se nosso mais íntimo desamparo. Na clínica, pensamos que aprender a viver com esse desamparo pode ser um dos maiores ganhos de uma análise, pois jamais abandonamos o Ideal do Eu. Mas fazer dele o próprio objeto faz-nos um tanto psicóticos por foracluir da vida as realidades que ameaçam a suposta integridade ou completude do sujeito. Mas essas realidades fazem parte da nossa condição humana, demasiadamente humana. Sempre se segue uma sensação de triunfo quando algo no Eu coincide com o Ideal do Eu.

 

Referências

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Recebido em: 10/12/2021
Aprovado em: 22/12/2021

 

 

SOBRE O AUTOR

Michell Alves Ferreira de Mello
Psicanalista.
Membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Mestre em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
Doutor em filosofia pela Basel Universität.
Professor efetivo da Fundação de Apoio à Escola Técnica (FAETEC-RJ).
Professor do Centro de Estudos Antônio Franco Ribeiro da Silva (CEAFRS) do CBP-RJ.
Membro do Grupo de Trabalho Sobre Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ.
Membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi (GBPSF).
Coautor de Transexualidades: reflexões psicanalíticas entre gênero e Édipo (2018) e Duas éticas em questão: cuidado de si e práticas de liberdade em Ferenczi e Foucault (2020).

E-mail: mafmello@gmail.com

 

 

1 Trabalho apresentado no XXIV Congresso de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Para além da pandemia: ecos na psicanálise, realizado pelo Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro, de 4 a 6 nov. 2021, por meio da plataforma Zoom.

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