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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.44 São Paulo jun. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM I

 

Linguagem musical e psicanálise*

 

 

Alfredo Naffah NetoI, **; Ignácio Gerber***

I Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 

A psicanálise, para além de sua dimensão clínica, terapêutica, se constitui num corpo teórico para pensar a cultura e suas produções. A ide, tendo como linha editorial a interseção entre psicanálise e cultura, ao dedicar este número à linguagem, temática em que o universo da música comparece com sua forte marca de criação cultural e social, conversa com os psicanalistas Alfredo Naffah Neto e Ignácio Gerber, possuidores de grande familiaridade com esta interface.

ide: Alguns psicanalistas, como a Maria Rita Kehl, entre outros, há alguns anos, têm buscado articular o rap, em especial o dos Racionais MC’s, com uma tentativa de esforço civilizatório. Há uma proposta de reflexão acerca da possibilidade desse gênero de música exercer uma “espécie” de função fraterna.

O rap, ao se utilizar basicamente da palavra musical como instrumento, ao ter como lema crucial “consciência e atitude”, ao se propor a uma identificação e uma troca no sentido horizontal, e levando em conta o Brasil, um país considerado órfão de pai simbólico – temos, talvez, mais freqüentemente, e até em excesso, “pais da horda primitiva” –, poderia ser pensado como uma forma de linguagem musical capaz de favorecer a simbolização de um cotidiano atual, demasiado “real”, e de contribuir para a constituição de sujeitos e de uma ética da convivência?

Ignácio Gerber: A questão essencial do rap é como se relacionam nele a letra e a música, elementos que perpassam tudo o que conversaremos. Por um lado, a predominância da letra no rap se constitui em algo novo, e, por outro, é algo muito antigo; ambigüidade que permeia todas as respostas às questões propostas na atual pós-modernidade. Precisamos nos acostumar com respostas duplas. Quando digo que não é algo novo, é porque podemos pensar que, desde o madrigal renascentista ou os recitativos de ópera, o que está em relevo é a letra, pois a música é quase um fundo para dar um certo ritmo. E o ritmo é o que une a música e a letra.Um discurso, uma poesia falada, têm ritmo, assim como a música. A música acrescenta a melodia, a harmonia. Mas, basicamente, o ritmo é comum a todas elas. Então, por um lado, temos algo antigo, como o que havia nas confrarias musicais ou a música do povo, na época pré-renascentista ou renascentista. As músicas populares eram cantadas em tabernas ou nas guildas de trabalhadores, que tinham cada uma seus temas próprios. Por aí vemos uma certa linha ideológica de união fraterna. Lembramos que a música que ficou registrada e que herdamos desses períodos é a dos nobres, dos palácios, cujos compositores desenvolviam os temas populares. Por outro lado, o que há de essencialmente novo no rap é que ele surge num momento de recuperação da imagem afro. Quando o rap começou, lembro-me de que escutei um vinil americano, com alguns amigos músicos, e foi uma experiência que me “pegou”. O pessoal achou aquilo meio estranho, e eu disse: “É isso que vai ficar por um bom tempo”. Para mim foi algo fácil de captar porque era evidente a influência africana. O rap é decididamente africano até no contexto ideológico: a música original negra é cantada em rituais, cantada em conjunto, e ela representa a união fraterna de uma etnia, de uma tribo. A partir daí, têm-se os corais sul-africanos, uma mistura com a música protestante e todo o caudal que vai desembocar no gospel, no blues, e tudo mais. É esse caudal que vem no ritmo. Todo ritmo que conhecemos está influenciado pela música africana. A maior contribuição da cultura norte-americana, que é tão posta em dúvida e suscita tantos problemas, é, para mim, exatamente, a união da cultura negra africana com a cultura européia branca que resultou no jazz, no rock, em todas as músicas que podemos imaginar hoje. Então eu diria que a cultura americana pode até acabar, mas a mescla de negros e brancos subsistirá e essa é a coisa mais nova que existe no mundo atual e que, felizmente no Brasil, com todos os nossos problemas, está se juntando de modo diferente, e eu sou muito otimista quanto a essa junção. Acredito que isso dá uma personalidade diferente ao nosso país.

ide: A influência maior veio do rap, como rhythm and poetry, originado nos guetos americanos criados pela segregação racial e social, na periferia de algumas cidades norte-americanas. Aqui no Brasil se disseminou especialmente na periferia de São Paulo, considerada uma metrópole segregacionista, violenta e opressiva.

Ignácio: Começou com o funk, nos anos 70, por meio do Chic show e seus bailes com milhares de negros e com forte apelo ideológico. A primeira vez que fui a um baile, entrei na fila, e era quase o único branco. Ficamos eu e um rapaz negro juntos na fila, e eu comentei, meio ingenuamente: “Somos uma mesma coisa”. E ele respondeu: “Não, não é a mesma coisa”, apontando para a pele. Aquilo tinha um poder ideológico enorme. Estava também presente a banda Black Rio, que foi quem começou esse movimento no Brasil.Mas temos um problema político e geográfico: as coisas que saíam da África chegavam ao Brasil ou através da Europa, ou através dos Estados Unidos, inclusive as linhas aéreas. Não havia uma via direta, criada somente há alguns anos. Como tudo o que acontece no mundo, havia uma circulação político-econômica, e seguramente o rapchegou ao Brasil pelos Estados Unidos, o que não deixou de ser uma contribuição fabulosa.

Alfredo Naffah Neto: Minha impressão é a de que o rap é um tipo de música com claro predomínio do conteúdo da linguagem (ou seja, da letra, da poesia), em detrimento da música. É quase uma poesia ritmada, mas com bastante ritmo, o que mobiliza a dança. A música é bastante incipiente e até repetitiva. Acho que esse predomínio do conteúdo verbal se deve ao fato de que o rap é uma forma de expressão das comunidades desprivilegiadas, culturalmente excluídas, marginalizadas que necessitam muito de “expressão verbal”. É um tipo de música que tende a realizar o que se chamou de função fraterna, na medida em que nasceu como um clamor, uma expressão verbal das amarguras ligadas aos acontecimentos do cotidiano desse tipo de comunidade marginalizada, seja de negros, ou de populações do subúrbio, que habitam a metrópole, mas não tem acesso à maioria dos bens.

A música popular contemporânea teve suas origens no renascimento e na ópera renascentista, com Montiverdi. Mas, naquela época havia uma clara relação entre a ópera e a música popular, não havendo a separação que existe hoje. A ópera de Montiverdi nasce com o parlar cantando, que era justamente um recitativo contínuo. Aí há sempre um predomínio da palavra, que está sempre em primeiro lugar e a música submissa a ela. No classicismo há o inverso: a música se torna soberana. Com Mozart há uma explosão musical: a música está em primeiro lugar e a palavra submissa a ela.Na segunda ária da Rainha da noite, da Flauta mágica, com todos os seus ornamentos operísticos, se não soubermos de antemão o que a personagem está dizendo, não entenderemos nada do texto. E não importa tanto entender, mesmo.O impacto musical tem que estar em primeiro lugar e, em segundo, o conteúdo verbal. Essa característica típica, em que a música é predominante se chama prima la musica (primeiramente, a música), em contraposição ao tipo parlar cantando (falar cantando). Na cultura musical, esses movimentos se alternam, e essa alternância se dá também na música popular.No rap há uma clara predominância da linguagem sobre a música. O importante é o ritmo, a declamatória e a repetição de alguns refrões que criam um envolvimento e chamam a atenção para o conteúdo que está sendo dito e expresso. É uma forma de expressão de música popular.

Mas, eu pensaria na constituição de subjetividade, de forma geral, não só a partir da influência do rap, mas em relação à música popular como um todo.No rap há um segmento da população mais singularizado, a periferia, em função de certas origens ou de algumas características peculiares. Mas, a camada de população de classe média-alta – média-alta intelectualizada, principalmente –, também se vê retratada nas músicas, letras e poesias de um Chico Buarque, por exemplo.

No Rio, em termos de música popular, há uma ligação entre morro e cidade cada vez maior. Em nível musical, o morro está na cidade. Podemos falar em dois tipos de morro. O do tráfico de droga, com o qual a polícia luta e troca tiros. O outro tipo é o do carnaval, da música popular, do samba carioca. Há uma articulação que vem desde a época do Cartola, do Noel Rosa, nos anos 30 (ou, até antes disso), quando já havia uma ligação com o mundo da malandragem.O samba daquela época já expressava a ligação com o malandro. Lembro-me aqui de uma polêmica, feita de sambas, entre Noel Rosa e Wilson Baptista, sobre a questão do malandro.Wilson começava dizendo “meu chapéu de lado, tamanco arrastando, lenço no pescoço”, caracterizando o malandro e o Noel respondia cantando: “proponho, ao povo civilizado, não te chamar de malandro e, sim, de rapaz folgado”... Enfim, um bate-boca, via samba, que tematizava a relação entre o malandro do morro e o cidadão da cidade, no Rio de Janeiro. E hoje, há o Chico Buarque ligado à Mangueira, o Paulinho da Viola à Portela, há secções que atravessam morro e cidade em nível de música popular, criando uma relação diferente daquela com a questão do tráfico, da droga e da polícia, em que as relações são muito mais antagônicas.

É como se a música fizesse a ligação entre a população marginal e o núcleo da cidade, ligação essa que não é feita por outras vias.

Ignácio: O rap é também uma música de transe, como a percussão africana, que leva as pessoas a um estado alterado de consciência – estado coletivo, como no candomblé. As pessoas dançam e a música as faz entrar – como a nós também, quando dançamos – num outro nível de consciência grupal. A repetição da letra ou do tema musical é como um “mantra” que fica ressoando e leva as pessoas, de certo modo, a um estado de transe.

Alfredo: E aparece também nas bandas de rock pesado, nos shows com aqueles delírios e o envolvimento da platéia, principalmente dos adolescentes.

ide: Gostaríamos de abordar uma questão que nos interessa bem de perto. Como vocês vêem a relação do Freud com a música?

Ignácio: É uma das coisas mais estranhas de se tentar compreender. Peguei o índice das obras completas de Freud e verifiquei que, nos 24 volumes, há apenas cinco citações de música, das quais quatro são de Freud e uma é do editor. Nelas, Freud cita a letra e não a música. Ele se utiliza de um trecho de ópera para falar da letra, não da música. Em alguns de seus textos, ele diz que tem muita dificuldade com a música quando não havia a palavra se interpondo às emoções, às percepções. Acho tão estranho. Na citação do editor, Strachey fala da ligação de Freud com a pintura, a arte, a literatura e faz uma ressalva ao dizer que Freud não era tão avesso à música como queria fazer parecer, como se fosse uma frase de efeito, não sei com que finalidade.Mas, enfim, imaginar que o pai de Freud, menino judeu, nascido em Viena, não tenha colocado um violino, no mínimo, em suas mãos...

Hoje se tornou uma frase tão batida na psicanálise: “Ouvir a música atrás das palavras”. E penso que pode se dar o contrário: ouvir as palavras atrás da música. Música que pode ser o gesto, o ritmo, o enactment, tudo aquilo que podemos chamar de a música das palavras e dos gestos, que é o que importa para nós psicanalistas. Como foi possível que Freud não percebesse isso e não tivesse utilizado metáforas musicais tão óbvias e evidentes? Para mim é um grande mistério, sobretudo levando-se em conta que a música está muito próxima do inconsciente.Nossa captação musical é basicamente uma captação inconsciente. O consciente só consegue, digamos assim, processar uma linha narrativa, às vezes duas – quando ouvimos duas pessoas falarem já é o limite. Na música podemos ouvir oito vozes e quem processa isso não é o consciente, é o inconsciente.

Alfredo: É interessante que Freud e Nietzsche faziam parte de uma mesma cultura de língua alemã da Europa Central, século XIX, e tinham posturas radicalmente diferentes em relação a essa questão. Eu trouxe uma interessante citação do Nietzsche, em que ele se propõe a pensar a linguagem por meio do paradigma musical. É o aforismo 246, em Além do bem e do mal, uma crítica à literatura alemã, da época:

Que tortura são os livros escritos em alemão para aquele que possui o terceiro ouvido! Como se detém contrariado junto ao lento evolver desse pântano de sons sem harmonia, de ritmos que não dançam, que entre os alemães é chamado de livro! (...) Quantos alemães sabem, e de si mesmos exigem saber, que existe arte em cada boa frase – arte que deve ser percebida, se a frase quer ser entendida! Uma má compreensão do seu tempo, por exemplo: e a própria frase é mal entendida! Não ter dúvidas quanto a sílabas ritmicamente decisivas, sentir como intencional e atraente a quebra de uma simetria muito rigorosa, prestar ouvidos sutis e pacientes a todo staccato, todo rubato, atinar com o sentido da seqüência de vogais e ditongos, e o modo rico e delicado como se pode colorir e variar de cor em sucessão: quem, entre os alemães que lêem livros, estaria disposto a reconhecer tais deveres e exigências e a escutar tamanha arte e intenção na linguagem? (Nietzsche, 1992, p. 155).

Aqui aparece a noção de “terceiro ouvido” e há uma proposta clara de entender a linguagem por meio do paradigma da música. Nessa acepção, a linguagem, aquém do conteúdo, se expressa por essa musicalidade de escansão entre as palavras, com suas vogais, seus ditongos e todas as pausas, os staccatos e os rubatos, de forma análoga a uma música ou a uma partitura musical (e tal qual se pode “escutar com o terceiro ouvido”).

Esse aforismo de Nietzsche me lembra uma paciente que me disse, depois de muito tempo de análise, que, nos primeiros meses, o conteúdo do que eu dizia não tinha importância. O que importava era o colorido afetivo que chegava a ela através da minha fala, mas não por meio do conteúdo e sim dessa dimensão da sonoridade musical, rítmica, da linguagem. Ela provavelmente estava vivendo um estado maior de regressão, e precisava muito mais ouvir a minha voz como um continente sonoro, capaz de lhe propiciar holding, do que algumas interpretações que decifrassem o que estava acontecendo com ela.Winnicott pensa na fala do analista, na relação transferencial-contratransferencial desse modo: como uma ferramenta com a função principal de dar sustentação afetiva ao paciente, para ele próprio ir chegando às “suas” interpretações, e tendo somente como segunda função propiciar entendimento,“via” interpretação, quando isso se faz necessário.

Essa “linguagem musical”, eminentemente afetiva, é aquela que Nietzsche propõe como “a boa linguagem”. Curiosamente, ele era da mesma cultura que Freud, mas com uma postura em relação à linguagem e à musica totalmente diferente.

Ignácio: O pianista alemão Arthur Schnabel costumava dizer: “As notas, eu não as toco melhor do que muitos outros pianistas. Mas as pausas... nelas é que reside a arte”. A fala e o silêncio do analista se interpõem emocionalmente na sessão e é preciso diferenciar o ritmo que cria uma tensão daquele que cria um relaxamento... Podemos pensar a música como uma série de sons tocados em cima do silêncio e também como silêncios colocados sobre um fundo musical de som. E, na sessão analítica, entram essas duas dimensões.

Alfredo: Os silêncios e as pausas estão presentes na articulação da própria linguagem, da fala viva. Uma linguagem viva não existe sem silêncio.A linguagem analítica pode funcionar ora como parlar cantando, ora como prima la musica. Há momentos em que o conteúdo verbal é extremamente importante, de onde se originam a interpretação e o sentido capaz de ser decodificado pela consciência, e há outros momentos em que a sonoridade da voz e as emoções que ela veicula produzem mais sentido do que o que está sendo expresso pelo conteúdo verbal, especialmente em pacientes em fase de regressão intensa.

Ignácio: Eu estou pensando numa ligação entre a “linguagem do êxito”, de que fala Bion, e a linguagem do tipo rap, em que, num dado momento, analista e analisando são possuídos por uma situação quase de transe comum, ou algo como uma cumplicidade fraterna. Num outro momento isso se quebra, e depois se recupera, e assim por diante.Mas esses momentos de comunhão são, para mim, muito mais terapêuticos do que detalhes racionais da interpretação.

Alfredo: Esse aspecto nos remete ao “terceiro analítico”, de Thomas Ogden, que propõe que tudo o que ocorre na sessão de análise, desde os distanciamentos e as “supostas” distrações do analista, faz parte de um circuito, ligado à transferência e à contratransferência, que ele chama de “terceiro analítico”: uma espécie de formação inconsciente, que junta dimensões do analista e do paciente, e que articula tudo o que acontece na sessão nas suas redes associativas, onde tudo tem a ver com tudo.

Isso acontece comigo, muitas vezes, na sessão: eu vou para outras redes associativas que, aparentemente, não têm a ver com nada; tudo isso me deixava muito culpado até ler o Ogden. Dou um exemplo que me aconteceu, ontem, numa sessão. Num certo momento eu e a paciente nos vimos falando de um assunto que aparentemente nada tinha a ver com o que se falava antes e eu tive a sensação de que havíamos, os dois, escapado pela tangente, e que devia ter ocorrido algo difícil lá atrás, que não tínhamos sido capazes de tocar.Mas, num certo momento, paramos para ver sobre o que estávamos falando e o que havia acontecido. E vimos que tudo o que havíamos dito sobre o assunto supostamente tomado como um desvio tinha relação com o que tratáramos antes, e, mais ainda, trazia articulações novas ao tema em pauta. É esta a idéia do “terceiro analítico”: tudo o que acontece no circuito da relação transferência/contratransferência tem a ver com a dimensão inconsciente, o terceiro analítico, que articula a subjetividade do analisando à do analista, numa formação inconsciente comum a ambos.

Ignácio: Atendo um rapaz há dois meses e sempre nos perguntamos: “É análise, não é análise, o que está acontecendo?”. Ele gosta de música e de algum modo sabe que eu também gosto. Ele começa a sessão me perguntando de um jazzista de que gosta. Durante a sessão inteira conversamos sobre música. É psicanálise? Acredito que sim. Eu, analista, estou entusiasmado pelo que ele diz e conversamos sobre algo que representa um diálogo real entre duas pessoas interessadas em algo comum. Quando se estabelece uma ligação assim, a transferência não está no analista ou no paciente, está entre os dois, está na relação e escapa a um e a outro. É a idéia de um “terceiro” que observa os outros dois de cima, de um lugar abrangente.

ide: O Alfredo referiu-se ao terceiro ouvido, ao terceiro analítico, do Ogden. E, retomando o que o Ignácio falou, no início, sobre o ritmo, como a união da música com o discurso, lembro-me de uma referência da Marisa Werneck, sobre o significado da palavra “idiorritmia”, palavra que não consta dos dicionários, mas que Roland Barthes encontrou, por acaso, num livro de história. O prefixo grego ídios quer dizer “próprio”, “peculiar” e rhuthmós, “ritmo”. Há uma relação com o universo religioso, que diz respeito a vivências comunitárias, em que cada membro segue o seu ritmo pessoal (imaginário), mas, depende, minimamente, de uma relação compartilhada.

Alfredo: A questão do ritmo é fundamental porque me percebo funcionando de modo muito diferente conforme cada paciente e cada sessão. Se o paciente chega e está muito vagaroso e voltado para si, nós, como analistas, entramos nessa atmosfera, ficamos dela impregnados e podemos nos tornar lentos também. Há sessões que transcorrem quase em sonolência de lado a lado. Para poder ressoar com o paciente, é preciso entrar no ritmo que ele propõe e traz de início. Há pacientes que chegam como azougues, falando pelos cotovelos, ficamos até atordoados, o conteúdo quase desaparece, é quase puro ritmo, aquela coisa exacerbada...

ide: E incluir um contraponto com esse paciente que chega num ritmo tão acelerado pode ser produtivo...

Alfredo: Mas, para poder fazer um contraponto, é preciso ficar um momento em contato com aquela sonoridade. Às vezes, chego a dizer “Não consigo acompanhar o que você está dizendo”. É como um zumbido. Tento até encontrar uma metáfora que expresse melhor essa sonoridade da linguagem quase despida do conteúdo e a transmito a ele, no sentido de criar uma imagem do estado mental que ele está trazendo para a sessão. Esse primeiro impacto de entrar em contato com o ritmo que o paciente traz é fundamental, pelo menos para mim.

Ignácio: Há analisandos que se apresentam a nós em adágio, ou allegretto, ou mesmo scherzo. O analista pode ajudar na modulação. Às vezes o analisando emite uma ária coloratura agudíssima, à qual o analista acrescenta um baixo contínuo grave, compondo o fundo musical do momento vivido.

ide: A composição analítica se faz a dois e é por isso que se diz que cada análise é uma análise, pois é uma composição muito singular daquela dupla.Nesse sentido, se um paciente chega no adágio, um dado analista pode entrar com o allegro. Outro analista poderia permanecer no adágio por mais algum tempo.

Alfredo: O mesmo paciente, falando as mesmas coisas para dois ou três analistas diferentes, formaria composições totalmente diversas. É nesse sentido que a psicanálise nunca será – e acho ridículo quando tentam transformá-la nisso – uma ciência experimental ou algo do gênero, porque no contexto analítico nada se repete, e toda ciência experimental se baseia na “repetição”. A psicanálise é uma construção artística, a dois, na clínica, que vai se transformando de uma sessão para outra, ao longo do processo, em que, sem dúvida, nada se repete. Escrevi sobre isso mais detalhadamente num artigo sobre o método, “A pesquisa psicanalítica”, publicado no Jornal de Psicanálise (Naffah Neto, 2006). O que se repete, no contexto analítico, sempre se repete de modo diferente, como “repetição diferencial”, como diria Gilles Deleuze. Mesmo quando pensamos em compulsão à repetição, nos sonhos traumáticos, o que se repete já traz algo de novo. Aquilo “somente” se repete porque traz algo de novo. Senão, não se repetiria, seria um gasto psíquico inútil. Nada se repete de forma idêntica no contexto analítico.

Ignácio: Na música do período clássico predominavam composições em três movimentos, cada um composto por duas partes, ambas repetidas. Por que repetir uma parte já tocada? Porque na repetição ela já é outra coisa. Não se consegue repetir uma coisa duas vezes. Então se aproveita a repetição para variações e improvisos, pois é impossível tocar igual.

Quero me permitir outra discordância ou expansão carinhosa com Freud. Nas Conferências introdutórias, ele argumenta que a psicanálise não é uma Weltanschauung, não é uma visão do mundo. Naquela época, e por uma necessidade política até, ele afirmava que a cosmovisão da psicanálise era a visão de mundo da ciência. Eu acho que a psicanálise é uma Weltanschauung, é uma visão de mundo. A vivência psicanalítica produz efeitos substanciais na maneira do sujeito encarar o mundo e o próximo.

Alfredo: E é uma visão de mundo que só é transmitida de forma iniciática. É só passando por uma análise que se pode entender o que é uma análise e tornar-se psicanalista.

Ignácio: É uma iniciação. Deveria chamar-se assim. Em vez de formação psicanalítica, “iniciação psicanalítica”. Não sei se os candidatos gostariam do nome “iniciantes” ou “iniciados”!

ide: Nós, analistas, precisamos considerar cada preciosa palavra de nossos analisandos num balanço pendular – para não cair num discurso trivializado, banalizado, impessoal ou teórico –, e aí entra a modulação da musicalidade do discurso: cada pausa, cada virgulação – a virgulação traz muito do mundo subjetivo –, cada entonação, cada cadência, cada ritmo, cada gingado, cada samba...

Ao escutar vocês, lembrei-me de uma paciente, uma garotinha de dez anos. Ela chegou até mim porque havia sofrido um acidente e um dos seus dois irmãos, que estava junto no carro, morreu. E ela sobreviveu. Na tentativa de dar conta desse luto, da culpa, iniciamos a análise. Havia períodos em que ela chegava com uma musicalidade, observada desde os gestos elétricos até a entonação de desespero, de modo que ela saía da sala de análise e ia para o jardim, onde olhava para o céu, desesperada, e berrava compulsivamente: “Traz meu irmão de volta”. Nesses momentos havia pouco espaço para eu, analista, entrar. Num outro período, posterior, ela fala da situação da perda do irmão, mas numa cadência completamente diferente.Como? Na sala em que nos encontrávamos, escorregando suavemente no divã, diante de mim, me diz muito levemente que estava se lembrando do irmão, com muita saudade dele, porque ele também gostava muito de brincar no escorregador. Aí, começamos uma conversa sobre isso, sobre a lembrança e o esquecimento vinculados às perdas dos entes queridos. O encontro analítico abarca uma construção de infinitas composições a dois, analista e analisando, que propiciam possibilidades de elaboração e transformação que podem surgir a partir de registros musicais bem distintos.

Alfredo: É como se na primeira situação ela necessitasse só do “solo” e, na segunda, já pudesse entrar num “dueto” com você.

ide: Mas o interessante é que o período “solo” foi imprescindível para a passagem para o dueto. Vivemos momentos de suspensão, ou de tensão, que também fazem parte da nossa composição analítica, numa pulsação constante de vida. Essa é uma apreensão por parte do analista que abre frestas para a integração e a transformação dos aspectos mentais do analisando.

Alfredo: Temos momentos de muita turbulência emocional numa análise, que estamos caracterizando como o “solo”, em que o paciente precisa, de fato, falar, expressar, chorar, se lamuriar, expor suas entranhas, e nós, analistas, temos que estar ali oferecendo apenas sustentação, acolhida, quase num silêncio, para que ele tenha chance de expressar o que está sentindo. A garotinha precisava chorar e bradar aos quatro cantos, e ao mundo inteiro, a dor da perda do irmão.

Noutro momento, ocorreu uma transformação da turbulência num campo lúdico – lembrando, aqui, novamente, de Winnicott –, e por meio da brincadeira do escorregar, ela trouxe para a dor uma nova possibilidade de expressão: o “dueto”, a conversa com a analista.

Na análise passamos por vários níveis, inclusive o do vulgar, ou tosco. A vantagem é podermos refletir por que estamos sendo vulgares num dado momento, o que está acontecendo conosco, porque resvalamos por esse buraco, para que um sentido possa emergir. Eu sou contrário ao tipo de analista extremamente preocupado, “empertigado”, como foram todos no início da psicanálise. Freud considerava que o analista não podia usar a contratransferência, como se ele pudesse ser uma tábula rasa, apenas um espelho para acolher o conteúdo do paciente. A psicanálise mudou muito de lá para cá. Tenho uma certa desconfiança com essa forma de operar analiticamente, porque me dá a sensação de prémontagem, como se já soubéssemos de onde partimos e aonde queremos chegar. E a análise é uma “dança a dois”, que não tem direção pré-determinada, porque não sabemos aonde chegaremos, nem se chegaremos. Às vezes, o paciente pára na metade do caminho, por diversos motivos.

Ignácio: Em oposição a uma sessão de forte conteúdo emocional, podemos ter uma sessão aparentemente “trivial”. Porém, não existe trivialidade naquilo que é dito numa análise. O que pode ser trivial fora do consultório, dentro dele adquire sentido. Algo aparentemente insignificante pode deflagrar processos muito além da aparência.As potencialidades do inconsciente são infinitas e as construções de sentido também.

Vou contar uma experiência pessoal e fazer uma ligação entre a atitude psicanalítica e a audição musical.Minha história com a música é antiga, me impregnando desde muito pequeno através de uma formação teórica e prática. Porém, de uns tempos para cá procuro escutar música esquecendo esse conhecimento adquirido e me colocando num estado quase meditativo, tentando esquecer datas, compositores, intérpretes, estilos etc. Algumas vezes nem pego o programa de um concerto para me deixar surpreender. Já como analista, procuro falar o que vem à cabeça, na tentativa de evitar a censura do consciente sobre o inconsciente, ficando mais livre para captar o que vem do inconsciente do analisando.

Alfredo: O terceiro analítico é esse processo de descentramento do ego. Ouvir com o terceiro ouvido é ouvir com um ouvido musical, que não é o ouvido egóico, da consciência, das “representações” verbais, mas a escuta que se deixa invadir e se permite ser possuída pela “sonoridade” do outro. De forma análoga, pensar com o terceiro analítico não significa pensar com a razão consciente, mas se deixar habitar por aqueles “pensamentos em busca de um pensador” de que falava Bion e que não se constituem no analista, nem no analisando, mas “entre” ambos, numa dimensão invisível, porém presente de forma tão palpável com uma mesa, apenas de outra ordem. Tudo isso se processa por meio daquele turbilhão de emoções que percorre e atravessa o campo, ali, “entre” duas pessoas, na sala de análise.

Ignácio: Penso o terceiro analítico como a possibilidade de o analista se colocar além, olhar de outro lugar, de modo a se incluir no seu próprio campo visual. É uma tentativa de se desligar de si, se olhar de fora.

ide: A música tem essa função de tirar a pessoa de si. Uma vez escutei um concerto do Artur Moreira Lima e, de repente, notei que ele não estava mais lá, estava levitando. Foi impressionante. É uma captação musical inconsciente porque existe uma apreensão de vários níveis ao mesmo tempo.

Ignácio: É uma experiência de transe que o músico compartilha com o público. Há concertos, como os da OSESP, na Sala São Paulo, em que o público se familiariza fortemente com os músicos, mesmo à distância, como se estivessem assistindo ao seu time de futebol. Como alguém que diz: “Essa é a minha orquestra”. Então há essa relação de transe com o público também. Acho que nos momentos de encontro terapêutico, na análise, ocorre igualmente essa interação de transe. Vamos deixar de lado os preconceitos que temos para com certas palavras.

Matteblanco tem me ajudado a pensar – mais que isso, a sentir quase corporalmente o meu inconsciente e poder aceitar a sua linguagem, a sua lógica predominante, tão diferente da nossa lógica habitual. É a idéia de o inconsciente ser infinito, segundo Bion, e que Matteblanco desenvolve maravilhosamente. Ou seja, na minha visão é um inconsciente filogenético: a herança arcaica de Freud, o inconsciente coletivo de Jung, ou as pré-concepções de Bion. Se pensarmos que a memória da espécie e da vida de cada um está registrada no inconsciente, ele tem que ser infinito e, para isso, tem que funcionar com conexões multidimensionais. Quanto mais dimensões acrescentarmos, mais crescerão as possibilidades de encontro. É como se o inconsciente funcionasse em dimensões superiores às nossas quatro dimensões espaciais e temporais, para poder conter algo de que o nosso consciente não dá conta. Lacan falava em “desfiladeiro do significante”, e eu penso isso imageticamente como num filme de Kurosawa, em que milhares de guerreiros se perfilam numa imensa planície, e de repente surge um desfiladeiro que eles só podem atravessar em fila indiana. Seria a passagem do inconsciente para o consciente, uma passagem reducionista. Sim, há uma harmonia que dá sentido, mas mesmo na música contemporânea, que tantas vezes nos soa estranha, conseguimos fruir e compreendê-la: coisa do inconsciente!

Alfredo:Um dos raros textos de psicanálise sobre música – “On the enjoyment of listening to music”, de Heinz Kohut e Siegmund Levarie (1950), que versa sobre a fruição da audição musical – diz o seguinte, a respeito do ouvinte de música:

Ele atinge por regressão um primitivo estado do ego que permite o estado de fruição da música. Esse estado do ego pertence à forma mais primitiva de domínio pela incorporação e identificação.Nesse momento, o ouvinte estático não diferencia claramente entre ele próprio e o mundo de fora. Ele experimenta os sons como se fossem produzidos por ele próprio, ou mesmo como sendo ele próprio, porque emocionalmente os sons são aquilo que ele sente.Com a quebra das fronteiras do ego, o sentimento oceânico (...) de ser um com o mundo (...) é alcançado; e com isso, uma forma socialmente aceitável de onipotência mágica e a repetição de prazeres antigos, primitivos, sinestésicos, em que o ouvinte voa através do espaço, com os sons (p. 84-85).

No desenvolvimento humano, caminhamos sempre em dois sentidos: o sentido “progressivo”, que se dirige, cada vez mais, para uma consciência e uma linguagem estruturadas, engloba sempre, uma possibilidade de retorno a um período de regressão: o estado de vivência oceânica da qual fala Kohut. E é graças a esse retorno regressivo, que podemos experimentar o êxtase musical.

ide: Penso numa jovem paciente que se queixa de ouvir demais. Ela pertence a uma família de forte musicalidade, que tem uma história com a música. Parece-me que há nela uma mistura de sofrimento e indiscriminação. Até lhe perguntei se ela tinha ouvido absoluto. É como se ela não tivesse ainda a possibilidade de fazer uma composição com uma linha melódica. Como se constrói essa possibilidade?

Ignácio: O sentimento oceânico nos remete de novo a Freud, na sua correspondência com Romain Roland, em que este aborda esse sentimento e Freud responde, quase se desculpando: “Eu não consigo sentir isso”. Quando ouvimos música e nos deixamos impregnar por ela, nos desapegamos do próprio ego, e, mais ainda, do superego.De repente ouvimos e sentimos que essa música é nossa. Não importa mais se é de Bach ou Beethoven; algo vai além, ela é um produto maravilhoso da espécie humana, o que nos permite dizer: “Eu faço parte disso, eu tenho parte nessa música”. Há momentos em que você classifica e há momentos em que você é possuído, você é a música. Não há posse, porque a posse perde totalmente a importância. A música somos todos nós.

Outra questão que me intriga se refere ao modo menor e ao modo maior, características básicas da música ocidental a partir da Renascença. Há músicas em tom maior, que tem a terça aumentada, e em tom menor, que tem a terça diminuída. O curioso é que o modo maior nos transmite um sentimento “pra cima”, de alegria, e o modo menor, um sentimento “pra baixo”, de tristeza ou nostalgia: “CheChega de saudade” [Tom Jobim e Vinícius de Morais], quase um hino da bossa nova, começa em tom menor (“Vai minha tristeza/ e diz a ela/...”) e na segunda parte transita para tom maior (“Mas, se ela voltar/ se ela voltar...”). Por que isso acontece? Não se trata só de hábito musical, é quase uma determinação emocional. E isso ainda é um mistério.

ide: Alguns estudos mostram que a criança já registra a voz da mãe dentro da barriga. Fora, ela reconhece a voz da mãe, entre as outras. E não adianta ser uma gravação da voz. Ela só reage à voz da mãe. Meltzer fala de uma estética que a pessoa adquire a partir do rosto e da voz da mãe. A primeira experiência musical do bebê, a primeira música que ele ouve, é a sonoridade da voz materna. Ela é a nossa fonte acústica primordial, nossa matriz musical.

Alfredo: A voz materna constitui a nossa primeira “sereia”, capaz de nos encantar e nos acalentar. O acalanto, a canção de ninar, é um tipo de música que a maioria das mães canta para os filhos dormirem, numa certa época. Ele faz parte das nossas primeiras vivências musicais, na vida.

 

Referências

Kohut, H. & Levarie, S. (1950). On the enjoyment of listening to music. Psychoanalytic Quarterly, 19, 84-85.

Naffah Neto, A. (2006). A pesquisa psicanalítica. Jornal de Psicanálise, 39(70), 279-288.

Nietzsche, F.W. (1992). Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras.

 

 

Endereço para correspondência
Alfredo Naffah Neto
R. Dr. Alceu de Campos Rodrigues, 309/73
Vila Olímpia
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E-mail: anaffah@giro.com.br

Ignácio Gerber
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Jardim Paulistano
01452-907 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3813-3683
E-mail: ignaciogerber@terra.com.br

 

 

* Edição: Jassanan Amoroso Dias Pastore e Marcella Monteiro de Souza e Silva. Conversa realizada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 2 de março de 2007.
** Psicanalista, professor titular da PUC-SP, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, e autor de vários artigos e livros sobre psicanálise e música, principalmente.
*** Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.