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Ide

versión impresa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.30 n.44 São Paulo jun. 2007

 

EM PAUTA - LINGUAGEM I

 

Os dilemas da língua humana: fragmentação, composição, concentração

 

The dilemma of human language: fragmentation, composition and concentration

 

 

Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O surgimento no ser humano da função de linguagem e o desenvolvimento das línguas são fenômenos que podem ser analisados correlativamente. Tendo como pano de fundo as “necessidades lingüísticas” do processo psicanalítico, este artigo pretende sugerir que alguns mecanismos básicos comandam tanto a evolução das línguas como a criação de uma linguagem particular entre analista e analisando. Três desses mecanismos são apresentados: a fragmentação, a composição e a concentração. Para ilustrá-los, é lembrada a questão da origem das línguas, o surgimento das línguas crioulas, a concentração lingüística no mundo globalizado e a referência sucinta a uma situação clínica.

Palavras-chave: Composição. Concentração. Fragmentação. Linguagem e língua.


ABSTRACT

The outgrowth in the human being of a speech function and the development of different tongues are phenomena to be analysed concurrently. Taking the “linguistic needs” of the psychoanalytical process as background, this paper intends to suggest that some basic mechanisms master the evolution of tongues and also the creation of the particular language between analyst and analysand. Three mechanisms are introduced: fragmentation, composition and concentration. To illustrate them, I mention the examples of the origin of tongues, the birth of pidgin tongues, the concentration of tongues in a globalized world and a brief reference to a clinical situation.

Keywords: Composition. Concentration. Fragmentation. Language and tongue.


 

 

Os lingüistas que, no rastro do mito bíblico de Babel, propugnam pela existência de uma língua-mãe surgida há cerca de 80 mil anos no seio de uma população africana de Homo erectus são acusados por seus críticos de cultivarem o “mito do unitarismo”, ou seja, de estarem impregnados de uma crença quase religiosa de que o homem teria sido criado a partir de um evento único.

Alheios a seus opositores, esses lingüistas, comandados por Joseph Greenberg, de Stanford, e por seu pupilo Merrit Ruhlen, co-autor com John Bengtson do livro A origem das línguas, publicado em 1994, afirmam já ter rastreado 27 protolínguas, por eles distribuídas num modelo de árvore genealógica em que, quanto mais retroagimos no tempo nos aproximando das origens, mais as similitudes lingüísticas aumentam. O termo mais comum na língua protomundial, como, aliás, também na língua atual, é a palavra ngai – designativa de 1 –, seguida da palavra dual– referente a 2 –, e que posteriormente se transformou numa categoria gramatical ligada a olhos, braços, pernas e tudo o mais que venha em pares. Dentre as palavras reconstruídas com maior rigor estão aquelas que expressam as partes do corpo, como olho, ouvido, dedo, coração e mesmo nihuva e hivina, que designam ao mesmo tempo sangue, respiração e vida. Curiosamente, não detectaram nas protolínguas termos específicos para designar as emoções, o que não quer dizer que nossos ancestrais não as possuíssem, mas, talvez, que simplesmente não tivessem necessidade de expressá-las.

A linguagem, como meio por excelência da atividade humana, reflete continuamente a efervescência de criatividade que perpassa o esforço expressivo de todas as camadas sociais. A moderna metrópole transformou-se numa imensa caixa de ressonância cacofônica, já que, abaixo da superficialidade bem-comportada da língua oficial, ecoa o burburinho caótico do entrechoque dos dialetos, dos patuás, dos crioulos e das falas macarrônicas. Além disso, a língua, como todo organismo vivo, está permanentemente se renovando ou adulterando: palavras advindas de revoluções tecnológicas, como “deletar”, impõem-se a nosso vocabulário; expressões estrangeiras, como sale, desbancam o produto nacional; exclamações ágeis, como “Oi!”, passam a subentender a incompreensão; tribos específicas, como a dos malandros, cunham gírias como “travecos” para designar com ironia a categoria dos travestis; neologismos, como “mensalão”, servem-se de uma estridência onomatopaica para denunciar os meandros da corrupção. Como vemos, a tendência é agilizar, simplificar e objetivar, trazendo consigo o risco do monossilabismo, da contração taquigráfica, em suma, da rarefação qualitativa.

Para nós psicanalistas, no entanto, essa confusão não deveria surpreender, caso a consideremos como a ampliação pública daquilo que se passa no espaço privado da mente humana, este cadinho que assume a tarefa hercúlea de viabilizar o convívio de impulsos primitivos com as exigências de contenção e organização da vida civilizada.

Sugestivamente, se lançarmos um olhar panorâmico sobre o debate atual concernente à origem e à evolução das línguas, veremos que as teorias propostas encerram três categorias básicas de mecanismos: fragmentação, composição e concentração.

Antes de prosseguirmos, porém, é preciso assinalar a diferença entre “função de linguagem” e “língua”. A mística criacionista concentra-se, naturalmente, no surgimento da Palavra Divina inaugural, o Verbo, gerado no eterno silêncio (como nos lembra Santo Agostinho), para dar ser à matéria que iria formar o Universo, aí incluídas as línguas. A perspectiva científica, entretanto, tende a detectar, no rastro evolucionista, o momento mágico em que as mutações genéticas, as alterações anatômicas, as coerções relacionais, ou o que sejam, instituíram, no ser humano, a capacidade de dominar a utilização de signos e símbolos, precursora da linguagem e das línguas.

 

Fragmentação

Há cerca de 80 mil anos estima-se que nossos ancestrais, o Homo sapiens, não passavam de alguns milhares de indivíduos, provavelmente habitando o Leste da África ou o Oriente Médio. Uma indagação fascinante se nos impõe: será que eles falavam a mesma língua? De acordo com a tese do monogeneticismo, sim; já a do poligeneticismo sugere que eles meramente compartilhavam a faculdade da linguagem, a qual só se concretizou em línguas autônomas na medida em que os diferentes grupos foram emigrando e se dispersando.

Desde a década de 1980 a lingüística histórica, tanto a diacrônica como a evolutiva, vem estudando a evolução das línguas pelo método da gramática comparativa, em que se analisam as similaridades formais entre as línguas no nível sonoro (fonética), do significado (semântica), das relações dos sons com os enunciados (fonologia), das formas das palavras e de gramáticas (morfologia), do vocabulário (lexicologia), e assim por diante.

Assim, como sabemos, a língua falada no Império Romano serviu de matriz para várias línguas européias como o romeno, o português, o italiano, o espanhol e o francês. Fazendo o rastreamento de palavras aparentadas como “oito”, ocho, otto ou mère, “mãe”, mother, mutter, madre, os lingüistas vão elaborando árvores genealógicas (Shevoroshkin, 1990) e conseguem, desse modo, detectar diferentes protolínguas, como o teutônio, o celta, o báltico, o eslavo, o índico e o iraniano. Esse conjunto, por exemplo, constitui a família lingüística indo-européia, descendente de uma linguagem ancestral que remonta a 8 mil anos.

Lastreados em estudos arqueológicos e genéticos, os lingüistas têm buscado montar o quebra-cabeça final, aquele que, encaixando o nostrático (14 mil anos) com troncos primitivos da África, do Sudeste da Ásia, da Austrália e das Américas, consiga nos remeter aos primórdios da língua humana há cerca de 100 mil anos, ou mesmo às suas origens míticas na linguagem de Babel, nascedouro de todas as línguas modernas.

Um dos primeiros lingüistas a codificar as leis da mudança lingüística foi Jacob Grimm (que se tornou famoso, no entanto, por ser co-autor de contos de fadas como o da Cinderela e o da Branca de Neve), ao fazer um cuidadoso estudo comparativo entre o som de palavras germânicas e o som de palavras cognatas de outras línguas indo-européias.

O nostrático começou a fragmentar-se em dialetos e línguas-filhas há cerca de 13 mil anos e, após dois milênios, a protolíngua afro-asiática já era falada na Síria e na Palestina por um povo que os arqueólogos identificaram como os natúfios. Ao fazer um inventário de seu léxico, descobriram que eram avançados: construíram fortificações de pedra, cultivavam a terra, criavam gado e caçavam com arco e flecha, tecnologias desconhecidas dos nostráticos. Além disso, os natúfios desenvolveram práticas de mercado, já que possuíam palavras para “comprar”, “vender”, “preço” e diferenciavam os ricos, que possuíam w-s-r (ou coisas de valor), daqueles que roubavam (s-r-kk)1 e, até, do grupo que penhorava objetos roubados para viver.

Outras protolinguagens, fora do filo nostrático, vêm sendo descobertas. É o caso do norte-caucasiano, identificada na década de 1970 pelo lingüista russo Starostin, e que gerou tanto o etrusco, falado na Itália há 2500 anos, como o sumério surgido há 5 mil anos na Mesopotâmia, e considerada a primeira linguagem escrita de que se tem notícia. O enclave basco, que apresenta uma natureza diferente da de seus vizinhos românicos, parece ser uma ramificação do norte-caucasiano migrada há 4 mil anos da Ásia Menor.

Na década de 1980, Greenberg propôs que a maior parte das línguas nativas da América do Norte pertencia ao filo ameríndio, comprovando a origem comum de termos aparentemente díspares como “fezes”, “noite” e “grama”. Na sua avaliação, os três termos derivavam-se da palavra ameríndia que designava “sujeira”: com o tempo, a palavra passou a significar “excremento”, depois, “escuro” e subseqüentemente assumiu conotações colorísticas, como “negro” (por referência à noite), “azul” ou “verde” (cor de grama).

O consenso gradual dos estudiosos é de que as protolinguagens são inter-relacionadas, como atestado, por exemplo, se compararmos a palavra kuna usada pelo ameríndio para referir-se à “mulher”, o nostrático kuni, o tupi-guarani cunhã, ou mesmo um termo moderno como queen (“rainha”).

Com a ajuda de programas de computador, os lingüistas agora podem comparar cognatos de palavras como “dente” – o congo-saárico nigi, o austro-asiático gini, o sino- caucasiano gin, os nostráticos nigi e gini (predecessores do inglês nag e gnaw, ou seja, “atormentar” ou “resmungar” e “morder”), e proceder à reconstrução da língua-mãe, a protomundial.

Deste modo, curiosos parentescos vão sendo estabelecidos: o latim desponta como língua-mãe do francês; o polonês, como língua-filha do eslavo ocidental; o escocês e o irlandês como línguas-irmãs de mãe gaulesa, assim como o iraniano seria primo do indiano.

 

Dúvidas sobre a língua-mãe

Ruhlen e Bengtson, como já vimos, utilizaram o método do “relógio lingüístico”, ou seja, os conhecimentos sobre a evolução temporal das línguas, para elaborar uma classificação retroativa de raízes protolingüísticas anteriores a 5500 anos, data dos primeiros registros escritos conhecidos.

Vários pesquisadores, no entanto, têm se mostrado céticos quanto à veracidade de suas conclusões. Jean-Louis Boë, do Institut de la Comunication Parlé, de Grenoble, alerta sobre falhas na metodologia usada, por exemplo, de forçarem as aproximações semânticas (o termo que designa o “dedo” àquele para o número 1) ou fonéticas (equivalência dos sons usados para designar “b”, “p” e “m”). Efetuando uma análise probabilística dessas aproximações a partir de modelos estatísticos, ele concluiu ser 100% a chance de os resultados serem adulterados para corroborar as conclusões desejadas.

Além de ser intuitiva, a teoria da língua-mãe se afina com os estudos recentes sobre a genética das populações que apóiam a teoria da Eva africana, formulada em 1987, segundo a qual um pequeno grupo de Homo sapiens teria conquistado o planeta saindo da África num momento entre 100 mil e 40 mil anos; as teorias de Chomsky propõem que a espécie humana teria se originado a partir de uma mutação genética ocorrida há cerca de 100 mil anos e produtora de um cérebro com capacidade de linguagem.

Os dados arqueológicos, porém, parecem não sustentá- las. Francisco d’Errico, do Instituto de Pré-História de Bordeaux, com base no estudo de adereços, pinturas rupestres e uso de pigmentos, afiança que se de fato tivesse havido uma tal mutação súbita, ela teria deixado marcas arqueológicas incontestes, que nunca foram encontradas. Para Jean-Paul Demoule, arqueólogo especialista em línguas indo-européias do Centre National de Recherche Scientifique (CNRS), as semelhanças entre as línguas decorreriam dos múltiplos intercâmbios ocorridos no curso da evolução humana, ou então do puro acaso, como se pode exemplificar por meio do fato de encontrarmos a raiz teo para designar as divindades tanto dos gregos antigos como dos astecas na América.

A maior parte dos lingüistas contemporâneos parece acreditar que as línguas humanas compartilham não necessariamente uma origem comum, mas sim uma base cognitiva comum sobre a qual se assentaram “estruturas secundárias” sob influência do meio sociocultural: isso inclusive explicaria os “universais da linguagem”, como a organização das frases em sujeito-verbo-complemento ou a localização da marca de plural ao final das palavras.

Por outro lado, os cientistas cognitivos têm desenvolvido modelos teóricos em sua busca dos mecanismos cognitivos subjacentes às aptidões humanas elaboradas, como o raciocínio, a aprendizagem ou a linguagem. Para validá-los, recorrem aos conhecimentos de inteligência artificial e afirmam ter conseguido uma proeza notável: observar o nascimento de uma nova língua a partir da interação entre robôs.

 

Geração espontânea das línguas: acaso e necessidade

Desde 1999 Luc Steels coordena um projeto no Sony Computer Science Laboratory de Paris utilizando os Aibos, minirrobôs comercializados pela Sony dotados de dispositivos eletrônicos de locomoção, visão e emissão sonora, e nos quais os pesquisadores inseriram três tipos de potencialidades:

1. Fracionar a realidade visual criando palavras para descrever as frações.

2. Gerar aleatoriamente palavras e regras gramaticais ao depararem com situações novas.

3. Harmonizar permanentemente as habilidades adquiridas com aquelas de seus pares.

Fazendo uma bola se movimentar repetidamente entre dois Aibos, verificou-se que, aos poucos, eles conseguem produzir frases como pugiza titelu, ladole gugita e remibu vocuna votozu fuporvi, traduzidas como “A bola parou à minha esquerda”, “A bola está rolando na sua frente” e “A bola rola da sua esquerda para a minha direita”. Ou seja, rápida e aleatoriamente, os robôs criaram uma língua do nada, já que não receberam nenhuma memória contendo palavras ou regras gramaticais.

A transposição desses resultados para os grupos humanos estava, contudo, na dependência de que algo similar pudesse ter ocorrido em algum caso particular: é o que tem sido descrito pela lingüista americana Judy Kegl em centros para crianças surdas, criados na década de 1980 na Nicarágua. Essas crianças, às quais nenhuma língua tinha sido previamente ensinada, foram reunidas em tais centros mostrando- se refratárias às várias tentativas oficiais de lhes ensinar métodos de comunicação: surpreendentemente, então, elas criaram, entre si, uma língua totalmente nova, empregando um elenco de sinais.

São fatos que evidentemente transformam o acaso e a necessidade em elementos fundamentais na geração de uma língua, comprometendo ainda mais a idéia de uma língua-mãe.

 

Composição

Não é sem motivo que a reação dos derrotados na guerra, na política, e mesmo no amor, oscila entre a revolta radical, o adesismo interesseiro e a composição realista, já que todo choque de alteridade é sempre uma experiência emocionalmente explosiva.

No campo lingüístico, o exemplo mais significativo dessa questão nos é dado pelo crioulo (em certos contextos, também denominado pidgin ou patuá), termo que a partir do século XVI passou a designar tudo aquilo nascido em terras colonizadas.Atualmente o termo evoca as línguas improvisadas faladas por algumas dezenas de milhões de pessoas em geral em ilhas do Caribe ou do Índico, como Reunião, Guadalupe,Martinica, Cabo Verde e Haiti.

Os crioulistas de modo geral o entendem como um fenômeno sociolingüístico, devido aos contatos interlingüísticos múltiplos conseqüentes das emigrações. Mais especificamente, os escravos ou trabalhadores oriundos da África ou da Ásia, ao se confrontarem com a língua dos colonizadores, apropriavam-se sobretudo dos sons de suas palavras, orquestrando-os a partir das lógicas semânticas e gramaticais de suas línguas de origem. Os locutores se orientam mais pelo contexto do que pela sintaxe, os verbos com freqüência são omitidos, falta nas frases o encadeamento propiciado por conjunções ou proposições relativas: como resultado, as palavras com funções gramaticais vão desaparecendo do léxico.

Tivemos em nosso seio, no início do século passado, um caso muito particular de composição, através da construção de uma língua macarrônica ítalo-paulistana, ou seja, a mistura intencional e literária de duas línguas com fins parodísticos. De fato, desde 1911 as páginas de um folhetim chamado O pirralho, fundado por Oswald de Andrade, abrigaram um personagem autodenominado Juó Bananére (paródia de João Bananeira, personagem popular na época), que se apresentava como “poeta, barbieri e giurnaliste”.

Graças ao excelente estudo realizado em 1996 por Cristina Fonseca, temos acesso à dimensão histórica daquele que já fora considerado, por importantes ensaístas como Otto Maria Carpeaux e Antônio de Alcântara Machado, o mais importante pré-modernista brasileiro, por utilizar, já naquela época, recursos expressivos que mais tarde seriam usados pelos dadaístas e futuristas, como parte de uma crítica sociopolítico-literária ágil e contundente.

Juó Bananére era, na realidade, o alter ego do engenheiro Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (1892- 1933), personalidade circunspecta e comedida na vida pessoal, que encontrou no personagem caricato um porta-voz clownesco do recém-surgido proletariado urbano de imigrantes que estava à mercê do establisment aristocrático e conservador. Em 1915, foi demitido de O pirralho, em função das sátiras dirigidas a Olavo Bilac, mas, naquele mesmo ano, publicou La divina increnca, sua famosa paródia aos poderosos de plantão; escreveu ainda várias comédias teatrais e participou da fundação dos tablóides O queixoso (1915), Vespa (1916), Diário do Abax’o Piques (1933), tendo falecido prematuramente aos 41 anos.

Em conjunto com o chargista Voltolino, Alexandre/Bananére valeu-se de soluções gráficas inovadoras, abusando de maiúsculas e minúsculas, do itálico, da distorção espacial das frases, tornando-se um caricaturista verbal, o ator de uma língua-linguagem que parodiava uma estranha “música da cidade”, feita de cacofonias, onomatopéias e paranomásias.Usava com freqüência soluções minimalistas para compor suas blagues, grafava “Ri Barbosa” em vez de “Rui Barbosa”, alterava partículas fônicas para adulterar o sentido (substituindo, por exemplo, “cheguei” por “xiguê”, evocando assim “xinguei”, usando “arma” no lugar de “alma”, debochando do parnasiano “me amaste”, através da contração “m’amasti”, no sentido de mamar).

Nas “Cartas d’ Abax’o Pigues” de 13-7-1912, presente no nº 49 de O pirralho, Juó Bananére manifestou sinteticamente sua concepção da ortografia moderna:

A artograffia muderna é una/ maniera de scrivê, chi a gentil/ scrive uguali come dice. Per insempio:/ - si a genti dice Capitó,/ scrive kapitó;/ si si dice Alengaro, si scrive Lenkaro;/ si si dice dice, non si dice dice,/ ma si dice ditche.

A estrutura singular de La divina increnca recorre a uma alteração do discurso (tanto em prosa como em verso) e, a seguir, a uma alteração da palavra, causando um efeito de estilhaçamento estilístico e de estropiamento das palavras que formam a frase, modificando sua denotação e, conseqüentemente, sua conotação. Um bom exemplo disso encontramos na paródia de “Nel mezzo del Camin...” de Olavo Bilac, que jocosamente Bananére intitula “Amore co amore si paga”: apesar de manter a estrutura do soneto, era na troca dos termos por palavras vulgares que se obtinha a denúncia dos truques teatrais do parnasianismo.Dizia Bilac:

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha,
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...
Bananére repete, à sua maneira plebéia:
Xiguê, xigaste! Vigna afatigada i triste
I triste i afatigada io vigna;
Tu tigna a arma povolada di sogno,
I a arma povolada di sogno io tigna.

Na paródia bananérica dedicada “P’ra migna namurada”, lemos:

“Amore co amore si paga”
Xiguê, xigaste! Vigna afatigada i triste
I triste i afatigada io vigna;
Tu tigna a arma povolada di sogno,
I a arma povolada di sogno io tigna.
Ti amê, m’amasti! Bunitigno io éra
I tu tambê era bunitigna;
Tu tigna uma garigna di féra
E io di féra tigna uma garigna.
Uma veiz ti begiê a linda mó,
I a migna tambê vucê begió.
Vucê mi apisô nu pé, e io non pisê no da signora.
Moltos abbraccio mi deu vucê,
Moltos abbraccio io tambê ti dê.
U fóra vucê mi deu, e io tambê ti dê u fóra.

Esse aperitivo “macarrônico” teve a função primordial de despertar o apetite do leitor, estimulando-o à leitura de Juó Bananére: o abuso em blague, que, de brinde, vem acompanhado pela reprodução integral de La divina increnca.

 

Concentração

Dois fenômenos concomitantes interferem atualmente no destino das línguas. Na esfera geoeconômica, a globalização, ao obrigar os comerciantes cada vez mais a falarem uma língua comum, aumenta a taxa de aquisição de uma segunda língua, concentrando por outro lado a prevalência em torno dos países hegemônicos. Na esfera lingüística estrita, estima-se que cerca de 90% das 7 mil línguas hoje existentes estão ameaçadas de extinção até 2100 por falta de locutores.

De fato, a curva de extinção das línguas a partir de 1500 (cerca de 14 mil) vem mantendo um perfil de queda livre (em 2006 só sobreviviam 6912 delas), ou seja, às nossas preocupações sobre o aquecimento global e a escassez de água, deveríamos acrescentar pelo menos uma séria atenção à redistribuição global das línguas.

Das línguas atuais, 95% são faladas somente por 6% da população mundial, e cerca de 1900 delas são utilizadas por menos de mil locutores. Na medida em que as línguas vão se enfraquecendo, o grupo crescente dos “prestes a ficar sem língua” será forçado a adotar aquelas que são dominantes, como o inglês, o mandarim, o árabe, o espanhol ou o híndi, que hoje representam 40% das línguas maternas faladas pela humanidade.

A queda dos impérios, por exemplo, afeta inevitavelmente a vida das línguas, como atestado pelo desaparecimento do latim a partir do século VI, quando se deu a conquista do Império Romano pelos povos germânicos. Existe um risco real de chegarmos a uma concentração lingüística extrema capaz de ameaçar a diversidade cultural essencial da espécie humana? Para os especialistas, isso é pouco provável, considerando-se que ainda existem 1300 línguas faladas por populações acima de 100 mil pessoas, e também porque as línguas de grande difusão podem se tornar o viveiro de diversificações futuras. Não é, afinal de contas, a evolução que está sofrendo o inglês “britânico” em relação a suas variantes “americana” e “australiana”?

De qualquer modo, a quimera de uma língua única que pudesse se contrapor à confusão babélica parece ter estado sempre presente no espírito humano. Em tempos mais recentes, poderíamos lembrar os esforços de Leibniz em sua Dissertação sobre a arte combinatória de utilizar um formalismo algébrico binário (referente a proposições verdadeiras ou falsas), no sentido de se poder manipular uma Língua characteristica universalis. Esse projeto foi retomado pelas pesquisas da lógica formal, que não cessou de buscar formalizações para um máximo de proposições da língua natural. Todas essas tentativas, porém, esbarram num problema fundamental: a língua universal, desencarnada de grupos humanos com identidade histórica, cultural e psicológica, deixa de ser uma língua.

 

Reflexões finais

O analista e o analisando vivem uma situação paradoxal: chegam ao encontro psicanalítico possuidores de uma linguagem e de uma língua originais, mas, ao longo do processo, devem reciclar a função de linguagem e criar uma nova língua para a relação.

O analista e o analisando vivem uma situação paradoxal: chegam ao encontro psicanalítico possuidores de uma linguagem e de uma língua originais, mas, ao longo do processo, devem reciclar a função de linguagem e criar uma nova língua para a relação.

A um observador externo, várias hipóteses vão aparecendo. Estaríamos diante de uma prematuridade neurofisiológica, de um organismo que se mostrou sequioso de assumir novas funções sem que seu substrato tivesse amadurecido plenamente? Um distúrbio na fonação resultante de alterações no ritmo respiratório poderia explicar esse quadro? Será que deveríamos entender o fenômeno como uma espécie de esconde-esconde intersubjetivo de caráter essencialmente transferencial? Ou então, reconhecer que estamos diante da mais enigmática das emoções humanas, a auto-inveja? As possibilidades, enfim, são múltiplas.

Minha intenção ao escrever este artigo foi compartilhar com os colegas analistas a amplitude de uma pequena faceta do universo da linguagem-língua, aquela que nos permite detectar, tanto no desenvolvimento dos grupos lingüísticos como na ontogênese da linguagem psicanalítica, mecanismos invariantes no sentido da fragmentação, da composição e da concentração. No exemplo acima citado, deparamos com instâncias de amputação e aglomeração de palavras, sugerindo que também nesse campo a ontogênese repete a filogênese (no caso, lingüística).

A pletora de dados informativos reflete a consciência do quanto, nós psicanalistas, podemos usufruir dos ensinamentos oriundos dos estudos do desenvolvimento cognitivo, das bases neurofisiológicas da empatia, do potencial comunicativo das representações, ou seja, do universo de fatores subjacentes à atividade maior do ser humano, que é a sua capacidade de pensar.

 

Referências

Excelsior Publications (Ed.). (2004). Découvertes: Du langage aux langues [Hors Série]. Science & Vie, 227.        [ Links ]

Excelsior Publications (Out. 2006).Une seule langue était – elle à l’ origine? Science & Vie, 1069.        [ Links ]

Fonseca, C. (2001). Juó Bananére: O abuso em blague. São Paulo: Ed. 34.        [ Links ]

Shevoroshkin,V. (May-June, 1990). The mother tongue.How linguists have reconstructed the ancestor of all living languages. The Sciences, 20-27.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
Rua Helena, 170/123 – Vila Olímpia
04552-050 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3842-3060
E-mail: mr.junqueira@uol.com.br

 

 

* Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
1 O hífen nesta língua indica a presença de uma vogal indeterminada, a, i ou u.