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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.44 São Paulo jun. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM I

 

Sartre, linguagem e psicanálise

 

Sartre, language and psychoanalysis

 

Camila Salles Gonçalves*

Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora trata da relação entre linguagem e psicanálise existencial na filosofia fenomenológica de Sartre e discute dificuldades que surgem quando se tenta abordar as teorias de Sartre a respeito da escrita, a partir de conceitos lingüísticos.

Palavras-chave: Eu. Linguagem. Palavra. Psicanálise existencial. Signo.


ABSTRACT

The author points out that there is a connection between language and existential psychoanalysis in Sartre’s phenomenological philosophy. She also discusses the difficulties found by a kind of approach that tries to explain Sartre’s theories of writing from the point of view of linguistic concepts.

Keywords: Ego. Language.Word. Existential Psychoanalysis. Sign.


 

 

Do décimo Colóquio Anual de Literatura Francesa, realizado em 1978, na universidade de Western Ontário (Canadá), resultou uma publicação denominada Sartre et la mise en signe. Dentre os autores que abordaram o tema da linguagem em Sartre, um deles afirmou constatar, “com surpresa”, que, na bibliografia que se refere às “funções da linguagem”, o pensamento de Jean-Paul Sartre “brilha pela ausência” (Issacharoff & Vilquin, 1982, p. 152). Mas não penso que indicar e comentar relações entre linguagem e psicanálise na filosofia de Sartre, como me disponho a fazer, vá nos conduzir a questões insignificantes.

Em seus textos filosóficos, Sartre parece não mostrar uma preocupação específica com a linguagem, nem relacionada com a filosofia da lógica, nem com a lingüística, que ainda não tinha invadido o teorizar psicanalítico, na época em que ele escreveu seus livros mais famosos. Foi admirador de Claude Lévi-Strauss, sem se debruçar sobre aquilo que a antropologia estrutural e a inspiração em Saussure ofereceram aos achados lacanianos. Em entrevista, publicada em Situações X (1976), disse que não se interessava por semiótica. Apesar de encontrarmos semelhanças com Lacan por toda a sua obra, que está, de diversos modos, comprometida com seu projeto de fundar uma psicanálise existencial, estas não decorrem de intercâmbio direto. Sem dúvida, em parte, têm origem nos ensinamentos de Kojève a respeito de Hegel, com os quais ambos tiveram contato, e que estão presentes nas contribuições que ambos trouxeram para a teoria psicanalítica. No caso de Sartre, sem dúvida, contribuições indiretas, como já apontei em outro lugar (Gonçalves, 2006, p. 53).

Sartre é autor de um projeto de psicanálise que, a meu ver, se realiza na biografia psicoanalítico-existencial de Gustave Flaubert, intitulada L’idiot de la famille (1971). Quando lhe perguntaram, na mesma entrevista, se a sua descrição do moi flaubertiano correspondia ao moi na teoria de Lacan, ele respondeu que, ao descrever a constituição psíquica de Flaubert, não pensara neste psicanalista e que não conhecia muito bem seu pensamento. Entretanto, admitiu: “Minha descrição não se distancia de suas concepções”. Depois, acrescentou:

Sabeis como concebo o moi – não mudei: é um objeto que está diante de nós. Isto é, o moi aparece para a reflexão quando ela unifica as consciências refletidas: há então um pólo de reflexão que chamo o moi, o moi transcendente e que é um quase-objeto. Flaubert quer que seu moi seja imaginário. (Sartre, 1976, p. 100).

A concepção que não mudou foi apresentada em A transcendência do ego (1936/1981). Não mudou e fez parte tanto de críticas à psicanálise freudiana quanto de esboços da psicanálise existencial que deveria vir a ser, segundo é anunciado em O ser e o nada (1943/1960). Nesta obra, encontramos a analítica do para-si (pour-soi). Para apresentar, de modo breve, o “para-si”, recorro a uma das comparações com o em-si, o ser das coisas: as coisas são inertes e compactas; são incapazes de abrigar o não-ser, coincidem consigo mesmas, são totalidades passivas. Oposta ao em-si, ou melhor, negação do em-si, a consciência, que é inseparável do para-si (com freqüência, Sartre usa os dois termos como sinônimos), “é uma descompressão de ser. Com efeito, é impossível defini-la como coincidindo consigo (avec soi)” (Sartre 1943/1960, p. 116).

Os dois livros que citei fundamentam-se na apropriação da idéia de “consciência” segundo Husserl, que implica um novo modo de estabelecer a relação entre consciência e objeto. O objeto não é mais concebido como aquilo que uma consciência vazia poria “para dentro” de si. Toda consciência é consciência (de) alguma coisa, não existe sem visar algo.Também não há na consciência,“lá dentro”, um ego a presidir suas operações. Um ego é, como outros, um objeto para o qual a consciência se abre, a que ela visa intencionalmente. Para Sartre, é preciso conceber uma consciência espontânea, “não tética” (não posicional de si mesma) de primeira ordem, um fluxo centrífugo que não se detém “para saber que sabe”.A consciência que pensa sobre a consciência é reflexiva, de segunda ordem. Retomando o “cogito” cartesiano, Je pense donc je suis, Sartre afirma que há um “cogito pré-reflexivo”, espontâneo. Pensar que penso é uma consciência “tética”, reflexiva. As consciências para as quais esta se abre são, pois, “consciências refletidas”. O moi imaginário de Flaubert pode ser entrevisto na seguinte passagem:

(...) descobrimos nele (Flaubert) essa constante que chamo “opção passiva” e que se caracteriza pela opção (vã) de sofrer sua imaginação. Em janeiro de 44, na seqüência de sua falsa morte1, a opção passiva radicalizou-se e a intenção de se submeter parece ter atingido seu objetivo: o imaginário impõe- se em sua pureza selvagem, isto é, em sua desordem (Sartre, 1971, p. 1896).

Este exemplo permite-nos entrever a linguagem da psicanálise sartriana e as descrições que possibilita, que devem muito ao fascínio por Husserl e por Freud. Considero estruturais, em O ser e o nada (1943/1960), as referências a Freud, a crítica de seus conceitos e a proposta de substituílos, no sentido de fazerem parte desta escrita, criada para desvendar o modo de ser da realidade humana. O livro, cujo subtítulo Ensaio de ontologia fenomenológica, nunca é demais relembrar, é composto pela narrativa filosófica do surgimento e das características do para-si, do ser que é consciência e existência. Prescindindo da linguagem atribuída a Freud, a psicanálise existencial encontraria fundamento na ontologia fenomenológica, para as análises descritivas e a compreensão dos perfis do para-si, que se caracteriza pela não-coincidência consigo mesmo, pela distância de si, pela falta e pelo desejo. Sartre considera inaceitáveis certas metáforas por meio das quais Freud se expressa, que fazem pressupor um modelo comum às ciências físicas. Dispõe-se a revelar a realidade humana por meio da linguagem que considera com esta compatível. Para ele, é preciso afastar “a linguagem e a mitologia coisista da psicanálise” (Sartre, 1943/1960, p. 91) e seu modo de interpretar “a ação humana como força física desencadeada dentro de um sistema” (Sartre, 1943/1960, p. 250).

Frases como estas fazem com que a teoria freudiana apareça sob uma forma tosca, submetida a uma espécie de redução ao absurdo, por meio da caricatura. Porém, Sartre também se mostra capaz de realizar uma crítica bem mais precisa, que encontra fundamento em análises de hipóteses. Paradoxalmente, o autor em que se baseia é Charles Sanders Peirce, criador da semiótica: “A hipótese do complexo de Édipo, como hipótese atômica; nada mais é do que uma ‘idéia experimental’, não se distingue, como diz Peirce, do conjunto de experiências que ela permite realizar e dos efeitos que permite prever” (Sartre, 1943/1960, p. 90).

Sartre procura cercar as hipóteses que atribui a Freud, de críticas exercidas a partir de inúmeros pontos de vista. Nestas, as funções da linguagem têm papel importante. Mas, a caminho de substituir a teoria freudiana por uma ontologia fenomenológica, não encontra facilidade o tempo todo. Em L’imaginaire (1940/1964), ele enfrenta a relação entre censura e linguagem cifrada dos sonhos, estabelecida por Freud, contrapondo a esta os rudimentos de uma abordagem fenomenológica: “O que caracteriza a consciência que sonha é que ela perdeu a própria noção de realidade e que ela é não tética, não reflete sobre si” (1940/1964, p. 213).

A consciência “está fascinada pelo sonho” e “perdeu seu ser-no-mundo e só o reencontrará ao despertar” (Sartre, 1940/1964, pp. 219-220). O filósofo pretende que esse inatingível da consciência que sonha constitua um de seus argumentos contra a dinâmica da censura e do recalque descritos por Freud, que, em O ser e o nada, é seu alvo principal. A meu ver, ao longo de sua obra, ele nunca deixou de se interessar pela produção do sonho e jamais avançou na descoberta de recursos para a sua interpretação.Mas há outras questões que quero levantar, em relação ao tema proposto.

Se deslocamos o foco da temática quase técnica das construções por contraposição do esboço de psicanálise, ainda há muito que percorrer nas concepções sartrianas de linguagem, na obra literária, de ensaio, de ficção e de crítica. Já se comentou em demasia o fato irônico de As palavras ser o título da autobiografia de Sartre e de esta ter sido vista por muitos como resultando da visão psicanalítica de um crítico tenaz de Freud. Não é com base em fatos como este que, para mim, tem sentido falar a respeito da relação entre psicanálise e linguagem na obra do escritor, uma vez que esta relação começa a tomar forma muito antes de ele dar à luz a própria história, romanceada, como não poderia deixar de ser. Antes de retomarmos a psicanálise, é preciso, porém, que vejamos um pouco daquilo que acontece quando os textos sartrianos são abordados a partir de pontos de vista informados pela lingüística.

No colóquio canadense, Timothy J. Reiss, em seu artigo “A matéria dos signos: linguagem e sociedade segundo Sartre”, apresenta sua leitura da maneira pela qual Sartre se refere a problemas situados no nível “que a lingüística saussuriana chamaria de nível do significante”. Seria uma maneira muito “impressionista”, ou seja, sem rigor, sem precisão. O autor expõe as ambigüidades que encontra em uma “teoria” (faz questão de pôr aspas) sartriana da linguagem e comenta: “Aquilo que interessa a ele não é exatamente o lado gramatical, sintáxico ou léxico etc”. Entende que o verdadeiro interesse de Sartre está naquilo “que se faz na prática social ou psicológica do discurso, é a maneira pela qual é utilizada a linguagem (le langage), é o jogo entre esse uso e as relações sociais, seu papel na produção de uma história humana, da qual ela é ao mesmo tempo o produto” (Issacharoff & Vilquin, 1982, p. 128).

Mesmo concordando com a segunda afirmação, constato que tomar um interesse tão amplo como eixo ou roteiro me levaria a comentar a filosofia de Sartre (ainda que só a filosofia) desde A imaginação (1936) até a Crítica da razão dialética (1960), antes de me deter em O idiota da família (1971). Por outro lado, devo assinalar que “o nível do significante” não brilha pela precisão, nem nas aulas de Saussure. Creio que a referência de “significante” pode ser vislumbrada nestas considerações:

Historicamente, e dependendo da maneira pela qual se lê F.de Saussure, entende-se por significante ora uma das grandezas constitutivas do signo mínimo (ou morfema) correspondente, na primeira aproximação do próprio Saussure, à “imagem acústica”, ora um plano da linguagem, considerado em seu conjunto e cobrindo com suas articulações a totalidade dos significados (Greimas & Courtés, 1989, p. 421).

Ainda que com pouca informação disponível, considero “indecidível” a questão de situar ou não o interesse de Sartre pela linguagem no nível do significante. Sem condições de entrar no campo da semiótica, ressalto em outro aquilo que Timothy J. Reiss vê como um grande problema. Ele atribui à teoria de Sartre a proposição segundo a qual a consciência individual precede la mise en signes, que tomo a liberdade de traduzir aqui por acesso ao universo dos signos. Tudo se passaria como se houvesse primeiro uma consciência (de) ..., que depois usaria a linguagem para se expressar. A consciência individual teria então que trabalhar a materialidade da língua, para dela arrancar suas palavras. O autor cita reflexões de Sartre, retiradas de Situações I (1947/2005), que apenas exemplifico: “O que quero exprimir, eu o sei, porque eu o sou sem intermediário. A linguagem pode me resistir me perder, mas jamais serei por ela enganado a não ser que eu queira” (Issacharoff & Vilquin, 1982, p. 130).

Creio que para nós, psicanalistas, a frase pode soar como uma profissão de fé contra o genial trabalho de Freud com relação ao “ato falho”, mas a questão do comentador é bem outra. Indaga de que modo é possível estudar a inserção da consciência individual no social, partindo desta interpretação:“ A idéia da anterioridade da consciência em relação à circulação de signos será como uma tara2 da obra inteira de Sartre” (Issacharoff & Vilquin, 1982, p. 131).

Tare, em francês, “tara” em português, significa, em ambas as línguas, o abatimento que se dá, por estimativa, ao peso de alguma coisa e, também, falha ou defeito, físico, moral ou intelectual. Quando fui buscar informação sobre a palavra, descobri que, no Sul da Índia, era o nome de uma moeda. Sem dúvida, o modo pelo qual Timothy J. Reiss faz circular seu juízo pode levar a discussões instigantes. Neste momento, apenas assinalo uma das conseqüências do contrapeso ou da patologia que ele diagnostica. Trata-se do falseamento da famosa noção de “engajamento”, utilizada por Sartre em suas considerações a respeito do papel do escritor. Assim, embora parecendo ir em direção a Bakhtin, “para quem a consciência individual seria um fato sócioideológico”, Sartre não conseguiria superar a ambigüidade de seus posicionamentos de princípio: “Ele vê o social como um lugar de troca semiótica, mas ele o separa” (Issacharoff & Vilquin, 1982, p. 132).

Não pretendo travar uma polêmica com o artigo citado, mesmo porque tomar em consideração suas idéias me permite indicar a repercussão de textos de Sartre em relação a questões da linguagem. Apenas observo que a anterioridade da consciência em relação à “circulação de signos” não constitui uma premissa que possa ser atribuída de forma indiscutível a teses do filósofo. A “anterioridade da consciência”, em Sartre, significa que nada precede a consciência, e é por isso que não pode haver um inconsciente primordial, muito menos uma repressão primordial (Urverdrängung). Mas, a asserção a respeito de a circulação de signos ser posterior ao surgimento da consciência, não me parece ponto pacífico, sobretudo quando levamos em conta o tema da alteridade, primeiro em O Ser e o nada e depois (bem depois) na Crítica da razão dialética.

É claro que Sartre não equacionou suas questões em termos de circulação de signos. O que me parece importante não deixar passar despercebido é o fato de o tema ser-para- si e ser-para-outrem ter um lugar central no Ensaio de ontologia fenomenológica. Cabe indagar se se pode afirmar que o ser para outrem pode ser situado antes ou depois do surgimento do ser-para-si, de seu ser lançado no mundo, sem motivo e sem necessidade. A resposta parece requerer uma exegese da obra de Sartre, para que se possa decidir se há um mundo, primeiro “sem” linguagem e depois “com”. Em segundo lugar, cabe perguntar se o batismo da realidade humana, com o nome pour soi, não é um fato lingüístico, pelo menos na história da filosofia.

Pour soi não é mera tradução de Dasein, termo heideggeriano que não contém sentido algum de soi. A insistência de Sartre no movimento espontâneo da consciência, na transcendência como eterno explodir para fora, não o liberou de estudar a relação do para-si com um si, ou seja, consigo, e com a existência de outrem. A ontologia deparou- se com o “nada” e com a “negação” e pôde descrever a falta (manque) que caracteriza a existência. Não iria se deter diante das implicações de a existência vir a ser a partir de um soi lançado no mundo.

Para, pelo menos, situar a dialética nas relações do para- si com outrem, destaco uma etapa dos desenvolvimentos da ontologia fenomenológica. Refiro-me àquela em que Sartre declara ser necessário encontrar um caminho para além de Husserl, que também teria cuidado de refutar o solipsismo, mostrando que “o recurso a outrem é condição indispensável da constituição de um mundo” (Sartre, 1943/1960, p. 288). É aqui que Hegel entra em cena, incorporado para a criação de um caminho que parece mais promissor que os de Kant e de Husserl, já que, ao tratar do conhecimento, estes filósofos conceberam uma instância unificadora, um Ego transcendental que Sartre também insiste em dispensar:

A única ligação que Husserl pode estabelecer entre meu ser e o de outrem é a do conhecimento; ele não conseguiria, pois, não mais que Kant, escapar ao solipsismo (...) a solução que Hegel dá ao problema, no primeiro volume da Fenomenologia do espírito, parecer-nos-á realizar um progresso importante em relação àquela que Husserl propõe (Sartre, 1943/1960, p. 291).

O movimento que esse progresso compreende é árduo e a apropriação do pensamento de Hegel pela filosofia sartriana é extremamente complexa. Porém não posso deixar de indicar que incursões descontínuas na obra de Hegel permitem a Sartre narrar momentos vividos pela consciência que também se transcenderá na direção do “cogito”, enquanto consciência reflexiva de pensar. Trata-se de uma narrativa filosófica que, em seu contexto, talvez seja equivalente à do ingresso no mundo dos signos (ou no simbólico lacaniano, talvez):

Longe de o problema do outro colocar-se a partir do cogito, é, ao contrário, a existência do outro que torna o cogito possível, como o momento abstrato em que o eu (moi) se apreende como objeto.Assim, o “momento”que Hegel nomeia como o ser para o outro é um estádio necessário da consciência de si; o caminho da interioridade passa pelo outro (Sartre, 1943/1960, p. 292).

Bem mais adiante, a teoria da existência de outrem, que pára no meio do caminho das apropriações da dialética do Senhor e do Escravo, dialética da consciência de si, é redimensionada por meio de interpretações, também parciais, do pensamento de Heidegger. É a partir do Mitsein, o ser-com outrem que se torna possível, para a ontologia fenomenológica, revelar o ser próprio de um sujeito: “Assim, a característica de ser da realidade humana é seu ser com os outros. Não se trata de um acaso; eu não sou antes, para que uma contingência me faça em seguida encontrar outrem: trata-se aqui de uma estrutura essencial de meu ser” (Sartre, 1943/1960, pp. 301-302).

Assim como a distância de si implica negação, se esta é equivalente a um écart primordial, esta separação ou afastamento está em toda a existência, que tem uma relação de “negação interna” com outrem e com o Outro. A consciência se transcende na direção de outrem, negando a si. Este movimento é inevitável. Sartre nos faz ver ainda que tanto a consciência que se refere a um eu quanto a consciência que tem interesse em seu reflexo propiciado por outra envolvem negação e busca de reconhecimento. Estas são descritas por meio de uma certa utilização da dialética hegeliana: “Por essa necessidade, em que eu sou, de não ser objeto para mim senão lá, no Outro, eu devo obter do outro o reconhecimento de meu ser” (Sartre, 1943/1960, p. 292).

Detenhamo-nos, ainda, nesta apresentação da dependência em que se encontra a consciência de si:“Mas se minha consciência para si deve ser mediada em relação a si própria por uma outra consciência, seu ser-para-si e, por conseguinte, seu ser em geral, depende do outro” (Sartre, 1943/1960, p. 292).

Estamos muito longe, ao que parece, do universo da lingüística, apesar de só a linguagem abrir caminho para a analítica do si. Presenciamos usos da linguagem filosófica, imbricados com a língua (desde o sui latino), que possibilitam o inventário, sempre incompleto, dos perfis da realidade humana, constituída “por (e como) uma totalidade inacabada de negações”. As análises da negação têm um ponto culminante, para nós psicanalistas, nas definições correlatas de “falta” e de “desejo”. Existe um tipo de negação que estabelece uma relação interna entre aquilo que se nega e aquilo em relação a que ele é negado. A negação interna primitiva é “falta” (manque). Esta noção integra os esclarecimentos a respeito da presença a e da distância de si da consciência. O para si vive a epopéia da diáspora, voltado para alcançar uma totalidade irrealizável. É a apropriação da linguagem de Hegel que, em O Ser e o nada, permite esta síntese inesquecível: “Que a realidade humana seja falta (manque), a existência do desejo (désir) como fato humano seria suficiente para prová-lo” (Sartre, 1943/1960, p. 130).

Devo agora lembrar que nomear pour-soi a realidade humana tem conseqüências. Sartre nos mostra que é preciso estudar o sentido do si (soi) da consciência. A rigor, o soi só pode ocorrer no pour-soi. No nome en-soi, o uso é apenas analógico. O soi é reflexivo, corresponde ao sui. Antes de esclarecer seu sentido ontológico, Sartre indica o sentido lingüístico ou, pelo menos, gramatical: o sui é um “refletido” (réflechi), segundo a sintaxe do latim e as distinções da gramática. O soi remete ao sujeito, mas não é o sujeito. É uma espécie de marca que indica a relação do sujeito consigo mesmo, que não pode ser de perfeita coincidência: o soi “reenvia”, mas reenvia precisamente ao sujeito. Indica uma relação do sujeito com ele mesmo e essa relação é precisamente uma dualidade, mas uma dualidade particular “porque exige símbolos verbais particulares” (Sartre, 1943/1960, p. 119).

Para não deixar de indicar a imbricação da ontologia fenomenológica com a literatura, cito o prefácio, intitulado “Sartre e o destino histórico do ensaio”, que Bento Prado Jr. escreveu para uma tradução recente de Situações I (2005). Um dos ensaios que comenta é o que contém a crítica de Sartre a François Mauriac e que é encerrado, como nos faz notar, com uma “frase fulminante”. É a seguinte: “Deus não é um artista; Mauriac tampouco”. O filósofo Bento Prado, nessa verdadeira aula por escrito, apresenta e situa questões filosóficas e de concepção do gênero romanesco. A respeito de Bergson e sua noção de “duração” serem apresentados por Sartre como opostos àquilo que é seu alvo, ele comenta:

Opostos, aqui, à cegueira de Mauriac para a temporalidade e para a natureza da narrativa romanesca. Cegueira que está ligada a uma outra: aquela diante do abismo que separa radicalmente o ser-para-si do ser-para-outrem. Se o “inferno é o Outro”, é porque seu olhar me objetiva, roubando-me o meu ser-para-mim, e nenhuma ponte pode permitir a passagem de uma ótica para a outra. Deus, é claro, poderia ver-me como me vejo e, ao mesmo tempo, como sou visto (digamos “behavioristicamente”) por outrem. Mas, justamente, Deus não é artista... (Sartre, 2005, p. 21).

Alguns entendem que, na obra sartriana, um campo é o de teorias a respeito da escrita, dos seus objetivos, daquilo a que ela visa, daquilo que tem de específico em seu engajamento e compromisso com a história.Haveria ainda subdivisões entre ensaios, ficção, poesia. Outro campo seria o da filosofia fenomenológico existencial, outro seria o da filosofia da história e outro, o da linguagem. Isto sem falar na crítica literária, na crítica de artes plásticas, em ensaios jornalísticos. É impressionante a maneira pela qual um único parágrafo de Bento Prado Jr, ainda que citado em parte, torna evidente a inutilidade de classificações e divisões. Ele nos mostra algo do modo de ser do Sartre ensaísta, daquilo com que o escritor Sartre quer romper em seus romances e daquilo que ele busca com sua técnica romanesca. Ao mesmo tempo, faz-nos acompanhar o filósofo Sartre em sua arte de descrever o drama do para-si diante da opacidade da consciência de outrem.

Retomo agora, finalmente, a colaboração do participante do Congresso do Canadá que citei no início, Alain Goldschläger, que é quem chama a atenção para o fato de Sartre brilhar pela ausência em certa bibliografia especializada. Em seu artigo, “Jean-Paul Sartre: uma filosofia da linguagem?”, ele nos diz que, a partir de uma certa época, “o estudo do signo lingüístico se torna o fundamento primeiro de toda reflexão filosófica” (Issacharoff & Vilquin, 1982, p. 152). Esta concepção, para ele, resulta da postulação da linguagem como o veículo privilegiado da interação entre o homem e o mundo. Ainda assim, propõe um juízo mais nuancé a respeito da suposta exclusão do pensamento de Sartre do campo dos estudos sobre as funções da linguagem. Reconhece então: “Sartre é um filósofo, um literato e um pensador da ontologia. O escritor não se distingue de modo algum do metafísico e a questão de sua reflexão filosófica sobre a linguagem é indissociável de suas tomadas de posição enquanto homem de letras” (p. 153).

Entendendo que Sartre se inclina mais para a expressão literária do que para o fato lingüístico, faz leituras de seus textos que tem belos momentos. Por exemplo, retoma as vivências da criança de As palavras: “O menino Sartre leva uma existência de poeta, pois ‘a linguagem toda é, para ele (o poeta) O Espelho do mundo’” (p. 154).

Devo lembrar ainda que, em Sartre, o uso criativo da palavra está relacionado com suas análises da consciência imaginante”, que ele distingue da percepção. A consciência que imagina tem o poder, comparado ao da magia, de convocar um universo ausente. É a especificidade desta consciência que encontramos em boa parte dos ensaios de Sartre a respeito da escrita. Goldschläger chama a nossa atenção também para a maneira pela qual Sartre fala do trabalho poético, descrevendo “o processo de criação da realidade pela natureza mesma da palavra que a representa (peint)” (Issacharoff & Vilquin, 1982, p. 155).Mas pensa que a análise sartriana da função imaginária equivale a uma “tradução existencialista da apreensão de um universo humano, isto é, o movimento que vai do moi ao outro, do moi ao objeto” (Issacharoff & Vilquin, 1982, p.156). Não creio que valha a pena criar caso com a imprecisão do vocabulário do conferencista, que, ao falar em moi deste modo, desconhece uma espécie de ato inaugural da filosofia sartriana, o de lançar para fora esse moi, esse pedregulho, como escreveu Bento Prado. Acho que é importante tomar em consideração algo das críticas de Goldschläger:

O poeta aceita integrar a ambigüidade da linguagem em sua produção poética, ao passo que o prosador procura aniquilá- la ou, pelo menos, tenta fazer esquecer a inadequação do mundo e da palavra. (...) A linguagem torna-se auto-suficiente, a-referencial e desprezando a factualidade das coisas. (...) a consciência imaginante vive num vácuo e põe seu objeto como um nada (Issacharoff & Vilquin, 1982, pp. 155-156).

O comentador aponta para a impossibilidade de a imaginação permitir ao escritor um reconhecimento do mundo. Jogando com o vocabulário, afirma que “a imagem é o signo” (p. 156). Com efeito, falando grosso modo, é possível assinalar que certas teorias de Sartre permitem, a alguns, entender que o poeta faz da imagem e do signo o que quer e que o prosador tem que enfrentar a resistência da linguagem. Os dois participantes do congresso de Ontário, trazidos aqui para exemplificar algo do que pode ser pensado a respeito da linguagem, na filosofia e na literatura de Sartre, permitem-nos identificar impasses difíceis de transpor, ainda que suas interpretações sejam discutíveis. Ambos procuram, cada um a seu modo, compreender a superação do imaginário. Bento Prado Jr. admite que críticas, feitas por outros autores, de Merleau-Ponty a Henri Faure, às análises da imaginação, realizadas pela primeira fenomenologia sartriana, procedem, no que diz respeito “à pobreza essencial da imagem” (Sartre, 2005, p. 26). Por minha vez, indiquei de que maneira, para o próprio Sartre, a consciência que sonha perde contato com o mundo e a possibilidade de nele ser reencontrada. Penso que Timothy J. Reiss e Alain Goldschläger, cada um com seu grau de crença, vêem a consciência que imagina de um modo que considero semelhante ao da consciência que sonha, que perdeu o acesso à realidade.

Creio que o caminho sartriano para eliminar impasses como os denunciados pelos autores que tratam da linguagem, impedindo-os na raiz ou procurando soluções a posteriori, está traçado em O ser e o nada. É preciso reconhecer a existência deste caminho, para que se não levantem falsos problemas. No entanto, por outro lado, é preciso admitir que a psicanálise do primeiro Sartre não encontra o trabalho do sonho e que a fenomenologia não dá conta da relação da consciência com o movimento da História, como explicitei em outro texto (Gonçalves, 1966).

A Crítica da razão dialética dedicou-se a examinar as condições de possibilidade de a razão investigar a História em curso e integrou uma psicanálise revista, como ciência auxiliar do método. Esta segunda psicanálise e a primeira, esboçada em O ser e o nada, produziram O idiota da família. Ganhamos um monumento à psicanáliseexistencial, que não é bloco inerte, se lemos pelo menos algumas de suas mais de mil páginas. Ensinam-nos sobre o que é possível dizer de um homem, de seu mundo e como expressá-lo.Mas, sem linguagem, perderam-se os sentidos do sonho.

 

Referências

Goldschläger, A. (1982). Jean-Paul Sartre: Une philosophie du langage? In M. Issacharoff & J.-C.Vilquin, Sartre et la mise en signe. (pp. 152-163). Paris: Klincksiec & Cie.        [ Links ]

Gonçalves, C. G. (1996). História e desilusão na psicanálise de J.-P. Sartre. São Paulo: Nova Alexandria.

Gonçalves, C. G. (2006). Sartre e a Psicanálise contemporânea. Revista Dois Pontos, 3(2), 53-67.

Greimas, A. J. & Courtés, J. (1989). Dicionário de semiótica. São Paulo: Cultrix.

Issacharoff, M. & Vilquin, J.-C. (1982). Sartre et la mise en signe. Paris: Klincksiec & Cie.

Issacharoff, M. & Vilquin, J.-C. (1982). Sartre et la mise en signe. Paris: Klincksiec & Cie.

Reiss, T. J. (1982). La matière des signes: Langage et société selon Sartre. In M. Issacharoff & J.-C.Vilquin, Sartre et la mise en signe (pp. 127-151). Paris: Klincksiec & Cie.

Sartre, J.-P. (1960). L’être et le néant. Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1943).

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Sartre, J.-P. (1976). Politique et autobiographie: Situations X. Paris: Gallimard.

Sartre, J.-P. (1981). La transcendance de l’ego. Paris: Vrin. (Trabalho original publicado em 1936).

Sartre, J.-P. (1980). Critique de la raison dialectique. Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1960).

Sartre, J.-P. (2005). Situações I. São Paulo: CosacNaify. (Trabalho original publicado em 1947).

 

 

Endereço para correspondência
Camila Salles Gonçalves
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* Professora de filosofia, doutora pela USP, psicóloga, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e do Conselho Editorial de Percurso/Revista de Psicanálise. Autora de Desilusão e história na psicanálise de Jean-Paul Sartre.